Etiquetas
Num último livro com poemas, John Updike (1932-2009) vai-nos dando conta do mundo em redor, sem retórica ou moralidades escusadas. Apenas o olhar de quem por uma vida observou o mundo e sobre ele escreveu com mediania, riscada às vezes por traços geniais, o que afinal devolve os homens à sua verdadeira dimensão.
Com benevolência e alguma desilusão fui lendo parte do que John Updike escreveu desde um juvenil encontro com Rabitt Run, Corre Coelho, numa fascinante tradução de Fiama Hasse Pais Brandão, nos idos anos 60 (edição Europa-America). Hoje encontro um escorreito livro de poemas, o último escrito, numa competente tradução da poetisa Ana Luisa Amaral, e do qual transcrevo alguns poemas.
São poemas sobre um sentir que nos é próximo, como próximas são as realidades de que falam. Da medicina à arte, passando pela televisão, se compõe a escolha que transcrevo. São assuntos de difícil tratamento poetico: transmitir a ambivalência de sentimentos que nos provocam ao incomodar-nos o seu convívio ou necessidade; e o poeta vai para lá do relato-pretexto, dando-nos poemas com uma dimensão que nos toca intimamente.
E falam eles de intimidade! Preferia que o não fizessem.
No dia anterior, uma luta com a náusea
(BEBE-ME: um litro de líquido doce e enjoativo)
e a diarreia, para nos apresentarmos imaculados
como noiva ao noivo e aos seus instrumentos,
à sua inspecção, uma minúscula câmara de TV,
as palavras delicodoces. Está bronzeado, ele,
voltou de umas férias merecidas
das já familiares partes baixas.
Em traje apropriado, reclinados,
vemos, rolando os olhos, o ecrã por onde
o intestino longo, sedado, serpenteia,
os segmentos marcados por pontos de construção
anelar, limpos, como em túnel pré-fabricado
lançado pelo genro do governador.
Um súbito jorro de líquido cintilante brilha
na luz introduzida, e curvas como ganchos de cabelo
surgem mais à frente, para logo fugirem,
impalpáveis; flutuamos, caímos, rodopiamos
nesses corredores suaves e dóceis, explorados
por tudo o que comemos.
Depois, tudo escurece,
tal como Deus o queria, quando selou no abdômen
de Adão o milagre da vida, viscoso, retorcido, de mau
cheiro. A voz do noivo, abaixo do nível de visão,
como tesouro enterrado, anuncia:
“Perfeito. Nem um pólipo. Vemo-nos daqui a
cinco anos.” Cinco anos? Já a feira pode ter sido levantada.
Lucien Freud
(Uma exposição em Veneza, Setembro de 2005)
Sim, o corpo é uma coisa hedionda, sobretudo
os pés e os genitais, e não menos a face humana.
Veias azuis desenham serpentes nas costas
das mãos e desfiguram a solidez de mármore
brilhante que têm as coxas. Vale a pena
ver esse peso coalhado depois de séculos
(de Pigmalião a Canova) do nu como a forma
exterior do espírito, uma chama branca: a Psyche.
De que forma maravilhosa a elegante Diana
de Saint-Gaudens se equilibra num só pé, no ar,
distante como a lua, e para sempre! Mas não,
a carne arrasta-nos para baixo, a sua terra salpicada,
terreno ávido para o pintor, terra inocentemente feia,
adormecida, pobre nudez, anjo afundado, saco de fleuma.
Televisão
Ligo-a como se fosse uma torneira,
nem frio nem quente, só tépido infotenimento,
e dela jorram as provas cintilantes
de conflitos, misérias, concupiscência,
desatrelados pouco a pouco, em remissões
de publicidade ansiosa que antecipa
para nosso bem a melhor vida dependente
de uma compra, de alguma aquisição indispensável.
Um carro lustroso dá curvas na chuva murmurante,
uma praia de alvura óssea acolhe peles bronzeadas,
um toalhete acalma as rugas de uma bela enrugada,
um unguento consola a dor sedentária,
dentes falsos resplandecem, a cerveja provoca alegria,
e cabelos pintados arremessam a cor pelo ecrã:
erupções de luz bebidas pelo meu cérebro,
que depressa se cansa, até ficar sequioso outra vez.
in John Updike, Ponto Último e outros poemas, tradução de Ana Luisa Amaral, Civilização Editora, Porto, 2009.
Acompanham o artigo imagens de pinturas de Lucien Freud (1922-2011).