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No princípio era o Verbo
(e os açucares
e os aminoácidos).
Depois foi o que se sabe.
Neste deambular a que a poesia convida, sucedo ao poema de Olavo Bilac, onde Adão convida Eva à aventura do pecado, e que não é outra senão a vida da humanidade, com um poema de Manuel António Pina (1943-2012), Neste Preciso Tempo, Neste Preciso Lugar.
É curta e assombrada pela dor a obra poética de Manuel António Pina. Nela a morte espreita a cada poema, de par com a reflexão sobre as palavras (inúteis) que enchem o mundo e a nostalgia do silêncio que a eternidade, no seu sono, devolve. Entretanto, e homens por cá, da vida vivida, o passado, não temos fuga, a menos que a desmemória nos atinja. Felizmente não guardamos tudo, e do que fica fala-nos o poema:
Por onde vens, Passado,
pelo vivido ou pelo sonhado?
Que parte de ti me pertence,
a que se lembra ou a que esquece?
Saberá cada um de nós com o que conta, mas para lhe aliviar o peso lá virá o momento em que …em vez de metafísica / ou de biologia… nos dê para qualquer outra coisa, não necessariamente poesia, como ao poeta, mas uma atitude igualmente salutar: …passar-lhe ao lado / deitando-lhe o enviesado / olhar da ironia.
Passemos ao poema sem mais, seja ironia ou cortes abusivos.
Neste Preciso Tempo, Neste Preciso Lugar
No princípio era o Verbo
(e os açucares
e os aminoácidos).
Depois foi o que se sabe.
Agora estou debruçado
da varanda de um 3º andar
e todo o Passado
vem exactamente desaguar
neste preciso tempo, neste preciso lugar,
no meu preciso modo e no meu preciso estado!
Todavia em vez de metafísica
ou de biologia
dá-me para a mais inespecifica
forma de melancolia:
poesia nem por isso lírica
nem por isso provavelmente poesia.
Pois que faria eu com tanto Passado
senão passar-lhe ao lado
deitando-lhe o enviesado
olhar da ironia?
Por onde vens, Passado,
pelo vivido ou pelo sonhado?
Que parte de ti me pertence,
a que se lembra ou a que esquece?
Lá em baixo, na rua, passa para sempre
gente indefinidamente presente,
entrando na minha vida
por uma porta de saída
que dá para a memória.
Também eu (isto) não tenho história
senão a de uma ausência
entre indiferença e indiferença.
Transcrito de Poesia Reunida, Assirio & Alvim, Lisboa, 2001.
Abre o artigo a imagem de uma escultura de George Segal (1924-2000), Alice ouvindo a sua poesia.
Belo e profundo poema!
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