• Autor
  • O Blog

vicio da poesia

Tag Archives: Haroldo de Campos

Enigma — poema de Haroldo de Campos

09 Sexta-feira Mar 2018

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Poetas e Poemas

≈ 4 comentários

Etiquetas

Haroldo de Campos

Olhar e ver são gestos sensoriais que por si só desencadeiam a emoção, com uma pequena nuance: ver contém uma intermediação intelectual que apenas no olhar não existe. E nesta intermediação intelectual reside o mundo que nos faz seres sensíveis aos outros, ao outro, ao que nos rodeia.
No modo de olhar o outro que nos olha reside muitas vezes o enigma do mundo para lá dos detalhes em redor.

Os objectos criados sem propósito funcional, que pela sua especial capacidade de desencadear a emoção ao olhar e ver, chamamos obras de arte, tocam-nos tanto mais, desencadeando emoções de profundidade variável, quanto os instrumentos de saber e reflexão que possuímos. Para os poetas eles são, por vezes, simultaneamente, desafios de expressão emocional, e poucas vezes os poemas conseguem viver sem a companhia da obra de arte que os viu nascer. Dos raros, Ode a Uma Urna Grega de Jonh Keats é um deles, que outro dia aqui virá.

Hoje ocupo-me do poema Enigma de Haroldo de Campos (1929-2003), sobre o busto esculpido da rainha egípcia Nefertiti.
Depois de uma descrição visual da escultura na sua aparência, o poeta detém-se sobre a mutilação que o tempo trouxe à escultura e a representação enigmática da cegueira que ela acaba por mostrar:

…
o direito
o tempo milenar cegou-o:
 esbranca-se no gesso
fitando em alvo o nada
de dentro da moldura
oval-amêndoa
do rimel

seu enigma está aí —
nesse branco esgazeado
que turba há (quantos?)
séculos o semblante
irretocável de rainha

Ao vê-la naquela tarde, na solidão da cave de um museu recheado de beleza, foram outros ou pensamentos que me assaltaram: a mutilação do corpo, como a olhamos, como viveremos com ela se nos acontece? Procuramos a beleza do corpo, hoje tanto ou mais que noutras épocas. Se a mutilação nos calha passamos a ser menos belos? De que beleza falamos? E voltamos a Platão e à beleza que está na alma. Mas uma alma mutilada é ainda a mesma e idêntica antes e depois da mutilação? Porque é sempre do que sentimos nos outros e pelos outros com quem nos relacionamos que o enigma reside.

 

enigma

a rainha nefertiti
lábios de desenho perfeito
perfeita a linha do nariz
cútis bronzeada pelos raios
ultra-violeta de aton-ra o sol
jubilante do egito
uma elegante tiara trapezoide
azul-grafite
encimando-lhe a testa
sobre uma faixa de ouro
(e deixando se ainda listar
por uma outra banda áurea
com engastes de vermelho safira
e o símbolo — dourado sempre —
do poder real: o cetro
verticalmente inscrito
de alça dupla)

seu
pescoço delgado de modelo de dior
orna-o tripla fileira de colares de cor
as sobrancelhas e pálpebras
delineadas com meticuloso
traço rímel-negro
por hábil mão maquiladora
e nos olha
a rainha nos olha
(que a olhamos)
impassível:
quase-sorriso na carnação
túmida dos lábios
fixa-nos pupila
castanho-verde
do olho esquerdo

o direito
o tempo milenar cegou-o:
 esbranca-se no gesso
fitando em alvo o nada
de dentro da moldura
oval-amêndoa
do rimel

seu enigma está aí —
nesse branco esgazeado
que turba há (quantos?)
séculos o semblante
irretocável de rainha
Berlim 14 out. 1998

in haroldo de campos, entremilênios, Editora Perspectiva S. A., São Paulo, 2009.

Abre o artigo uma imagem da escultura do busto da rainha egípcia Nefertiti, que se guarda no Neues Museum de Berlim.

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Partilhar no Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

Circuladô de fulô: o poema de Haroldo de Campos e a interpretação de Caetano Veloso

13 Domingo Mar 2011

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

≈ 3 comentários

Etiquetas

Caetano Veloso, Haroldo de Campos

Fazendo parte dos 15 textos que compõem as prosas poéticas Galáxias,  escritas entre 1963 e 1976, circuladô de fulô… escrita em 1965,  juntamente com e começo aqui e meço aqui … , encontra-se entre o melhor da poesia de Haroldo de Campos (1929-2003) e para alguns, entre os melhores poemas brasileiros de sempre.

Em 1959, Haroldo de Campos, então com 29 anos, viajou pela Europa, deixando o Brasil pela primeira vez. Viagem de formação que incluiu entre outros eventos, uma visita a Stockhausen em Colónia, então chefe de fila da vanguarda musical europeia, e a Ezra Pound em Rapallo.

De regresso ao Brasil pelo nordeste, visitou outras cidades nordestinas antes do retorno a S. Paulo. Segundo o próprio, este percurso final da viagem foi  uma descoberta do Brasil por via do mundo.

A memória desta viagem pelo outro Brasil foi mais tarde evocada em circuladô de fulô… que aqui arquivo na fragmentada versão do texto cantada por Caetano Veloso, a qual repete em refrão texto que não se encontra repetido no poema original.

circuladô de fulô ao deus ao demodará que deus te guie
porque eu não posso guiá eviva quem já me deu circuladô de
fulô e ainda quem falta me dá


soando como um shamisen e feito apenas com um arame
tenso um cabo e uma lata velha num fim de festafeira no
pino do sol a pino mas para outros não existia aquela música
não podia porque não podia popular aquela música se não
canta não é popular se não afina não tintina não tarantina e
no entanto puxada na tripa da miséria na tripa tensa da mais
megera miséria física e doendo doendo como um prego
na palma da mão um ferrugem prego cego na
palma espalma da mão coração exposto como um nervo
tenso retenso um renegro prego cego durando na palma
polpa da mão ao sol
…


[circuladô de fulô ao deus ao demodará que deus te guie
porque eu não posso guiá eviva quem já me deu
circuladô de fulô e ainda quem falta me dá]

 

…
o povo é o inventalínguas na malícia da maestria no matreiro
da maravilha no visgo do improviso tenteando a travessia
azeitava o eixo do sol
…

 

[circuladô de fulô ao deus ao demodará que deus te guie
porque eu não posso guiá eviva quem já me deu
circuladô de fulô e ainda quem falta me dá]

 

…
e não peça que eu te guie não peça despeça que eu te guie
desguie que eu te peça promessa que eu te fie me deixe
me esqueça me largue me desamargue que no fim eu acerto que
no fim eu reverto que no fim eu conserto e para o fim me
reservo e se verá que estou certo e se verá que tem jeito e se
verá que está feito que pelo torto fiz direito que quem faz
cesto faz cento se não guio não lamento pois o mestre que
me ensinou já não dá ensinamento
…


[circuladô de fulô ao deus ao demodará que deus te guie
porque eu não posso guiá eviva quem já me deu
]

Caetano Veloso canta circuladô de fulô

https://s3-eu-west-1.amazonaws.com/viciodapoesiamedia/Veloso-Caetano_Circulado.mp3

circuladô de fulô… é um tributo à tradição de ministreis nordestinos que a musica capta na perfeição. Os primeiros versos, cantados depois como refrão, parecem ser uma citação directa de alguma canção ouvida no local por Haroldo de Campos.  Sobre ela parece nada se saber.

Os poemas podem encontrar-se in Os melhores Poemas de Haroldo de Campos, 3ª ed. S. Paulo: Global, 2001

Nota:

Shamisen: é uma espécie de alaúde japonês.

Gueixa tocando Shamisen para convidados, Japão, sec. XVIII

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Partilhar no Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

Visitas ao Blog

  • 2.060.398 hits

Introduza o seu endereço de email para seguir este blog. Receberá notificação de novos artigos por email.

Junte-se a 874 outros subscritores

Página inicial

  • Ir para a Página Inicial

Posts + populares

  • A valsa — poema de Casimiro de Abreu
  • Camões - reflexões poéticas sobre o desconcerto do mundo
  • Eugénio de Andrade — Green god

Artigos Recentes

  • Sonetos atribuíveis ao Infante D. Luís
  • Oh doce noite! Oh cama venturosa!— Anónimo espanhol do siglo de oro
  • Um poema de Salvador Espriu

Arquivos

Categorias

Site no WordPress.com.

  • Seguir A seguir
    • vicio da poesia
    • Junte-se a 874 outros seguidores
    • Already have a WordPress.com account? Log in now.
    • vicio da poesia
    • Personalizar
    • Seguir A seguir
    • Registar
    • Iniciar sessão
    • Denunciar este conteúdo
    • Ver Site no Leitor
    • Manage subscriptions
    • Minimizar esta barra
 

A carregar comentários...
 

    %d bloggers gostam disto: