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Encontros fortuitos, paixões de ocasião, nem sempre as noites deixam memória, e às vezes quando deixam, são memória dolorosa que não apetece recordar. Estas, se se recordam em poesia, são poemas amargos, de quem está de mal com a vida. Não assim com António Feijó (1859-1917) e a noite relatada no poema Passeio Bucólico.
Em António Feijó há uma constante bonomia, um estar de bem consigo, que mesmo nos transes mais dolorosos faz do seu verso uma cativante companhia.
No poema com que hoje brinco, além da verosimilhança da história, encontramos a mescla de graça e ironia que atravessa sobretudo a sua poesia reunida nos livros Bailatas e Novas Bailatas.
Começa o poema com a descrição de um dia de inverno sem intempérie, propiciando o bem-estar que o bom tempo traz:
Na gema de um inverno atravessado
De ventanias, trovoadas, neve,
Nem d’encomenda um dia assim banhado
De sol, e sem a viração* mais leve.
vão em passeio poeta, companheira e o belo tempo.
Nem d’encomenda!… e os beijos que nós demos
Por essa estrada! Já não tinham conta…
Quantas loucuras infantis fizemos!
E que apetite, para a ceia pronta!
Anoiteceu, e com o apetite aberto, também para a comida, o nosso par ceia:
Mas havia mais hóspedes à mesa;
Tivemos de guardar certa aparência…
Foi somente depois da sobremesa
Que trocámos um beijo, e com decência.
Resguardadas as efusões amorosas em nome da decência, do resto da noite diz-nos o poeta:
O que após se passou…, a musa cala,
Pois não há rimas nem palavras de oiro
Para exprimir o amor que nos embala
Na posse do mais íntimo tesoiro!
Podemos facilmente adivinhar o que este falso pudor esconde. Só que, manhã chegada, a coisa ficou difícil. Senão vejamos:
Mas quando de manhã nos separámos,
Foi como um mundo inteiro que desaba!
Gritos, soluços, pranto que chorámos…
O sonho, quando é bom, logo se acaba!
E a inevitável despedida, pois era amor de um dia, acontece:
Ah! Como os nossos corações batiam,
Recordando as noturnas maravilhas!
Perante tanto encanto, tremendo seria o desgosto com a separação. Ao poeta ficamos a saber que:
Dos meus olhos as lágrimas corriam
Silênciosas e grandes como ervilhas…
Da mulher que tanta felicidade trouxe não mais saberemos. A vida continua e,
Depois, como era feira, na estalagem,
Entre um rumor de viola e de fandango,
Sozinho, à mesa, sem a tua imagem,
Devorava essas lágrimas com frango!
Satisfeito o corpo nas necessidades básicas, ficou, pelo lido, a memória desta aventura de um dia, que o poeta remata ao recordá-la:
E assim se terminou esta aventura
Em Vila Nova de Famalicão;
Mas a lembrança dela ainda perdura,
Aquecendo o meu velho coração…
A história está contada. Resta a leitura sequencial do poema que a seguir vos entrego.
Passeio Bucólico
Lembras-te quando fomos de passeio
A Vila Nova de Famalicão?
Que lindo dia! Um dia igual não creio
Que se torne a encontrar nesta estação.
Na gema de um inverno atravessado
De ventanias, trovoadas, neve,
Nem d’encomenda um dia assim banhado
De sol, e sem a viração* mais leve.
Nem d’encomenda!… e os beijos que nós demos
Por essa estrada! Já não tinham conta…
Quantas loucuras infantis fizemos!
E que apetite, para a ceia pronta!
Mas havia mais hóspedes à mesa;
Tivemos de guardar certa aparência…
Foi somente depois da sobremesa
Que trocámos um beijo, e com decência.
O que após se passou…, a musa cala,
Pois não há rimas nem palavras de oiro
Para exprimir o amor que nos embala
Na posse do mais íntimo tesoiro!
Mas quando de manhã nos separámos,
Foi como um mundo inteiro que desaba!
Gritos, soluços, pranto que chorámos…
O sonho, quando é bom, logo se acaba!
Ah! Como os nossos corações batiam,
Recordando as noturnas maravilhas!
Dos meus olhos as lágrimas corriam
Silenciosas e grandes como ervilhas…
Depois, como era feira, na estalagem,
Entre um rumor de viola e de fandango,
Sozinho, à mesa, sem a tua imagem,
Devorava essas lágrimas com frango!
E assim se terminou esta aventura
Em Vila Nova de Famalicão;
Mas a lembrança dela ainda perdura,
Aquecendo o meu velho coração…
*vento
Transcrito de Novas Bailatas, 1926. Modernizei a ortografia.
A imagem de abertura respeita a uma pintura de Tom Wessellmann de 1963, Grande num americano.