Procura-se mulher em poema de Toni Montesinos Gilbert

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Lucien Freud - Man with a Feather (Self-portrait) 1943 600px

Nos nossos dias, e a ter em conta os poetas, o amor é tudo menos romântico. Será um aconchego de corpos, será uma renúncia à solidão, será talvez uma exigência social, mas as paixões despidas da razão parecem definitivamente fulgores de outras eras.

 

No poema Anúncio do catalão Toni Montesinos Gilbert (1972) dá-se conta da demanda da mulher ideal para um homem dos nossos dias. O conjunto de quesitos é sedutor, mas falta na lista aquele quid que nos leva dos píncaros de felicidade ao abismo do desespero, numa oscilação que apenas o que convencionámos chamar amor, consegue.

 

O que, porventura, possa existir de irónico no poema, deixo à apreciação dos leitores.

 

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Procuro mulher sincera e cautelosa,

bela, hábil na cozinha e na cama,

de boa linhagem, sabia e eficiente,

que seja cuidadosa, terna, doce,

extrovertida e de aspecto elegante.

 

Que se dispa lentamente e tenha

carta de condução, uma carreira,

olhos grandes e boca muito suave.

 

Nem muitos nem poucos anos: os necessários.

 

Deverá, ainda assim, dar-me alegria.

 

Tem de praticar desporto, e gostar

de música clássica e de leitura;

atenta e sociável com os meus amigos.

 

Não interessa a cor do cabelo,

a raça ou a cultura. Quero apenas amá-la.

Quero que, ao vê-la, a vida comece.

Procuro apenas uma mulher preparada

para viver a minha prolongada morte.

 

Tradução de Manuel de Freitas

Transcrito da revista Telhados de Vidro nº5, Novembro de 2005.

 

Abre o artigo a imagem de um auto-retrato de Lucien Freud (1922-2011) pintado em 1943.

Time Passing, Beloved — poema de Donald Davie

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David Hockney (1937) - Mr. and Mrs. Clark and Percy - 1970-71

Há uma tocante simplicidade na penetrante verdade sobre o amor e o tempo no poema Time Passing, Beloved, (O tempo passa, meu bem) de Donald Davie (1922-1955). Se o tempo tudo apaga, apaga também das memórias o que de amargo o amor viveu, mas a incerteza sobre o futuro, essa é uma indeterminação que permanece, sempre.

 

Infelizmente não conheço, do poema, tradução portuguesa. Deixo o original inglês, certamente acessível à maior parte dos leitores do blog.

 

Time Passing, Beloved

 

Time passing, and the memories of love

Coming back to me, carissima, no more mockingly

Than ever before; time passing, unslackening,

Unhastening, steadily; and no more

Bitterly, beloved, the memories of love

Coming into the shore.

 

How will it end? Time passing and our passages of love

As ever, beloved, blind

As ever before; time binding, unbinding

About us; and yet to remember

Never less chastening, nor the flame of love

Less like an ember.

 

What will become of us? Time

Passing, beloved, and we in a sealed

Assurance unassailed

By memory. How can it end,

This siege of a shore that no misgivings have steeled,

No doubts defend?

 

Transcrito de Collected Poems, Carcanet Press, 1990.

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de David Hockney (1937)Mr. and Mrs. Clark and Percy, 1970-71.

Camões — Catarina bem promete…

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Larry Rivers - Popcorn 1970

É um prazer sempre renovado perder-me na poesia de Camões (1524-10 Junho 1580). Aos poemas familiares que cantam na cabeça nas mais inesperadas situações, e se renovam a cada leitura, acrescentam-se outros, fugazes, que no trivial da ideia nos levam ao encontro do homem por detrás do génio. Desses,  transcrevo hoje três redondilhas em voltas sobre mote, onde de ardências de amor e esquivanças femininas se trata.

 

Começo com um poema de dúbio sentido onde calores masculinos se disfarçam.

Esforçaram-se especialistas em encontrar fundamento histórico para explicar a letra desta redondilha. Por mim é sem questão: é uma gabarolice em torno da firmeza da erecção do poeta e um convite ao acto sem destinatária identificada.

 

Mote

 

Quem disser que a barca pende,

dir-lhe-ei, mana, que mente.

 

 

Volta

 

Se vos quereis embarcar

e para isso estais no cais,

entrai logo; que tardais?

Olhai que está preiamar!

E se outrem, por vos fretar,

vos disser que esta que pende,

dir-lhe-ei, mana, que mente.

 

Esta barca é de carreira,

tem seus aparelhos novos;

não há como ela outra em Povos,

boa de leme e veleira.

Mas, se por ser a primeira,

aos disser alguém que pende,

dir-lhe-ei, mana, que mente.

Notas

V. 12 — Povos — localidade do concelho de Vila Franca, próxima do rio Tejo.

 

Agora, para a doença que ataca homens e mulheres, o conselho com o remédio óbvio: Eu cá sinto a vossa dor / e, se vós sintis a minha, / dai e tomai a mezinha.

O mote explica o assunto do poema de forma cabal.

 

A üa dama que estava doente

 

Mote

 

Da doença em que ardeis

eu fora vossa mezinha

só com vós serdes a minha.

 

 

Voltas

 

É muito para notar

cura tão bem acertada,

que podereis ser curada

somente com me curar.

Se quereis, Dama, trocar,

ambos temos a mezinha:

eu a vossa, e vós a minha.

 

Olhai que não quer Amor

(por que fiquemos iguais),

pois meu ardor não curais,

que se cure vosso ardor.

Eu cá sinto a vossa dor

e, se vós sintis a minha,

dai e tomai a mezinha.

 

Notas

V. 2 — mezinha — remédio

V. 13 — pois — já que; não curais — não tratais.

V. 13-14 — ardor — tomado no duplo sentido de paixão e febre.

 

Termino com as promessas e esquivas de uma Catarina: Mas pois folgais de mentir, / prometendo de me ver, / eu vos deixo o prometer, / deixai-me vós o cumprir: / Haveis então de sentir / quanto fica mais contente / o que cumpre que o que mente.

 

Mote alheio

 

Catarina bem promete…

Eramá! como ela mente!

 

Voltas Próprias

 

Catarina é mais fermosa

para mim que a luz do dia;

mas mais fermosa seria,

se não fosse mentirosa.

Hoje a vejo piadosa;

amanhã tão diferente,

que sempre cuido que mente.

 

Catarina me mentiu

muitas vezes, sem ter lei;

mas todas lhe perdoei

por ûa só que cumpriu.

Se, como me consentiu

falar, o mais me consente,

nunca mais direi que mente.

 

Má, mentirosa, malvada,

dizei: para que mentis?

Prometeis, e não cumpris.

Pois, sem cumprir, tudo é nada.

Não sois bem aconselhada;

que quem promete, se mente,

o que perde não no sente.

 

Jurou-me aquela cadela

de vir, pela alma que tinha.

Enganou-me: tem a minha;

dá-lhe pouco de perdê-la.

A vida gasto após ela

porque ma dá, se promete;

mas tira-ma, quando mente.

 

Tudo vos consentiria

quanto quisésseis fazer,

se esse vosso prometer

fosse por me ter um dia;

todo então me desfaria

convosco; e vós, de contente,

zombaríeis de quem mente.

 

Prometeu-me ontem de vir,

nunca mais apareceu;

creio que não prometeu

senão só por me mentir.

Faz-me enfim chorar e rir:

rio, quando me promete;

mas choro, quando me mente.

 

Mas pois folgais de mentir,

prometendo de me ver,

eu vos deixo o prometer,

deixai-me vós o cumprir:

Haveis então de sentir

quanto fica mais contente

o que cumpre que o que mente.

 

Notas

Eramá! — interjeição usada na língua popular do tempo, como se vê em Gil Vicente, às vezes com a forma ieramá (nota da edição das Redondilhas de Hernani Cidade).

 

V. 13 — cumprir tem na época, entre outros, o sentido de satisfazer, dar satisfação.

V. 15 — o mais me consente — consente-me mais que falar-lhe.

V. 21 — bem aconselhada — de bom conselho, previdente, sensata.

V. 23 — nem sabe o que perde.

V. 24 — cadela — na Comédia de el-rei Seleuco encontra-se este falar namorado: ” Vossos descuidos? Cadela! / Ah, minh’alma  Sois tão bela…”— É possível que o sentido não fosse então meramente depreciativo, como hoje.

V. 33-34 — trocadilho entre vários sentidos: prometer, por me ter, por meter. — no texto o verbo prometer vem sempre grafado com a forma pormeter.

V. 41 — se não só por — a não ser para.

V. 45 — mas pois — mas visto que.

V. 48 — vide nota ao V. 13.

Transcrição dos poemas e notas de Luis de Camões, Lírica Completa I, prefácio e notas de Maria de Lurdes Saraiva, INCM, 1980.

A imagem de abertura mostra uma obra de Larry Rivers (1923-2002).

Esta obscuridade salubre — poema de Ana Hatherly com pintura de Monet

Monet jardins 04 600px

Namorar por jardins é ocupação de bom tempo. Num passeio em que a memória se cruza com o novo, lia eu poesia de Ana Hatherly (1929) quando subitamente um poema se colou à imagem da pintura de Claude Monet (1840-1926) que abre o artigo:

 

 

Esta obscuridade salubre

 

Olha peço-te não venhas assim quando eu estava tão quieta

sentada no jardim e até com óculos

não venhas peço-te

não venhas melindroso e sorrindo

com a cabeça inclinada como um particípio

não venhas

Eu estava já me aproximando

quase tocava a recorrência das coisas

nesse momento eu olhava para o chão e via mesmo cada

pequena pedra saudável

eu estava tão quieta sentada no jardim

Respirava

sentia as veias ligeiramente activas

mas tão ligeiramente

tudo corria fundo em sua sumidade

meus braços tinham apenas o seu peso

sem outras asas

Quando tu vieste sorrindo melindroso e tão salubre

de repente o jardim é a dificuldade essencial da minha

botânica

a minha indústria difícil

o fim que a alma lograda obtém dos corpos

Corro agora por minha alucinação dirigível

minhas tarefas são histriónicas

Eu estava ali tão quieta

estava até com óculos

e tu inclinavas-te como um simulacro

Intui, peço-te

esta obscuridade salubre

esta consternação despenhada

tropeçando pela alma recorrente silva

 

in Eros Frenético, 1968.

Transcrito de Poesia 1958-1978, Moraes Editores, Lisboa 1980.

 

A pintura é um prodígio de sentimento. Um casal, presumivelmente namorados, está de amuo, ou pelo menos ela está amuada, e faz beicinho: vejam-lhe além da boca, o olhar entre triste e desolado. Ele, olhar sardónico, aguarda que as flores oferecidas, abandonadas no banco, façam a reconciliação. Longe, a provável dama de companhia, para manter a decência do encontro, aguarda. Toda a envolvente resplandece, apenas à espera que o arrufo se esfume, o que certamente acontecerá, e para nós que observamos, será coisa de pouca demora, pois esse é o milagre de namorar pelos jardins.

Deixo-vos e volto ao passeio.

Um cego — poema de Jorge Luis Borges e desenho de Barocci

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Anónimo - atribuido a Federico Barocci

Já a propósito do poema Elogia da sombra falei de alguma da poesia de Jorge Luis Borges (1899-1986) sobre a cegueira. Hoje volto com o poema Um cego, o qual, na sua concisão lapidar, dá conta do sentimento de ver, de si, apenas a alma.

É este apenas ver a alma, a que quem é cego está remetido, algo de enorme dificuldade na representação gráfica.

O desenho que abre o artigo, de autor anónimo e atribuído ao pintor italiano quinhentista Federico Barocci (1528-1602), é um dos raros exemplos de representação exemplar de cegueira humana. Mas o desenho tem mais: tem um homem de quem quase conseguimos saber tudo, apesar de a representação não mostrar a alma pelo olhar, caminho da empatia no ver. É o inacabado do cabelo e barba que permite o destaque de todo o rosto, na pungente expressão de um provável e desolado sofrimento. Pouco diferirá da ira muda, fatigada, aflita, que Borges refere no poema que a seguir se lê

 

Um cego

 

Não sei qual é a face que me fita

Quando observo a face de algum espelho;

No seu reflexo espreita-me esse velho

Com ira muda, fatigada, aflita.

Lento na sombra, com as mãos exploro

Meus invisíveis traços. O mais belo

Fulgor me atinge. Vi o teu cabelo

Que é já de cinza ou é ainda de ouro.

Repito que perdi unicamente

A superfície sempre vã das coisas.

O consolo é de Milton e é valente,

Mas eu penso nas letras e nas rosas,

Penso que se pudesse ver a cara

Saberia quem sou na tarde rara.

 

Tradução de Fernando Pinto do Amaral

in Obras Completas III, 1975-1985, Editorial Teorema, 1998

 

Un Ciego

 

No sé cuál es la cara que me mira

cuando miro la cara del espejo;

no sé qué anciano acecha en su reflejo

con silenciosa y ya cansada ira.

Lento en mi sombra, con la mano exploro

mis invisibles rasgos. Un destello

me alcanza. He vislumbrado tu cabello

que es de ceniza o es aún de oro.

Repito que he perdido solamente

la vana superficie de las cosas.

El consuelo es de Milton y es valiente,

pero pienso en las letras y en las rosas.

Pienso que si pudiera ver mi cara

sabría quién soy en esta tarde rara.

 

Transcrito de Poesía completa, Debolsillo, Barcelona, 2013.

 

O desenho pertence à colecção da Galeria Albertina de Viena.

Retratos extraordinários — O Bar de Maurice Vlaminck

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Vlaminck_Maurice_de-The_Bar 1900

Poucas vezes a pintura conseguiu com a economia figurativa deste O Bar, pintado por Maurice Vlaminck (1876-1958) em 1900, dar conta de um universo intuído na segurança do olhar frontal da mulher que encostada a um balcão onde um cocktail vermelho pousa, cigarro descaído ao canto da boca, fita o observador —nós— possíveis clientes, eventualmente polícias de bons costumes, enfim, toda a panóplia humana que corre fora da afirmação desta vida por opção.

É apenas a rugosidade da pincelada que assegura a atmosfera e conduz o olhar: do cabelo à flor do casaco.

Na distribuição espacial dos volumes, e tão só uma linha diagonal chega para transmitir profundidade, é a posição do tronco e cabeça, a lembrar A Dama do arminho de Leonardo da Vinci, que, na curva do peito guiam o observador para o vago fundo onde se intui a gente que povoa o bar. E uma ínfima paleta de amarelo, vermelho, branco e preto, a que laivos de azul se juntam, aplicada sobre um desenho sumário, transforma a pintura numa obra inesquecível.

Um poema de Manuel António Pina

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George Segal  - Alice Listening to Her Poetry

No princípio era o Verbo

(e os açucares

e os aminoácidos).

Depois foi o que se sabe.

Neste deambular a que a poesia convida, sucedo ao poema de Olavo Bilac, onde Adão convida Eva à aventura do pecado, e que não é outra senão a vida da humanidade, com um poema de Manuel António Pina (1943-2012), Neste Preciso Tempo, Neste Preciso Lugar.

 

É curta e assombrada pela dor a obra poética de Manuel António Pina. Nela a morte espreita a cada poema, de par com a reflexão sobre as palavras (inúteis) que enchem o mundo e a nostalgia do silêncio que a eternidade, no seu sono, devolve. Entretanto, e homens por cá, da vida vivida, o passado, não temos fuga, a menos que a desmemória nos atinja. Felizmente não guardamos tudo, e do que fica fala-nos o poema:

 

Por onde vens, Passado,

pelo vivido ou pelo sonhado?

Que parte de ti me pertence,

a que se lembra ou a que esquece?

 

Saberá cada um de nós com o que conta, mas para lhe aliviar o peso lá virá o momento em que …em vez de metafísica / ou de biologia… nos dê para qualquer outra coisa, não necessariamente poesia, como ao poeta, mas uma atitude igualmente salutar: …passar-lhe ao lado / deitando-lhe o enviesado / olhar da ironia.

 

Passemos ao poema sem mais, seja ironia ou cortes abusivos.

 

Neste Preciso Tempo, Neste Preciso Lugar

 

No princípio era o Verbo

(e os açucares

e os aminoácidos).

Depois foi o que se sabe.

Agora estou debruçado

da varanda de um 3º andar

e todo o Passado

vem exactamente desaguar

neste preciso tempo, neste preciso lugar,

no meu preciso modo e no meu preciso estado!

 

Todavia em vez de metafísica

ou de biologia

dá-me para a mais inespecifica

forma de melancolia:

poesia nem por isso lírica

nem por isso provavelmente poesia.

Pois que faria eu com tanto Passado

senão passar-lhe ao lado

deitando-lhe o enviesado

olhar da ironia?

 

Por onde vens, Passado,

pelo vivido ou pelo sonhado?

Que parte de ti me pertence,

a que se lembra ou a que esquece?

Lá em baixo, na rua, passa para sempre

gente indefinidamente presente,

entrando na minha vida

por uma porta de saída

que dá para a memória.

Também eu (isto) não tenho história

senão a de uma ausência

entre indiferença e indiferença.

 

Transcrito de Poesia Reunida, Assirio & Alvim, Lisboa, 2001.

Abre o artigo a imagem de uma escultura de George Segal (1924-2000), Alice ouvindo a sua poesia.

Olavo Bilac – A Alvorada do Amor ou Adão e Eva

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Adão e Eva 1935-39

Tenho dado conta no blog de parte da abundante iconografia sobre Adão e Eva. São em menor número as reflexões poéticas sobre o mito bíblico do pecado original. Hoje é o poeta brasileiro Olavo Bilac (1865-1918) quem, num precioso poema, A Alvorada do Amor, reflete sobre o amor e a expulsão do paraíso numa nada ortodoxa visão:

 

Vamos! que importa Deus? Desata, como um véu,

Sobre a tua nudez a cabeleira! Vamos!

Amo-te! sou feliz! porque, do Éden perdido,

Levo tudo, levando o teu corpo querido!

Pode, em redor de ti, tudo se aniquilar:

– Tudo renascerá cantando ao teu olhar,

E se, em torno ao teu corpo encantador e nu,

Tudo morrer, que importa? A Natureza és tu,

Agora que és mulher, agora que pecaste!

Porque, livre de Deus, redimido e sublime,

Homem fico, na terra, à luz dos olhos teus,

– Terra, melhor que o céu! homem, maior que Deus!”

 

E assim passaram os anos.

Da decisão de Adão “Homem fico, na terra, à luz dos olhos teus” nasceu a prole que encheu o mundo e hoje goza Os Prazeres do Ócio nesta feliz evocação de Fernand Léger (1881-1955).

Os prazeres do ócio 1948-9

Lidos os excertos, vamos ao poema integral.

 

A Alvorada do Amor

 

Um horror grande e mudo, um silêncio profundo

No dia do Pecado amortalhava o mundo.

E Adão, vendo fechar-se a porta do Éden, vendo

Que Eva olhava o deserto e hesitava tremendo,

Disse:

 

          “Chega-te a mim! entra no meu amor,

E à minha carne entrega a tua carne em flor!

Preme contra o meu peito o teu seio agitado,

E aprende a amar o Amor, renovando o pecado!

Abençôo o teu crime, acolho o teu desgosto,

Bebo-te, de uma em uma, as lágrimas do rosto!

 

Vê! tudo nos repele! a toda a criação

Sacode o mesmo horror e a mesma indignação…

A cólera de Deus torce as árvores, cresta

Como um tufão de fogo o seio da floresta,

Abre a terra em vulcões, encrespa a água dos rios;

As estrelas estão cheias de calefrios;

Ruge soturno o mar; turva-se hediondo o céu…

 

Vamos! que importa Deus? Desata, como um véu,

Sobre a tua nudez a cabeleira! Vamos!

Arda em chamas o chão; rasguem-te a pele os ramos;

Morda-te o corpo o sol; injuriem-te os ninhos;

Surjam feras a uivar de todos os caminhos;

E, vendo-te a sangrar das urzes através,

Se emaranhem no chão as serpes aos teus pés…

Que importa? o Amor, botão apenas entreaberto,

Ilumina o degredo e perfuma o deserto!

Amo-te! sou feliz! porque, do Éden perdido,

Levo tudo, levando o teu corpo querido!

 

Pode, em redor de ti, tudo se aniquilar:

– Tudo renascerá cantando ao teu olhar,

Tudo, mares e céus, árvores e montanhas,

Porque a Vida perpétua arde em tuas entranhas!

Rosas te brotarão da boca, se cantares!

Rios te correrão dos olhos, se chorares!

E se, em torno ao teu corpo encantador e nu,

Tudo morrer, que importa? A Natureza és tu,

Agora que és mulher, agora que pecaste!

 

Ah! bendito o momento em que me revelaste

O amor com o teu pecado, e a vida com o teu crime!

Porque, livre de Deus, redimido e sublime,

Homem fico, na terra, à luz dos olhos teus,

– Terra, melhor que o céu! homem, maior que Deus!”

 

Poema publicado pela primeira vez em 1902.

In Poesias, Editora Martins Fontes, São Paulo, 1997.

Transcrito de Os Cem Melhores Poemas Brasileiros do Século, seleção de Italo Moriconi, Editora Objectiva, Rio de Janeiro 2001.

 

Abre o artigo com a imagem de uma pintura de Fernand Léger (1881-1955), Adão e Eva (1935-39) chamada. Seguem-se Os Prazeres do ócio (1948-9) dos filhos de Adão, primeiro em fundo azul, e agora em findo vermelho.

Os prazeres do écio sobre fundo vermelho 1949

Outra noite de amor num poema de Ibn Safar Al-Marînî (séc. XII)

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Miniatura persa 09

Em mais um poema do Al-Andalus numa versão de David Mourão-Ferreira, lemos o relato da antecipação e gozo de uma noite de amor.

No contraste entre a escuridão da noite e a luz que o amor traz corre o poema em belíssimas imagens, quais estas:

fixei-a nos olhos

para que não deixasse de cumprir

a promessa de visitar-me como um sol,

E veio então, como a claridade da aurora

a abrir caminho por entre as trevas.

E com ela passei a noite, enquanto a noite

mais ao longe dormia,

até que veio separar-nos

o estandarte da madrugada.

 

Entrego-vos ao poema:

 

Poema

 

Quando o sol declinava,

já quase a desaparecer,

fixei-a nos olhos

para que não deixasse de cumprir

a promessa de visitar-me como um sol,

no momento em que a lua por entre as trevas,

inicia a viagem nocturna.

 

E veio então, como a claridade da aurora

a abrir caminho por entre as trevas.

Perfumavam-se os horizontes à minha volta,

anunciando a sua chegada

como o aroma anuncia a flor.

 

Recorri com beijos a marca dos seus passos

como recorre o leitor as letras de uma linha.

 

E com ela passei a noite, enquanto a noite

mais ao longe dormia,

e o amor despertava

por entre os ramos do seu tronco,

a duna das suas ancas,

a lua da sua face…

 

E umas vezes a abraçava

e outras vezes a beijava,

até que veio separar-nos

o estandarte da madrugada.

 

Tradução de David Mourão-Ferreira in Vozes da Poesia Europeia – I, Colóquio Letras nº163, Lisboa Janeiro-Abril de 2003.

 

Tradução indirecta feita a partir da histórica versão castelhana de Emilio Garcia Gomez.

 

Do poeta, Ibn Safar Al-Marînî (séc. XII), saberei dizer-vos que é provavelmente o poeta identificado no volume IV da Biblioteca do Al-Andalus pelo nome IBN AL-MARINI, ABU L-HASAN: Abu l-Hasan `Ali b. al-Marini nascido em Almería no século XII, e mais não sei. A falta de normalização em português da escrita de nomes árabes cria estas dificuldades.

Memória de uma noite num poema de António Feijó

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Tom Wesselmann - Grande nu americano 1963

Encontros fortuitos, paixões de ocasião, nem sempre as noites deixam memória, e às vezes quando deixam, são memória dolorosa que não apetece recordar. Estas, se se recordam em poesia, são poemas amargos, de quem está de mal com a vida. Não assim com António Feijó (1859-1917) e a noite relatada no poema Passeio Bucólico.

Em António Feijó há uma constante bonomia, um estar de bem consigo, que mesmo nos transes mais dolorosos faz do seu verso uma cativante companhia.

No poema com que hoje brinco, além da verosimilhança da história, encontramos a mescla de graça e ironia que atravessa sobretudo a sua poesia reunida nos livros Bailatas e Novas Bailatas.

 

Começa o poema com a descrição de um dia de inverno sem intempérie, propiciando o bem-estar que o bom tempo traz:

 

Na gema de um inverno atravessado

De ventanias, trovoadas, neve,

Nem d’encomenda um dia assim banhado

De sol, e sem a viração* mais leve.

 

vão em passeio poeta, companheira e o belo tempo.

 

Nem d’encomenda!… e os beijos que nós demos

Por essa estrada! Já não tinham conta…

Quantas loucuras infantis fizemos!

E que apetite, para a ceia pronta!

 

Anoiteceu, e com o apetite aberto, também para a comida, o nosso par ceia:

 

Mas havia mais hóspedes à mesa;

Tivemos de guardar certa aparência…

Foi somente depois da sobremesa

Que trocámos um beijo, e com decência.

 

Resguardadas as efusões amorosas em nome da decência, do resto da noite diz-nos o poeta:

 

O que após se passou…, a musa cala,

Pois não há rimas nem palavras de oiro

Para exprimir o amor que nos embala

Na posse do mais íntimo tesoiro!

 

Podemos facilmente adivinhar o que este falso pudor esconde. Só que, manhã chegada, a coisa ficou difícil. Senão vejamos:

 

Mas quando de manhã nos separámos,

Foi como um mundo inteiro que desaba!

Gritos, soluços, pranto que chorámos…

O sonho, quando é bom, logo se acaba!

 

E a inevitável despedida, pois era amor de um dia, acontece:

 

Ah! Como os nossos corações batiam,

Recordando as noturnas maravilhas!

 

Perante tanto encanto, tremendo seria o desgosto com a separação. Ao poeta ficamos a saber que:

 

Dos meus olhos as lágrimas corriam

Silênciosas e grandes como ervilhas…

 

Da mulher que tanta felicidade trouxe não mais saberemos. A vida continua e,

 

Depois, como era feira, na estalagem,

Entre um rumor de viola e de fandango,

Sozinho, à mesa, sem a tua imagem,

Devorava essas lágrimas com frango!

 

Satisfeito o corpo nas necessidades básicas, ficou, pelo lido, a memória desta aventura de um dia, que o poeta remata ao recordá-la:

 

E assim se terminou esta aventura

Em Vila Nova de Famalicão;

Mas a lembrança dela ainda perdura,

Aquecendo o meu velho coração…

 

A história está contada. Resta a leitura sequencial do poema que a seguir vos entrego.

Passeio Bucólico

 

Lembras-te quando fomos de passeio

A Vila Nova de Famalicão?

Que lindo dia! Um dia igual não creio

Que se torne a encontrar nesta estação.

 

Na gema de um inverno atravessado

De ventanias, trovoadas, neve,

Nem d’encomenda um dia assim banhado

De sol, e sem a viração* mais leve.

 

Nem d’encomenda!… e os beijos que nós demos

Por essa estrada! Já não tinham conta…

Quantas loucuras infantis fizemos!

E que apetite, para a ceia pronta!

 

Mas havia mais hóspedes à mesa;

Tivemos de guardar certa aparência…

Foi somente depois da sobremesa

Que trocámos um beijo, e com decência.

 

O que após se passou…, a musa cala,

Pois não há rimas nem palavras de oiro

Para exprimir o amor que nos embala

Na posse do mais íntimo tesoiro!

 

Mas quando de manhã nos separámos,

Foi como um mundo inteiro que desaba!

Gritos, soluços, pranto que chorámos…

O sonho, quando é bom, logo se acaba!

 

Ah! Como os nossos corações batiam,

Recordando as noturnas maravilhas!

Dos meus olhos as lágrimas corriam

Silenciosas e grandes como ervilhas…

 

Depois, como era feira, na estalagem,

Entre um rumor de viola e de fandango,

Sozinho, à mesa, sem a tua imagem,

Devorava essas lágrimas com frango!

 

E assim se terminou esta aventura

Em Vila Nova de Famalicão;

Mas a lembrança dela ainda perdura,

Aquecendo o meu velho coração…

 

*vento

 

Transcrito de Novas Bailatas, 1926. Modernizei a ortografia.

A imagem de abertura respeita a uma pintura de Tom Wessellmann de 1963, Grande num americano.