Etiquetas
É provável que a coragem dos ingleses em enfrentar o risco, uma vez mais salve a Europa. Não tanto do Holocausto de que falam os poemas de hoje, mas de um colapso induzido pela embriaguez da burocracia europeia empapado no seu próprio poder.
Não sou eurocéptico. Conheci a proibição de sair de Portugal sem autorização militar especial. Experimentei a restrição de apenas poder viajar para o estrangeiro com pouquíssimo dinheiro. Vivi algum tempo, até sufocar, a “felicidade” do sistema soviético na Polónia; por isso, sinto-me o mais feliz entre os homens ao viver a condição de cidadania que Portugal na União Europeia permite. Isto não significa que aprecie a possibilidade de alguém escolher por mim a cor do papel higiénico, forçando a caricatura do caminho para onde a burocracia de Bruxelas aponta, a qual está a conduzir a um processo em vias de extinção o projecto europeu saído das cinzas da guerra contra a Alemanha Nazi.
Assistimos por estes dias ao espectáculo surpreendente de uma multidão esgotar edições do livro de Hitler. Se de alguma coisa é sintoma o sucesso editorial do livro de Hitler, para além de uma legítima curiosidade intelectual, será seguramente preocupante para todos.
Por um daqueles cruzamentos de acaso, vi uma destas noites o filme The book thief, A rapariga que roubava livros. Como é sabido, no filme a ligação aos livros da menina que não sabia ler começa com um manual de coveiro recolhido por ela junto à campa do irmão, e por onde aprende as primeiras letras. Esta ligação simbólica entre a morte e o renascer pelo livro irão atravessar o filme.
A história desenvolve-se na Alemanha de Hitler, e a etapa seguinte com livros leva-nos à fogueira onde são queimados, e ardem, os livros considerados perigosos pelos sequazes de Hitler, no que foi um momento histórico marcante da Alemanha hitleriana. Abandonado o local pela multidão entre obrigada e entusiasta, a menina aproxima-se da fogueira e retira um livro ainda fumegante, que esconde. Era O Homem Invisível do escritor inglês H. G. Wells (1866-1946), o qual atravessará a história como metáfora, sendo instrumento de esperança e da liberdade de espírito que a doutrina hitleriana pretendeu matar.
Lembrá-lo uma vez e outra nos testemunhos de memória e no estudo da história é tarefa de humanidade para que o horror não se repita.
O Holocausto colocou à literatura alemã o desafio da linguagem: como expressar o horror e o seu tempo. Paulatinamente os escritores foram percorrendo o caminho expressivo que permite na distância sentir o inominável materializado. Escolho dois poemas que dessa expressão são exemplo. Primeiro um poema que Hans Magnus Enzensberger (1929) dedica a Nelly Sachs (1891-1970), Os Desaparecidos, depois, um poema desta, O Teu Corpo Em Fumo Pelo Ar, ambos em tradução de Paulo Quintela.
Acompanham os poemas imagens de pinturas de Felix Nussbaum (1904-1944), pintor de génio com uma biografia exemplar: nasceu judeu e foi parar a Auschwitz em 2 de Agosto de 1944, depois de ter vivido fugitivo e escondido durante o período nazi.
a terra não os engoliu, foi o ar?
como a areia eles são numerosos, mas não em areia
se tornaram, sim em nada, em bandos
estão esquecidos. aos montes e de mãos dadas,
como os minutos, mais do que nós,
mas sem lembrança. não inventariados,
impossíveis de ler no pó, sim desaparecidos
estão os seus nomes, colheres e solas.
não nos dão pena. ninguém se pode
lembrar deles: nasceram,
fugiram, morreram? ninguém os achou
menos. sem falha
é o mundo, mas unido
por aquilo que ele não abriga,
pelos desaparecidos. estão por toda a parte.
sem os ausentes nada existiria.
sem os fugitivos nada era firme.
sem os imensuráveis nada mensurável.
sem os esquecidos nada seguro.
os desaparecidos são justos.
assim nos desvanecemos também.
O Teu Corpo Em Fumo Pelo Ar
E quando esta minha pele estiver desfeita
eu verei Deus sem a minha carne.
Job
OH AS CHAMINÉS
Sobre as moradas da morte engenhosamente inventadas
Quando o corpo de Israel desfeito em fumo partiu
Pelo ar —
Como limpa-chaminés uma estrela o recebeu
Que se fez negra
Ou era um raio de sol?
Oh as chaminés!
Vias da liberdade para o pó de Jeremias e de Job —
Quem vos inventou e compôs pedra sobre pedra
De fumo o caminho aos fugitivos?
Oh as moradas da morte,
De arranjo convidativo
Para o hospedeiro, outrora hóspede —
Ó dedos,
Pondo a soleira de entrada
Como uma faca entre vida e morte —
Ó vós chaminés,
Ó vós dedos,
E o corpo de Israel em fumo pelo ar!
in Poemas de Nelly Sachs, antologia, versão portuguesa e introdução de Paulo Quintela, Portugália Editora, Lisboa, 1967.