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Epigrama
Prometeu, quando fez o homem primeiro,
Macho e fêmea, dous corpos fez, pegados:
Porém Jove um composto assim inteiro
Partiu em dois terníssimos bocados.
Daqui nos vem andarmos sempre ao cheiro
Dos membros, que nos foram arrancados.
— Ei-la — (nos diz o Coração) — É aquela —
Mas vamos a prová-la, e nunca é ela.
A exigência de uma sólida cultura clássica, a dureza do verso, a persistente recusa no uso da rima, sobretudo nas odes, tudo contribui para afastar o leitor moderno da poesia de Filinto Elíseo (1734-1819). E contudo, que grande poeta!
É no fluir encantatória do verso (aqui com rima) que reside todo o fascínio do Anfiguri de Filinto Elíseo que mais à frente transcrevo.
Género poético raro, de difícil factura com sucesso, este anfiguri antecipa todas as vanguardas literárias que o século XX conheceu e nos próximos artigos ilustrarei. É simultaneamente poesia dadaista e surrealista no conteúdo, e experimental no exercício sobre a palavra que tão caro foi às vanguardas poéticas ao longo do século XX.
Hoje as preocupações poéticas de criadores centram-se sobretudo nos relatos do “eu e o mundo” no tom sério que, supõem, convém à poesia. O non-sense, o absurdo, ou tão só o trabalho sobre a palavra, se têm cultores, não têm leitores.
Voltando ao que me ocupa hoje, define o dicionário anfiguri como obra literária de sentido confuso; e assim será. Mas ser de sentido confuso não significa ser sem sentido. E é aí que o desafio se coloca: perscrutar os sentidos possíveis num anfiguri que seja também, como é aqui o caso, um poema, notável pela organização rítmica da palavra, essência mesma da poesia.
ANFIGURI
Dá cá o presunto,
Rapaz enfeitado:
Quem não comeu bocado
Não morre de fome.
Morreu Lobisomem
Em camas de neve
Co’a pena que escreve
Decretos de Amor
Que quis com primor
Em rico tapete
Depor o sainete
Da concha Ciprina.
Eu vi a Menina,
Que vence as formosas
C’os lírios, e rosas,
Falar de sob-capa
A bichos do Papa.
Foi muito daninho
Às cepas do Minho
O sol deste inverno:
Quem pôs o governo
Nas mãos da criança
Não canta nem dança;
Mas põe geringonça
Nos papos da Onça.
Garrido estribilho,
Com palha de milho
Vai mui penitente
Nas pelas da gente
Sorver a mostarda,
Que trouxe a Bastarda
Nas garras do lobo.
O magro Farrobo
Nas altas ameias,
Sem ligas, sem meias
Gritou tartamudo:
“Trazei-me veludo
De pelo encarnado
Que dê mau olhado
A três feiticeiros.”
Os velhos gaiteiros
Rebentam de riso
Co’as trovas de guizo
Na vã carapuça.
Bem vai quem se aguça
Por ver o chavelho
Do bom scaravelho
Pintado de azul;
E a penca ao Taful
Da parda caraça,
Que bem se almofaça
C’o texto da Glosa.
E viva essa Moça,
Que compra o rebique,
E diz no despique:
“São bons carapaus.”
Ásados maraus
Com pança balofa
Refrescam a fofa
Nas costas do Alfeito.
Mas foi mui bem feito
Trazerem castanhas
De avulsas maranhas
Do monte Pegú.
O Cucurucú
Despindo as baetas
Mostrou carapetas
Nos Alpes gulosos.
Vieram gostosos
Os nabos Turquinos
Trazer aos meninos
As torres da Sé.
Não ouve, não vê
Cruel rapazia
Dragão que assobia
Deserto e Filhota.
O Céu se encapota
Com manto de sarro
E chove catarro
Por gordas goteiras.
Sacode as peneiras
Brincam Demonico;
Lá leva no bico
Barbudo alguidar.
Mandei bugiar
O homem de ferro,
Que vai como um perro
Capar os picanços.
Passeiam mui mansos
Subtis Jesuítas
Varrendo as Mesquitas
De São Sarabando
Aqui vão quebrando
Os ecos das bombas,
Que estouram nas trombas
Dos Rinocerontes.
Com seis Faetontes
Nas pregas da cauda
Compunha uma lauda
De vãos palavrões
Para as Conclusões
O grande Enxobregas,
Que estanca as bodegas
Da esconsa Prosódia.
Gentil palinódia
Discanta o Sultão
No grão Casarão
Que Merlim lhe acabou.
Aqui me mandou
O seu mensageiro
O mui marralheiro
Autor da matraca,
Que intrépido ataca
Com seus consoantes
Os versos tonantes
Sem tais maravalhas;
E afia as navalhas
Trombudo Censor,
Sem pejo, sem dor.
Eu nestes entrementes
Vos lanço a seus dentes
Versículos louquinhos.
Para despedida, hoje, da poesia de Filinto Elíseo, termino com outro epigrama do poeta.
Epigrama
Entender de comércio é gran venida
Para dourar com cabedais a vida:
Val mais que tenças, mais que bons morgados.
Saibam que Filis d’alugar seu leito,
Que apenas lhe custou vinte cruzados,
Tira dez mil, cada ano, de proveito.
Poemas transcritos de Obras Completas, volume I, edição APPACDM, Braga, 1998, integrado em Obras Clássicas da Literatura Portuguesa, edição de Fernando Moreira a partir da 2ª edição, Paris, 1817.
Acompanham o artigo imagens de pinturas de Jackson Pollock (1912-1956).