A Cíntia — uma elegia de Propércio

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Charles André van Loo - retrato de rapariga 530

Contemporâneo que foi de Horácio, e pouco mais velho que Ovídio, Propércio viveu na segunda metade do século I antes de Cristo.

Nascido provavelmente em Assis, numa família de posses, vítima da guerra civil, cedo foi para Roma tentar carreira forense ou na política. Seduzido pelo ambiente literário e mundano da capital do mundo, ei-lo poeta com o livro I das elegias publicado em 28a.C.

A marca história da sua vida foi a opção por consagrar a existência, como poeta e cidadão ao serviço da puella [amada] em detrimento da res publica [coisa pública] como era prática e exigência social da época.

Apaixonado por uma mundana, Cíntia, a sua vida e poesia foram uma afirmação da liberdade de escolha do indivíduo perante o autoritarismo de uma moral pública invasora.  

Na elegia 15 do Livro II fala o poeta de uma grande noite de amor. Na variedade de linha de pensamento e estilo que caracteriza as suas elegias, o poeta aproveita para aconselhar a nudez na prática do amor.

aprende que em amor os olhos são quem manda

 

e também declarar a eterna paixão por Cíntia, a amada. Corroborando aquilo que foi uma sua escolha de vida, defende a opção pelo amor em detrimento da glória pela guerra, pois, como na  elegia 5 do livro III escreveu a abrir:

 

Pacis Amor deus est, pacem veneramur amantes:

 

O Amor é um deus de paz. / Só a paz veneramos /nós outros, os amantes.

 

(tradução de David Mourão-Ferreira)

 

Entrego-vos a um extenso fragmento da elegia 15 do Livro II, a qual possui um total de 52 versos,  numa bela versão de David Mourão-Ferreira (1927-1996).

A Cíntia

 

Oh, que feliz me sinto! Ó noite assinalável

com uma pedra branca! E tu, pequena cama,

p’lo prazer que me deste, eis-te santificada…

Que murmúrios, à luz duma velada lâmpada!

E que luta, depois com a luz apagada!

Tão breve ao meu ardor a túnica interpunha,

como, de seios nus, comigo enfim lutava!

Se me via a dormir, logo os lábios depunha

em meus olhos, dizendo: “Indolente, assim jazes?…”

E os braços de nós dois renovavam abraços;

e meus beijos sem fim detinham-se em teus lábios.

 

É Vénus profanar amarmo-nos na treva:

aprende que em amor os olhos são quem manda.

Ao tê-la visto nua abandonar o leito

é que Páris, então, por Helena se inflama…

E Endimião vai nu ante a irmã de Febo

e nus, ele e a deusa, assim vão para a cama…

Se te obstinas tu a deitar-te vestida,

toda te rasgarei: sentirás minhas mãos…

E mais longe eu hei-de ir, se o furor me domina:

há-de ver-te marcada a tua própria mãe!

Deixa esse pudor a quem já teve filhos,

tu que não tens sequer descaídas as mamas…

Mas nós, enquanto o Fado assim o determina,

sigamos com amor os olhos saciando!

E venha então a noite; e que nunca termine…

E que o dia jamais tenha dia seguinte!

 

 

É errado supor que o amor tenha fim:

o verdadeiro amor, esse, nunca termina.

Desentranhe-se a terra em frutos inesperados,

agitem-se no Sol os mais negros cavalos,

à nascente retorne o volume dos rios,

fiquem secos no mar os húmidos abismos:

nem mesmo assim darei a outra o meu amor,

pois vivo lhe pertenço, e lhe pertenço morto.

 

Possa eu, a seu lado, iguais noites passar,

terei a ilusão de que sou imortal:

a ilusão de haver longamente vivido,

mesmo que só me reste um só ano de vida!

Se toda a gente assim desejasse estar vivo,

não ‘staríamos nós de outros erros cativos:

e nem armas cruéis nem navios de guerra

manteriam em Roma os cuidados que a cercam.

 

Elegias, Livro II, 15, vv. 1-26 e 29-46

 

Notícia bibliográfica

 

Tradução de David Mourão-Ferreira in Vozes da Poesia Europeia – I, Colóquio Letras nº163, Janeiro-Abril de 2003.

 

Aproveito para indicar ao leitor curioso a magnífica edição dos quatro livros de Elegías de Propércio com o texto latino e tradução em espanhol (pois desconheço qualquer integral em portugês) preparada por Francisco Moya e António Ruiz de Elvira, em edição Cátedra, Madrid, 2001.

 

Para interessados na História da Literatura de Roma Antiga, a edição da FCG da obra do mesmo nome, com direcção de Mario Citroni, é companhia indispensável. Edição em Lisboa, 2006.

O Livro da Vida por António Feijó

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India sec XIX maternidadeA

Vai do nascer ao morrer em cada um de nós, na presença ou na memória, a mãe, razão e mistério de quem somos no acaso da vida.

 

Há um recato que me exigo ao assinalar no blog o Dia da Mãe. E se às mulheres é possível a simultaneidade de serem filhas e mães e com isso viver os sentimentos cruzados que daí derivam, aos homens apenas resta o sentimento filial, e nele incluir o espanto da graça de existir.

 

Por este Dia da Mãe que hoje se comemora em Portugal transcrevo de António Feijó (1859-1917) o poema O Livro da Vida, lição de que à vida, mais vale vivê-la que procurar-lhe nos livros o sentido. Mas é bom seguir na vida acompanhado pelos livros: na experiência dos outros encontramos muito do que em nós por vezes é incompreensível, e a poesia torna evidente.

 

O Livro da Vida

 

Absorto, o Sábio antigo, estranho a tudo, lia…

— Lia o “Livro da Vida, — herança inesperada,

Que ao nascer encontrou, quando os olhos abria

Ao primeiro clarão da primeira alvorada.

 

Perto dele caminha, em ruidoso tumulto,

Todo o humano tropel num clamor ululando,

Sem que ele de sobre o Livro erga o seu magro vulto,

Lentamente, e uma a uma, as suas folhas voltando.

 

Passa o estio, a cantar; acumulam-se invernos;

E ele sempre, — inclinada a dorida cabeça, —

A ler e a meditar postulados eternos,

Sem um fanal que o seu espírito esclareça!

 

Cada página abrange um estádio da Vida,

Cujo eterno segredo e alcance transcendente

Ele tenta arrancar da folha percorrida,

Como da mina obscura a pedra refulgente.

 

Mas o tempo caminha; os anos vão correndo;

Passam as gerações; tudo é pó, tudo é vão…

E ele sem descansar, sempre o seu Livro lendo!

E sempre a mesma névoa, a mesma escuridão.

 

Nesse eterno cismar, nada vê, nada escuta:

Nem o tempo a dobrar os seus anos mais belos,

Nem o humano sofrer, que outras almas enluta,

Nem a neve do inverno a pratear-lhe os cabelos!

 

Só depois de voltada a folha derradeira,

Já próximo do fim, sobre o livro, alquebrado,

É que o Sábio entreviu, como numa clareira,

A luz que iluminou todo o caminho andado…

 

Juventude, manhãs de Abril, bocas floridas,

Amor, vozes do lar, éstos do sentimento,

— Tudo viu num relance em imagens perdidas,

Muito longe, e a carpir, como em nocturno vento.

 

Mas então, lamentando o seu estéril zelo,

Quando viu, a essa luz que um instante brilhou,

Como o Livro era bom, como era bom relê-lo,

Sobre ele, para sempre, os olhos cerrou…

 

in Sol de Inverno, ultimos versos, (1915), Aillaud & Bertrand, Paris-Lisboa, 1922

 

A imagem de abertura mostra uma escultura proveniente da Índia, talvez do século XIX.

A Ceifeira, poema de Luís Augusto Palmeirim com passagem por Sophia

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Ceifeiras 1929-33Em outros artigos do blog já referi o que de relevante me pareceu sobre a poesia de Luís Augusto Palmeirim (1825-1893) e o contexto de época em que a escreveu. Hoje venho com um poema onde um tipo de mulher do povo se elogia — A Ceifeira, num tempo em que apenas as burguesas eram matéria de inspiração poética.  

 

Profissão felizmente extinta pela tecnologia, a ceifa era uma actividade duríssima e sobre ela temos vasta produção literária no século XX, sobretudo entre os escritores neo-realistas. Nas lutas dos trabalhadores rurais por melhores condições de vida coube a uma ceifeira, Catarina Eufémia (1928-1954), o destino de heroína, ao cair morta às balas da polícia. É a esta mulher, a certa altura tornada símbolo, que Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004) dedica um poema belíssimo e simultaneamente uma notável reflexão sobre Justiça e ser Mulher — inocência frontal que não recua:

 Mulher com pau vermelho 1932-33

Catarina Eufémia

 

O primeiro tema da reflexão grega é a justiça

E eu penso nesse instante em que ficaste exposta

Estavas grávida porém não recuaste

Porque a tua lição é esta: fazer frente

 

Pois não deste homem por ti

E não ficaste em casa a cozinhar intrigas

Segundo o antiquíssimo método oblíquo das mulheres

Nem usaste de manobra ou de calúnia

E não serviste apenas para chorar os mortos

 

Tinha chegado o tempo

Em que era preciso que alguém não recuasse

E a terra bebeu um sangue duas vezes puro

 

Porque eras a mulher e não somente a fêmea

Eras a inocência frontal que não recua

Antígona poisou a sua mão sobre o teu ombro no instante em que morreste

E a busca da justiça continua

 

Publicado em Dual, 1972, transcrito de Obra Poética, Editorial Caminho, Lisboa, 2011.

Raparigas no campo 1928É outro o universo em que o poema de Luís Augusto Palmeirim se move. É a graça feminil da mulher que o poeta canta, realçando como valores de beleza, ao contrário do estereótipo da época, a pele trigueira, queimada pelo sol.

A Ceifeira

 

Há quem diga por inveja

Que és feia por ser trigueira;

Dizem as damas da corte,

Deixai-as dizer ceifeira.

 

Quisera que elas te vissem

Feita senhora festeira,

Que me dissessem depois,

Se eras ou não feiticeira!

 

Que vissem com que requebros

Tu vais a mercar na feira,

Que vissem como inocente

Vais depois pular na eira.

 

Mariquinhas de olhos pretos,

Mimosa—gentil ceifeira,

És bela por caprichosa,

És linda por ser trigueira.

 

Hei-de ir à festa e de longe

Ver-te na dança ligeira,

A ver se coras na dança,

A ver se tens quem te queira.

 

Hei-de ir depois alcançar-te

No atalho, mesmo à beira,

E dizer-te que na dança

Eras gentil, a primeira.

 

A dizer-te que eras linda

Como aurora prazenteira;

A contar-te que na festa

Eras só, sem companheira.

 

A contar-te que não perdes

Por te chamarem trigueira,

A ti, rainha da festa

Mimosa—gentil ceifeira.

 

A ti que eu vi assentada

Ontem à noite à lareira,

Crendo deveras num conto,

Num conto de feiticeira.

 

A ti que vergas a cinta,

Como se verga a palmeira,

Que tens escrita no rosto

Inspiraçâo verdadeira.

 

A ti que dormes com o Cristo  

Pendente da cabeceira;

Que só choraste na vida,

Uma vez—por brincadeira!

 

A quem chamam, por inveja,

A Mariquinhas trigueira;

Porque sabem que és de todas

A mais mimosa ceifeira!

 

Porque tens nos olhos negros

O condão de dar cegueira,

A quem os fita de perto,

Com atenção verdadeira.

 

Só te falta alva capela,

Das flores da laranjeira,

Que a todos diga que a noiva

Era ainda há pouco a festeira.

 

Que nos dê a triste nova,

Que pela vez derradeira,

Vemos de perto tão perto

Aquela fronte fagueira.

 

A quem as mais, por despique,

Vendo a formosa ceifeira,

Diziam — coitada dela

Sendo assim morre solteira!

 

Transcrito de Poesias, 1ª edição, Imprensa Nacional, 1851.

Modernizei a ortografia.

Ceifeiras

No confronto destes poemas surge, gritante, a distância entre a exigência intelectual que a poesia pode ser e ter, e a graciosidade rítmica que consola o leitor poupando-o ao “enfado” da reflexão. E nesse confronto medimos também a distância que separa hoje o gosto do leitor, do gosto dos leitores de há 150 anos, se tivermos em conta quanto ambos os poetas foram populares no tempo que viveram.

 

Acompanham o artigo imagens de pinturas de Kasimir Malevitch (1879-1935).

 

Van Gogh — os auto-retratos

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1889 Agosto

Foram numerosos os auto-retratos pintados por Vincent van Gogh (1853-1890) nos últimos anos de vida. Atenho-me aos retratos realizados nos anos 1887-1889.

1887 Março-Abril aPara o período destes auto-retratos, as circunstâncias de biografia de van Gogh são conhecidas: a instalação em Arles com o propósito de criar uma comunidade de artistas, as dificuldades em vender obras suas, o conflito com Paul Gauguin, o corte da orelha e os episódios de insânia; e  têm ocupado biógrafos e leitores, colocando a fruição das obras na perspectiva da vida do artista.

1888 Setembro  - dedicado a GauguinAo vê-las, interessa-me sobretudo o confronto da técnica com o poder expressivo das imagens, dando conta de uma complexidade de sentimentos através de uma paleta irrealista e de uma pincelada visivelmente ostensiva, que acrescenta drama ao olhar o retratado.

1887 Verão  c

Sendo sempre o mesmo homem, retrato a retrato seguimos entre a placidez e a determinação, até mesmo à obstinação, e à tragédia da loucura, tomando consciência da fragilidade dos fios que nos prendem a um quotidiano tranquilo.

1887 verão b

São no seu conjunto uma intensa experiência para o olhar.

1886-87 InvernoVê-las cria no espectador uma complexa emoção entre a absoluta genialidade pictórica das obras, a reflexão sobre as contingências da vida que dali transparece, e o sentido das escolhas que fazemos pela vida fora.

1887-88 inverno

1888 Janeiro

1887 Verão d

1887 Verão

1888 Agosto

1889 Setembro

1887 Primavera

A alma com o coração nas mãos — iluminura medieval e poema de Rabindranath Tagore

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Iluminura 07 750px

Na transbordante imaginação pictórica escondida nos manuscritos medievais encontram-se prodígios a que a simbologia do figurado acrescenta uma dimensão metafísica incomparável.

 

Hoje mostro o que será uma representação da alma segurando entre as mãos o coração.

A alma, na forma de mulher-anjo (não sei de “anjas” na mitologia cristã) com asas coloridas, acaricia e interroga(?) o coração. Afinal, o que permanentemente fazemos: Vamos atrás do coração? Seguimos a razão? Ou deixamos que a alma faça a síntese e encontre o caminho que a ambos satisfaz?

 

Exemplar meditação representada, olhemos. E no olhar pensemos: onde está a beleza do mundo que à volta da alma meditativa gira. Em nós está o quê? Como caminhamos neste mundo e dele faremos parte?

 

Boa Páscoa!

Deixo-vos com um poema de Rabindranath Tagore (1861-1941)

 

 

Não voltes atrás

 

Se os portais do meu coração

Estiverem sempre fechados,

Rebenta-os e entra na minha alma,

Senhor, não voltes para trás.

 

Se um dia destes as cordas da minha harpa

Não ressoarem com o teu nome,

Na tua espera digna de piedade,

Senhor, não voltes para trás.

 

Se quando me chamares

A sonolência do meu sono não passar,

Bate-me e acorda-me com o teu trovão,

Senhor, não voltes para trás.

 

Se um dia destes no teu trono

Eu colocar alguém sem pensamentos,

Meu eterno Rei,

Não voltes para trás!

 

Tradução de José Agostinho Baptista

in Rabindranath Tagore, Poesia, Assírio & Alvim, Lisboa, 2004.

 

Nota sobre a pintura

 

Título: A alma dialogando com o seu coração

Pintura sobre pergaminho integrante do livro Mortifiement de vaine plaisance, de René d’Anjou, cerca de 1460.

Fólio 31 do manuscrito 165 da colecção do Fitzwilliam Museum, Cambridge (Mass.).

TARDE VOS AMEI — Agostinho de Hipona

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Rogier van der WEYDEN - Deposição 9São ínvios os caminhos entre a razão e a crença. Matéria de fé e reserva de cada um, a Paixão de Cristo que o calendário cristão assinala faz-me trazer ao blog a evocação de Santo Agostinho (364-430) sobre a sua conversão cristã e a necessidade de Deus; e arquivar no blog as prodigiosas imagens da pintura de  Rogier van der Weyden (1400-1464), Deposição de Cristo, do Museu do Prado, pintada cerca de 1435.

Rogier van der WEYDEN - Deposição 2

TARDE VOS AMEI

 

Tarde Vos amei, Ó Beleza tão antiga e tão nova, tarde Vos amei.

Habitáveis longamente dentro de mim, e eis-me lá fora a procurar-Vos.

Dispersava-me entre as formosuras que criastes.

Estáveis já comigo, sem que eu estivesse convosco!

Demorava-me naquilo que não existiria se não existisse por Vós.

Até que rompestes minha surdez, chamando por mim com voz tão forte.

Brilhastes, cintilastes por dentro da minha cegueira.

Exaltastes perfume: respirei-o e desejei-Vos com todas as forças.

Saboreei-Vos, e agora padeço de fome, morro de sede.

Tocastes-me, e sem a Vossa paz, sei que nunca mais terei paz!

 

Agostinho de Hipona

Rogier van der WEYDEN - Deposição 5

Rogier van der WEYDEN - Deposição 6

Rogier van der WEYDEN - Deposição 7

Rogier van der WEYDEN - Deposição 8

 

Rogier van der WEYDEN - Deposição 3

Rogier van der WEYDEN - Deposição 1

 

Ricardo Reis — Se recordo quem fui, outrem me vejo

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O filósofo e o poeta

Tem sido frequente confrontar-me com a memória de mim nos outros e surgir um sentimento de estranheza, ou dizendo com Ricardo Reis, o heterónimo de Fernando Pessoa:

 

Se recordo quem fui, outrem me vejo,

E o passado é um presente na lembrança.

 

A vida vivida aos vinte anos é marca indelével no percurso de cada homem ou mulher. Sabemo-lo quando, passados os cinquenta anos, olhamos para o caminho percorrido e a evidência surge: não vamos voltar a percorrê-lo. O que ficou por fazer não mais se fará.

 

Quem fui é alguém que amo

Porém somente em sonho.

 

Ter tido vinte anos em 1974, permitiu-me e a toda uma geração, viver no furacão dos dias, as ideias e as experiências que em outras conjunturas demorariam anos a acontecer ou nem aconteceriam.

 

quem sou e quem fui

São sonhos diferentes

Ter tido vinte anos em Abril e ser estudante universitário em Portugal permitiu já saber o valor das escolhas: a escolha de divergir das ideias toleráveis e enfrentar a prisão por delito de opinião, a escolha de ir à guerra com o prémio da própria vida.

 

Ganhámos, toda uma geração, a consciência, impregnada na própria pele, de que nada vale o direito de estar vivo e livre para fazer as escolhas que a vontade de cada um ditar.

 

E a saudade que me aflige a mente

Não é de mim nem do passado visto,

Senão de quem habito

Por trás dos olhos cegos.

 

Não sei como se ensina a quem sempre viveu em liberdade e na vida caminhou com estes valores, tendo-os por tão naturais como beber água, que não são naturais. São como bonecas de porcelana, que à menor distracção ou descuido se partem e deixam de existir. Provavelmente apenas ser cerceado deles permite dar-lhes o valor, e cada geração tem que fazer a sua dolorosa aprendizagem.

 

Nada, senão o instante, me conhece.

 

Despeço-me com o poema que por entre a conversa citei.

 

 

Ricardo Reis — Poema 104

 

Se recordo quem fui, outrem me vejo,

E o passado é um presente na lembrança.

Quem fui é alguém que amo

Porém somente em sonho.

E a saudade que me aflige a mente

Não é de mim nem do passado visto,

Senão de quem habito

Por trás dos olhos cegos.

Nada, senão o instante, me conhece.

Minha mesma lembrança é nada, e sinto

Que quem sou e quem fui

São sonhos diferentes

 

26-05-1930

 

in Ricardo Reis, Poesias, edição Manuela Parreira da Silva, Assírio & Alvim, Lisboa, 2000.

Sonhos, Um sonho — poemas de Edgar Allan Poe

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Dalí -  Segundo a cabeça de Juliano de Medicis em Florença - 1982

Sonhos! Que à vida dão tenaz matiz,

Sonhos, desejo de acontecimentos, são eles que nos movem, fazendo-nos, e ao mundo, mudar com eles. Mas não é destes sonhos que os dois poemas de Edgar Allan Poe (1809-1849) nos falam. Antes remetem para a nostalgia do vivido: Ah, que fosse sempre um sonho a mocidade!

 

É complexo o nosso eu interior, e na multiplicidade significante dos sonhos muitas vezes nos enleamos. Não tanto nos sonhos para onde o sono nos leva e a psicanálise escrutina, mas naquele acordado sonhar que nos confunde e por vezes faz misturar indistintamente desejo e realidade, afastando-nos do pragmatismo que permite traçar o caminho entre o sonho e a sua materialização.

Que faz senão sonhar sempre acordado / Aquele que olha de soslaio / As coisas em redor, e com um raio / Apontado para o passado?

 

Demos à vida o sonho. Que mais podia haver de tão brilhante / No astro claro da Verdade?

 

Sonhos

 

Ah, que fosse sempre um sonho a mocidade!

E minha alma apenas despertasse à luz

Da manhã que vem com a eternidade;

Sim! pesasse o sonho embora como cruz,

Melhor me serviria ao coração

(Desde sempre, nesta terra de dormência,

Um caos de tumulto e funda paixão…)

Do que a vida desperta da existência.

 

Oh, pudesse ser assim… um sonho eterno

E constante… como esses que eu tive, incríveis,

Em rapaz… se tais coisas fossem possíveis,

Para quê querer ainda o Céu superno!

Pois em sonhos gozei a chama do Verão

No azul celeste, nos campos brilhantes…

Sem pejo, deixei o próprio coração

Em climas por mim criados… tão distantes

Do meu próprio lar, com ideias dos seres

Que eu inventava… oh, que mais podia eu ver?

 

Por uma vez, só uma… e essa hora ousada

Jamais posso eu esquecer (uma energia

Me tinha encantado)… houve uma brisa fria

Que desceu à noite e deixou, de abalada,

Sua forma em minha alma… ou o clarão

Da lua — quem sabe? — gelou o meu sono,

Ou os astros… ou o que fosse… esse sonho

Foi como o vento à noite… que passe então.

 

Embora num só sonho… eu fui feliz,

Fui tão feliz… E eu amo essa tontura…

Sonhos! Que à vida dão tenaz matiz,

Ou propiciam a contenda obscura

Da símile face ao real — e à vista

Delirante trazem coisas mais formosas

Do Céu e do Amor (e são nossas conquistas!)

Do que jamais as teve a Esperança radiosa.

 

Um Sonho

 

Em visões do breu nocturno e incerto

Sonhei com o prazer de outrora…

Mas um sonho desperto, pela aurora,

Deixou-me o coração deserto.

 

Que faz senão sonhar sempre acordado

Aquele que olha de soslaio

As coisas em redor, e com um raio

Apontado para o passado?

 

Aquele sonho santo… visionário,

Enquanto o mundo escarnecia,

Me acalentou, tal chama que irradia

Guiando uma alma solitária.

 

E embora aquela luz, na tempestade

E breu, tremesse lá distante…

Que mais podia haver de tão brilhante

No astro claro da Verdade?

 

Tradução de Margarida Vale de Gato

in Edgar Allan Poe, Obra Poética Completa, Edições tinta-da-china, Lisboa, 2009.

A imagem de abertura respeita a uma pintura de Salvador Dalí (1904-1989), Segundo a cabeça de Juliano de Medicis em Florença, de 1982.

Vida e Destino com Ricardo Reis

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Gerhard Richter Abstracção 1990 (2)

A realidade

Sempre é mais ou menos

Do que nós queremos.

 

Parafraseando Camilo Castelo Branco, diria que os leitores do blog são bons e pacientes, mas também querem não ser tentados a perder essas excelentes qualidades, por isso deixo de lado as obscuridades poéticas com que me tenho ocupado, e dei exemplo nos últimos artigos, e regresso a Fernando Pessoa na forma do seu heterónimo Ricardo Reis.

Num pequeno grupo de poemas criados de 1916 a 1933, lemos diferentes pontos de vista sobre vida e destino consubstanciáveis nos versos Com que vida encherei os poucos breves / Dias que me são dados?

e que abrem o primeiro poema escolhido.

Mais à frente duas reflexões sobre carpe diem — goza o dia —no poema 61 de 1923:

Goza este dia como / Se a Vida fosse nele.,

e no poema 144 de 1933:

No mesmo hausto / Em que vivemos, morreremos. Colhe / O dia, porque és ele.

Oscilando entre desejar o gozo do efémero e a consciência de viver uma vida Que nem quero nem amo, / Minha porque sou ela. (Poema 145), acontece a recomendação Vê de longe a vida. / Nunca a interrogues. / Ela nada pode /Dizer-te. (Poema 34).

Porque a vida, felizmente, não nos surge sempre da mesma cor, terminemos com um desejo:

Sob a leve tutela / De deuses descuidosos, /Quero gastar as concedidas horas / Desta fadada vida. (poema 170),  

Conduzi a dança, ninfas singelas / Até ao amplo gozo / Que tomais da vida. (poema171).

Feito o intróito, seguem-se os poemas.

Gerhard Richter Abstracção 1991

67

 

Com que vida encherei os poucos breves

Dias que me são dados? Será minha

A minha vida ou dada

A outros ou a sombras?

 

À sombra de nós mesmos quantas vezes

Inconscientes nos sacrificamos,

E um destino cumprimos

Nem nosso nem alheio!

 

Porém nosso destino é o que for nosso,

Quem nos deu o acaso, ou, alheio fado,

Anônimo a um anônimo,

Nos arrasta a corrente.

 

Ó deuses imortais, saiba eu ao menos

Aceitar sem querê-lo, sorridente,

O curso áspero e duro

Da strada permitida.

 

5-5-1925

Gerhard Richter Abstracção 1994 (2)

61

De uma só vez recolhe

As flores que puderes.

Não dura mais que até à noite o dia.

Colhe de que lembrares.

 

A vida é pouco e cerca-a

A sombra e o sem-remédio.

Não temos regras que compreendamos,

Súbditos sem governo.

 

Goza este dia como

Se a Vida fosse nele.

Homens nem deuses fadam, nem destinam

Senão que  ignoramos.

 

24-10-1923

Gerhard Richter Abstracção 1992

144

Uns, com os olhos postos no passado,

Vêem o que não vêem; outros, fitos

Os mesmos olhos no futuro, vêem

O que não pode ver-se.

 

Porque tão longe ir pôr o que está perto —

O dia real que vemos? No mesmo hausto

Em que vivemos, morreremos. Colhe

O dia, porque és ele.

 

28-8-1933

Gerhard Richter Abstracção 1993 (2)

145

Súbdito inútil de astros dominantes,

Passageiros como eu, vivo uma vida

Que nem quero nem amo,

Minha porque sou ela.

 

No ergástulo de ser quem sou, contudo,

De em mim pensar me livro, olhando no atro

Os astros que dominam,

Submisso de os ver brilhar.

 

Vastidão vã que finge de infinito

(Como se o infinito se pudesse ver!) —

Dá-me ela a liberdade?

Como, se ela a não tem?

 

19-11-1933

Gerhard Richter Abstracção 1995 (3)

34

Segue o teu destino,

Rega as tuas plantas,

Ama as tuas rosas.

O resto é a sombra

De árvores alheias.

 

A realidade

Sempre é mais ou menos

Do que nós queremos.

Só nós somos sempre

Iguais a nós-próprios.

 

Suave é viver só.

Grande e nobre é sempre

Viver simplesmente.

Deixar a dor nas aras

Como ex-voto aos deuses.

 

Vê de longe a vida.

Nunca a interrogues.

Ela nada pode

Dizer-te. A resposta

Está além dos Deuses.

 

Mas serenamente

Imita o Olímpo

No teu coração.

Os deuses são deuses

Porque não se pensam.

 

1-7-1916

Gerhard Richter Abstracção 1994 (3)

170

Sob a leve tutela

De deuses descuidosos,

Quero gastar as concedidas horas

Desta fadada vida.

 

Nada podendo contra

O ser que me fizeram,

Desejo ao menos que me haja o Fado

Dado a paz por destino.

 

Da verdade não quero

Mais que a vida; que os deuses

Dão vida e não verdade, nem talvez

Saibam qual a verdade.

171

Sob estas árvores ou aquelas árvores

Conduzi a dança,

Conduzi a dança, ninfas singelas

Até ao amplo gozo

Que tomais da vida. Conduzi a dança

E sê quasi humanas

Com o vosso gozo derramado em ritmos

Em ritmos solenes

Que a vossa alegria torna maliciosos

Para nossa triste

Vida que não sabe sob as mesmas árvores

Conduzir a dança…

Gerhard Richter Abstracção 1995

in Ricardo Reis, Poesias, edição Manuela Parreira da Silva, Assírio & Alvim, Lisboa, 2000.

Acompanham os poemas imagens de pinturas de Gerhard Richter (1932), tituladas todas abstracção, e pintadas entre 1990 e 1995.

Gerhard Richter Abstracção 1995 (2)

As horas de prazer voam ligeiras — sonetos de Joaquim Severino Ferrás de Campos

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Lagrenee - Echo e NarcisusA

Ainda que os leitores do blog, na sua maioria, permaneçam indiferentes a esta poesia antiga em que a suavidade do amor, seus prazeres e desenganos se espraia, continuo a mostrá-la depois de mais de duzentos anos guardada em livros raros. Hoje é mais um dos poetas da Nova Arcádia, Joaquim Severino Ferrás de Campos (1760-1813), Alcino Ulisiponense, de seu nome arcádico. Amigo de Bocage e do poeta Bingre, a sua poesia mereceu a ambos o elogio poético, e o comentário de Pato Moniz, de que alguma dela seria superior à poesia de Reis Quita.

A sua obra poética foi em grande parte reunida no volume Rimas, de onde transcrevo três sonetos. Neles, respira-se a mesma qualidade da poesia amorosa quinhentista ainda que envolvida por vezes na capa pastoril do edonismo arcádico. A todos subjaz uma filosofia do prazer: Enquanto o Fado nos concede a vida / De amor doces prazeres desfrutemos,

ainda que temperado pelo doce sofrimento do amor: Meu prazer em pesar foi convertendo; / … / Hoje levo a chorar um dia inteiro.

 

 

A um primeiro soneto com o enlevo do amor repassado de tristeza pela ausência da amada Lília:

O silêncio em que jaz a natureza /… /Me imprime na cansada fantasia / Mil saudosas imagens de tristeza.

 

segue-se um soneto onde o poeta lamenta o engano e a ingratidão de uma mesma ou diferente Lília:

 

Quanto iludido andei, quanto indiscreto, / Em crer seus juramentos fabulosos, / Nascidos só dum aparente afecto.

 

Termino com um terceiro soneto de convite a gozar o dia que passa — carpe diem Às nossas almas liberdade dêmos / De se engolfarem na amorosa lida. subordinado ao mote: As horas de prazer voam ligeiras

 

Deixo-vos com os sonetos na totalidade.

 

Soneto VI

 

O silêncio em que jaz a natureza

No mais alto da noite escura, e fria,

Me imprime na cansada fantasia

Mil saudosas imagens de tristeza.

 

Tudo o que encerra a vasta redondeza

A gozar do repouso principia:

Só eu, que o cego amor tenho por guia

Corro após os encantos da beleza.

 

Cheio de mil saudades penetrantes,

Sem ver da minha Lilia o gesto brando,

Envio ao céu suspiros incessantes.

 

E por ir meus pesares mitigando,

Nas estrelas que vejo mais brilhantes

Estou seus lindos olhos contemplando.

 

Soneto X

 

Quantas vezes à sombra deste ulmeiro,

Que nas águas do Tejo se está vendo,

De Lilia no regaço adormecendo

Bendisse o meu ditoso cativeiro.

 

Mas quão depressa o Fado lisonjeiro

Meu prazer em pesar foi convertendo;

De Lilia a ingratidão, oh crime horrendo!

Hoje levo a chorar um dia inteiro.

 

Quanto iludido andei, quanto indiscreto,

Em crer seus juramentos fabulosos,

Nascidos só dum aparente afecto.

 

Mas quem diria, oh Numes rigorosos,

Que haviam empregar-se em torpe objecto

Olhos tão meigos, olhos tão formosos.

 

Mote

 

As horas de prazer voam ligeiras

 

Soneto XXI

 

Enquanto o Fado nos concede a vida

De amor doces prazeres desfrutemos,

Às nossas almas liberdade dêmos

De se engolfarem na amorosa lida.

 

Deixa temores vãos, Laura querida,

E já que a sorte quer que nos amemos,

Vindoiros infortúnios arrostemos,

Que o dano, a um puro amor, não intimida.

 

Eu jurei de ser teu, tu de ser minha,

Promessas tais, meu Bem, são verdadeiras;

Guardado Amor para te amar me tinha.

 

Esquivar-te à ternura, ah não, não queiras;

Que o tempo corre, a morte se avizinha,

As horas do prazer voam ligeiras.

 

 

Fado é usado nos soneto com o significado de sorte;

Lisonjeiro é no soneto usado com o significado de atractivo, gostoso, aprazível;

Indiscreto significa no soneto imprudente;

(v. Dicionário de Morais)

 

Sonetos transcritos de RIMAS de Joaquim Severino Ferrás de Campos, na Oficina de Thaddeo Ferreira, Lisboa, 1794.

Modernizei a ortografia.