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O sucesso editorial do livro de Hitler, poemas de Nelly Sachs e Hans Magnus Enzensberger com passagem pelo filme The book thief

24 Sexta-feira Jun 2016

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Poetas e Poemas

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Felix Nussbaum, Hans Magnus Enzensberger, Nelly Sachs

Felix Nussbaum 4 - O segredo 1939 500pxÉ provável que a coragem dos ingleses em enfrentar o risco, uma vez mais salve a Europa. Não tanto do Holocausto de que falam os poemas de hoje, mas de um colapso induzido pela embriaguez da burocracia europeia empapado no seu próprio poder.

Não sou eurocéptico. Conheci a proibição de sair de Portugal sem autorização militar especial. Experimentei a restrição de apenas poder viajar para o estrangeiro com pouquíssimo dinheiro. Vivi algum tempo, até sufocar, a “felicidade” do sistema soviético na Polónia; por isso, sinto-me o mais feliz entre os homens ao viver a condição de cidadania que Portugal na União Europeia permite. Isto não significa que aprecie a possibilidade de alguém escolher por mim a cor do papel higiénico, forçando a caricatura do caminho para onde a burocracia de Bruxelas aponta, a qual está a conduzir a um processo em vias de extinção o projecto europeu saído das cinzas da guerra contra a Alemanha Nazi.

Assistimos por estes dias ao espectáculo surpreendente de uma multidão esgotar edições do livro de Hitler. Se de alguma coisa é sintoma o sucesso editorial do livro de Hitler, para além de uma legítima curiosidade intelectual, será seguramente preocupante para todos.

Felix Nussbaum 1 - Auto-retrato no atelier 1938 500pxPor um daqueles cruzamentos de acaso, vi uma destas noites o filme The book thief, A rapariga que roubava livros. Como é sabido, no filme a ligação aos livros da menina que não sabia ler começa com um manual de coveiro recolhido por ela junto à campa do irmão, e por onde aprende as primeiras letras. Esta ligação simbólica entre a morte e o renascer pelo livro irão atravessar o filme.

A história desenvolve-se na Alemanha de Hitler, e a etapa seguinte com livros leva-nos à fogueira onde são queimados, e ardem, os livros considerados perigosos pelos sequazes de Hitler, no que foi um momento histórico marcante da Alemanha hitleriana. Abandonado o local pela multidão entre obrigada e entusiasta, a menina aproxima-se da fogueira e retira um livro ainda fumegante, que esconde. Era O Homem Invisível do escritor inglês H. G. Wells (1866-1946), o qual atravessará a história como metáfora, sendo instrumento de esperança e da liberdade de espírito que a doutrina hitleriana pretendeu matar.

Lembrá-lo uma vez e outra nos testemunhos de memória e no estudo da história é tarefa de humanidade para que o horror não se repita.

O Holocausto colocou à literatura alemã o desafio da linguagem: como expressar o horror e o seu tempo. Paulatinamente os escritores foram percorrendo o caminho expressivo que permite na distância sentir o inominável materializado. Escolho dois poemas que dessa expressão são exemplo. Primeiro um poema que Hans Magnus Enzensberger (1929) dedica a Nelly Sachs (1891-1970), Os Desaparecidos, depois, um poema desta, O Teu Corpo Em Fumo Pelo Ar, ambos em tradução de Paulo Quintela.

Felix Nussbaum 3 - Auto-retrato com passaporte judeu 1943 500pxAcompanham os poemas imagens de pinturas de Felix Nussbaum (1904-1944), pintor de génio com uma biografia exemplar: nasceu judeu e foi parar a Auschwitz em 2 de Agosto de 1944, depois de ter vivido fugitivo e escondido durante o período nazi.

Felix Nussbaum 5 - Casal de luto 1943 450pxOs Desaparecidos

 

a terra não os engoliu, foi o ar?

como a areia eles são numerosos, mas não em areia

se tornaram, sim em nada, em bandos

estão esquecidos. aos montes e de mãos dadas,

como os minutos, mais do que nós,

mas sem lembrança. não inventariados,

impossíveis de ler no pó, sim desaparecidos

estão os seus nomes, colheres e solas.

 

não nos dão pena. ninguém se pode

lembrar deles: nasceram,

fugiram, morreram? ninguém os achou

menos. sem falha

é o mundo, mas unido

por aquilo que ele não abriga,

pelos desaparecidos. estão por toda a parte.

 

sem os ausentes nada existiria.

sem os fugitivos nada era firme.

sem os imensuráveis nada mensurável.

sem os esquecidos nada seguro.

 

os desaparecidos são justos.

assim nos desvanecemos também.

Felix Nussbaum 2 - Tocador de orgão da Barbária 1942-43 500px

O Teu Corpo Em Fumo Pelo Ar

 

E quando esta minha pele estiver desfeita

eu verei Deus sem a minha carne.

Job

 

OH AS CHAMINÉS

Sobre as moradas da morte engenhosamente inventadas

Quando o corpo de Israel desfeito em fumo partiu

Pelo ar —

Como limpa-chaminés uma estrela o recebeu

Que se fez negra

Ou era um raio de sol?

 

Oh as chaminés!

Vias da liberdade para o pó de Jeremias e de Job —

Quem vos inventou e compôs pedra sobre pedra

De fumo o caminho aos fugitivos?

 

Oh as moradas da morte,

De arranjo convidativo

Para o hospedeiro, outrora hóspede —

Ó dedos,

Pondo a soleira de entrada

Como uma faca entre vida e morte —

 

Ó vós chaminés,

Ó vós dedos,

E o corpo de Israel em fumo pelo ar!

in Poemas de Nelly Sachs, antologia, versão portuguesa e introdução de Paulo Quintela, Portugália Editora, Lisboa, 1967.

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Che Guevara num poema de Hans Magnus Enzensberger

26 Segunda-feira Out 2015

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Che Guevara, Hans Magnus Enzensberger, René Burri

René Burri (1933-2014) - Che Guevara 600pxÉ com indisfarçável melancolia que estes tempos políticos me levam ao perfil inortodoxo de Che Guevara, escrito em forma de balada por Hans Magnus Enzensberger (1929) nos anos 70 do séc. XX: E. G. de la S..

A luta entre o voluntarismo ideológico e a força subterrânea da economia tem trazido o desaire aos aprendizes de feiticeiros e a desgraça às populações cobaias. Tivemos a experiência recente do liberalismo criativo que transformaria a velha sociedade portuguesa numa economia de vanguarda, com os resultados observáveis à nossa volta.

Caminhamos agora para nova experiência fazendo renascer o que não há muito tempo colapsou, vendendo como coisa muito nova um bafiento baú.

O desacerto entre os homens e as ideias provavelmente sempre existiu, e quando aplicadas estas, a brutalidade do real cai em cima dos ideais rápida e sem contemplações, ou como escreve o poeta:

…Depois das primeiras vitórias, começou a ver

como coisa muito nova o Novo Homem, uma velha ideia. A economia, porém,

não dava ouvidos aos seus discursos. O “spaghetti continuava a a faltar.

A pasta dentífrica também tinha acabado — e de que é feita a pasta dentífrica?

As notas de banco que assinava não tinham valor.

…

O texto interrompe-se, e tranquilamente continuam a afluir as respostas.

Deixo-vos o poema na totalidade.

E. G. de la S.

 

Durante uns tempos milhares usaram o seu pequeno boné

e multidões desfilaram com retratos seus

em grande formato, gritando bem alto o seu nome.

Agora, aqueles cortejos pela City quase parecem irreais,

como o país e a classe que o viram nascer.

 

Longe dos matadouros e das barracas e dos bordéis

ia-se desfazendo a casa do pai, junto ao rio. O dinheiro fora-se,

mas a piscina ficou. Um rapazinho tímido,  

alérgico, muitas vezes quase a sufocar. Em luta com o seu corpo,

fumando charutos, fez-se homem (o que isso seja, não é história para aqui).

 

Debaixo do travesseiro: Júlio Verne. O seu primeiro ataque,

a sua primeira fuga para a realidade: “Tristes Trópicos”.

Mas os leprosos, debaixo da varanda podre no Amazonas,

não entendiam o que ele dizia, e continuavam a morrer. Só então

ele descobriu o inimigo que lhe seria fiel até ao fim,

 

e o inimigo do inimigo. Depois das primeiras vitórias, começou a ver

como coisa muito nova o Novo Homem, uma velha ideia. A economia, porém,

não dava ouvidos aos seus discursos. O spaghetti continuava a a faltar.

A pasta dentífrica também tinha acabado — e de que é feita a pasta dentífrica?

As notas de banco que assinava não tinham valor.

 

O açúcar pegava-se à camisa. Máquinas, pagas a peso de ouro,

enferrujavam nos cais. La Rampa andava cheia de boatos.

Lambidela de botas em Moscovo, novos créditos. O povo ia para a fila,

não oferecia segurança, contava anedotas esfomeadas. Por toda a parte bufos,

intrigas que nunca conseguiu entender. Um eterno estrangeiro.

 

Quis pregar moral aos Russos. O amigo dos homens

clamava pelo ódio que há-de transformar o homem

numa máquina de morte, violenta, certeira e fria. No fundo,

uma mimosa: a sua leitura preferida eram poemas (sabia Baudelaire

de cor). Fraco e delicado, os serviços secretos chamavam-lhe um figo.

 

E assim se refugiou nas armas, para ficar onde tudo era claro

e inequívoco, o inimigo inimigo e a traição traição: na selva.

Mas ele próprio parecia estar perto do fim. Rosto cheio, sem barba, as fontes grisalhas,

óculos de lentes grossas, como um caixeiro-viajante, de “canadiana“, assim

disfarçado, em Nancahuazú, saiu para a sua última missão.

 

Não falava Quechua nem Guarani. O silêncio dos índios

era absoluto, como se viéssemos de um outro mundo. Insectos

lianas, mato rasteiro. Os camponeses como pedras. Cólicas,

ataques de tosse, edemas. Doses maciças de cortisona, adrenalina.

A última injecção, já ofegante: Ave Maria puríssima!

 

E logo a lenda se espalhou como espuma. Somos já

super-homens, invencíveis. (Sempre esta fatal ironia,

de que os camaradas se não apercebem.) Um farrapo humano, um ídolo.

Nós ter-lhe-íamos dado um lugar, anunciavam os mais progressistas

de entre os seus inimigos mortais. Em vez disso, puseram em exposição o seu cadáver

 

com as mãos decepadas. Uma aventura mística, e

uma paixão que lembra irresistivelmente a imagem de Cristo:

isto escreveram os seus adeptos. Ele: Les honneurs, ça m’emmerde.

Não foi há muito tempo, e já esquecido. Só os historiadores

se instalam como as traças no pano do seu uniforme.

 

Buracos na guerra popular. De resto, na metrópole, só já

uma boutique fala dele, com o nome que lhe roubou.

Na Kensington High Street acende-se o brilho dos pauzinhos de incenso;

sentados junto da caixa registadora, os últimos hippies, entediados,

irreais, como fósseis, e abúlicos, e quase imortais.

 

O texto interrompe-se, e tranquilamente continuam a afluir as respostas.

 

Tradução de João Barrento.

in Hans Magnus Enzensberger, Mausoléu, Edições Cotovia, Lda, Lisboa, 2004.

 

A imagem de Che Guevara que abre o artigo reproduz uma famosa fotografia tirada por René Burri (1933-2014).

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