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Tag Archives: Kandinsky

Uma fábula para os nossos dias

20 Terça-feira Dez 2016

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Poesia Antiga

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Esopo, Kandinsky, La Fontaine

sky-blue-1940-500pxO respeito mútuo* não parece ser uma conquista generalizada ao alcance das gerações que hoje vivem sobre a terra.

Viver sob um céu azul onde as mais surpreendentes e curiosas gentes permaneçam em harmonia, e de que a pintura de Kandinsky que abre o artigo é metáfora, continua a ser sonho longe do quotidiano que nos espreita.

Infelizmente, o mundo está mais perto da história da paz entre lobos e ovelhas que escolhi trazer aqui hoje, que da paz encantada que Kandinsky sonhou em 1940, quando o mundo se encontrava mergulhado no horror da segunda guerra mundial.

Talvez seja idiota sonhar os homens iguais, afinal a mensagem que o cristianismo trouxe ao mundo, e supor que a natureza do animal em nós, que, ou se submete ou domina, pode ser mudada pela educação e organização social, conduzindo à igualdade sonhada pelos iluministas e a sua Declaração Universal dos Direitos do Homem.

Na verdade, o mundo dá voltas e continuamos sempre perto da fábula da paz entre ovelhas e lobos. A história, vinda de Esopo, foi recontada por La Fontaine e vertida ao sabor das épocas em português.

Primeiro lereis uma versão do século XVIII, a partir de Esopo, por Miguel do Couto Guerreiro, a seguir, uma versão a partir de La Fontaine, da segunda metade do século XX, por António Manuel Couto Viana.

 

 

 

Os lobos e as ovelhas

 

Os lobos e as ovelhas que tiveram
Uma guerra entre si, tréguas fizeram:
Os lobos em reféns lhes entregavam
Os filhos; as ovelhas os cães davam.
Os lobinhos, de noite, pela falta
Dos pais, uivavam todos em voz alta:
Acudiram-lhes eles acusando
As ovelhas de um ânimo execrando;
Pois contra o que é razão e o que é direito,
Algum mal a seus filhos tinham feito:
Faltavam lá os cães que as defendessem,
Deu isto ocasião que morressem.

 

Haja paz, cessem guerras tão choradas;
Mas fiquem sempre as armas e os soldados,
Que inimigos que são atraiçoados,
Tomaram ver potências desarmadas.
Não durmam, nem descansem confiadas
Em ajustes talvez mal ajustados:
Nem creiam na firmeza dos tratados,
Que os tratados às vezes são tratadas.
Só as armas os fazem valiosos;
E ter muitos soldados ali juntos
Respeitáveis a reis insidiosos;
Senão, para os quebrar há mil assuntos;
E mais tratados velhos, carunchosos,
Firmados na palavra dos defuntos.

 

Versão de Miguel do Couto Guerreiro a partir de Esopo

 

 

 

Os lobos e as ovelhas

 

Milhares de anos após a guerra declarada
Entre o lobo e a ovelha a paz é concertada
Com vantagem, talvez, prós dois rivais partidos,
Plos motivos que são de sobejo sabidos:
Pois, se o lobo retraça a tresmalhada rês,
Da pele dele, o pastor cobre a fria nudez.
Desiste a ovelha, assim, da liberta pastagem,
Mas, para o lobo, finda a ferina carnagem.
Jamais pode gozar quem teme plos seus bens!
Firmada, enfim, a paz, trocaram-se os reféns:
A ovelha entrega os cães e o lobo entrega as crias,
Revestindo-se a troca das formais garantias.
E o tempo foi passando e as crias crescendo,
Transformando-se em lobos de apetite tremendo
Que, ao verem os pastores dos seus redis ausentes,
Nos anhos anafados cravam os duros dentes
E engolem metade e arrastam o que resta
Pra os escuros covis da frondosa floresta.
É forçoso dizer como os cães descuidados,
Cheios de boa-fé, foram estrangulado
No repouso do sono: Foram-no de tal sorte
Que mal sentiram vir a violenta morte.
E nenhum escapou! Tiremos nós, então,
De tudo o que passou esta sábia lição:
Com os maus há que ter uma contínua guerra.
Decerto é boa a paz e alegra toda a terra,
Mas não serve pra nada
Se o inimigo falta à palavra empenhada.

 

Versão de António Manuel Couto Viana a partir de La Fontaine
in 60 Anos de Poesia, vol II, INCM, Lisboa, 2004.

 

 

 

*Nota Final
Deliberadamente não escrevi tolerância, a qual pressupõe também condescendência sobre os erros dos outros e que aceitamos, e não é essa a condição do respeito mútuo. O respeito mútuo é a equivalência das verdades em que cada um acredita.

 

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Dois poemas de Gonçalo M Tavares

27 Terça-feira Maio 2014

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Gonçalo M. Tavares, Kandinsky

Kandinsky Composição VIII

Anfigúricos são alguns dos poemas de Gonçalo M Tavares (1970), herdeiros de Anfiguri de Filinto Elíseo  tanto no ritmo com que constrói a poesia, no aparente sem sentido lógico do encadeamento vocabular, como no sarcasmo, embora muitos dos seus poemas levem a vida a sério mesmo quando lhe investigam o absurdo.

Para as considerações sobre anfiguri enquanto género literário, remeto o leitor para o artigo sobre Anfiguri de Filinto Elíseo, já publicado no blog. De Gonçalo M Tavares, escolho dois poemas:

 

primeiro o poema 36 de Livro da Dança, do qual retenho o verso:

 

todo o conceito tem buracos por onde se escapa o vinho e o INSÓLITO.

 

e depois, o poema Descrição de uma cidade, do livro 1. Neste poema, variada reflexão sobre a existência e o mundo, todo o problema da natação surge com enorme acutilância. E se o poema termina com os judiciosos versos:

 

… E não se ilumina a escuridão,

Ilumina-se algo que já não é escuridão; precisamente porque

A escuridão é escura, escuríssima segundo dizem.

 

atrever-me-ia a destacar da secção média do poema os versos:

 

O mundo é perfeito de todos os lados,

Menos do lado onde estamos: como um sólido geométrico

Belo que cai em cheio na cabeça desprevenida.

 

Vamos então aos poemas na totalidade.

 

36

a proporção é morta.

a geometria tem tristeza.

Os seios feridos deitam sangue em vez de leite.

a matemática é impossível

a confirmação é a insistência do impossível

a prova é morder o fantástico e dar importância aos dentes

a proporção é MORTA.

Os ossos têm Cérebro e apaixonam-se.

a geometria tem tristeza

todo o conceito tem buracos por onde se escapa o vinho e o INSÓLITO.

a proporção é MORTA

o corpo é a biografia das últimas horas da CARNE à frente da técnica

É o dia depois da geometria (a dança)

últimas horas da carne à frente da técnica.

 

 

Descrição de uma cidade

 

Não há lado esquerdo na metafísica,

O que não é uma limitação.

A produção industrial de problemas

Solta para o ar nuvens espessas

Que interferem no aeródromo.

Aviões cobertos de graffiti não conseguem levantar voo

Porque, entre os vários desenhos, os miúdos

Desenharam pedras de granito. A Ideia de granito

Pesa mais que a existência concreta de um

Balão, o mundo das ideias é estado transitório entre

O Nada e a montanha. Entretanto, a

Natação tornou-se importante para a cidade

Depois do dilúvio ocorrido há três mil anos. O governo

Oferece inscrições gratuitas e ainda casais de animais

Bruscos, mas mansos. Os homens andam felizes, e também

As mulheres, porque todos aprendem a nadar antes dos

Sessenta. Hoje, neste século, morre-se afogado mais tarde.

O mundo é perfeito de todos os lados,

Menos do lado onde estamos: como um sólido geométrico

Belo que cai em cheio na cabeça desprevenida.

O mundo é fantástico visto de cima, de helicóptero. A linguagem

Sobe e interfere em camadas específicas da atmosfera.

As palavras que usas não são inertes. O inglês, por exemplo,

É Língua que entra excessivamente nas nuvens. O inglês

Para a Astronomia é deselegante, e prejudica ligeiramente

As aves baixas.

No outro lado do mundo, entretanto, alguém, de grandes dimensões,

Enfia o aeródromo num saco de plástico. As pulsações

Da alma medem-se pelos pressentimentos, não por

Aparelhos medicinais. E não se ilumina a escuridão,

Ilumina-se algo que já não é escuridão; precisamente porque

A escuridão é escura, escuríssima segundo dizem.

 

Notícia bibliográfica

 

Livro da Dança, edição Assírio & Alvim, Lisboa 2001.

1, edição Relógio d’Água, Lisboa, 2ª edição, 2011.

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Malevitch suprematista

30 Quinta-feira Jan 2014

Posted by viciodapoesia in Convite à arte

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Kandinsky, Malevitch, Mondrian

malevich.petersburgFalamos de abstração em pintura quando nos encontramos perante uma obra onde não é reconhecível qualquer objecto ou realidade física identificável.

malevich.amsterdam

Tendo a abstracção começado pelo não-figurativo com Kandinsky (1866-1944),  (e o seu ensaio Ponto e Linha sobre o Plano é uma obra iluminante), Mondrian (1872-1944) desenvolveu a partir do valor das cores, a base para uma relação equilibrada enquanto indutora da emoção estética, nas obras do que chamou a Nova Plástica, em detrimento da harmonia, característica da pintura antiga ( veja-se Realidad Natural y Readidad Abstracta, Barral Editores, Barcelona 1973).

malevich.composition

Quando passamos a Malevitch (1879-1935), é no domínio do sem-objecto absoluto que nos encontramos. A representação basta-se a si mesma, e apenas o jogo plástico de cores e formas  transmite a emoção ao observador.

malevich.black-red-squareDe entre os fundadores da abstracção em pintura: Kandinsky, Mondrian, Malevitch, para citar os mais famosos, foi este ultimo quem levou mais longe esta pintura do sem-objecto com O Quadrado Negro sobre fundo Branco em 1915, e Branco no Branco em 1918.

malevich.black-square

Entre estas duas obras encontramos um conjunto vasto de obras de cores vivas e contrastadas onde formas de uma geometria quase regular em rectângulos e outras figuras geométricas se justapõem, surgindo a vaguear no espaço da tela, e em que o que conta é o movimento das massas coloridas.

malevich.supremus-56

Surgem estas obras sem propósito outro que dar conta de uma manifestação pictural da natureza enquanto lugar do ser, da vida, deste “Nada” que o pintor liberta sobre a tela. Este acto criador “não é mimético, é um acto puro que agarra a excitação universal do mundo, o ritmo, lá, de onde desapareceram todas as representações figurativas de tempo e espaço e onde não subsiste senão a excitação e a acção que ela condiciona. Excitação sem finalidade.” Citei amplamente o especialista da vanguarda plástica russa, Jean-Claude Marcadé, sobretudo em L’Avant-Garde Russe, Flammarion, Paris, 1995.

malevich.krasnodar

O século XX, com as vanguardas que se sucederam, encarregou-se da normalização de toda esta conversa e hoje olhamos estas obras ou de per se ou em contexto histórico, sendo certo que a arte da pintura não  voltou a ser a mesma depois destas escandalosas (à época) invenções.

malevich.aeroplane-flying

Concluo com mais algumas destas obras picturais, enquanto tal, onde a luz não é aquela, ilusória, do sol, mas a do negro e do branco de onde emanam ou se reúnem todas as outras cores.

malevich.black-circle

malevich.new-york

malevich.self-2d

malevich.supremus-58Todas as imagens são de obras de Malevitch do periodo Suprematista.

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