Marianne Moore — Um Rosto

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Rosto, espelho da alma? Certamente não. Olhar-se um ao espelho e não gostar do que vê, e mais, sentir o desacerto entre o que a imagem mostra e o sentir próprio acontece mais ou menos frequentemente a cada um, e é a reflexão superiormente levada a cabo por Marianne Moore (1877-1972) na primeira parte do poema A Face que a seguir transcrevo seguido de uma minha tradução. Depois, na segunda estrofe do poema: que deve mostrar um rosto? A impassibilidade que esconde a intimidade do ser, ou como escreve a poetisa: … o amor da ordem, ardor, insinuosa simplicidade / com uma expressão de indagação, são tudo o que alguém precisa ser!

Poema denso de implicações de como nos vemos e gostaríamos que nos vissem e recordassem: … Rosto fotografado por lembrança — / na minha opinião, a meu ver, / devem permanecer um prazer., faz-nos pensar se melhor será a neutralidade expressiva com quem nos cruzamos, ou a ilusória transparência da alma num rosto que chamamos de “comunicativo”.

 

A Face

 

“I am not treacherous, callous, jealous, superstitious,

supercilious, venomous, or absolutely hideous”:

            studying and studying its expression,

            exasperated desperation

                        though at no real impass,

                        would gladly break the mirror;

 

when love of order, ardor, uncircuitous simplicity

with an expression of inquiry, are all one needs to be!

            Certain faces, a few, one or two—or one

            Face photographed by recollection—

                        to my mind, to my sight,

                        must remain a delight.

 

in Marianne Moore, Collected Poems, privately printed for the subscribers of The Franklin Library of Pulitzer Prize Classics, USA, 1984.

 

 

Um Rosto

 

“Eu não sou traiçoeira, insensível, ciumenta, supersticiosa,

arrogante, venenosa ou absolutamente hedionda ”:

      estudando e estudando a sua expressão,

       exasperado desespero

               embora sem um verdadeiro impasse,

               de bom grado quebraria o espelho;

 

quando o amor da ordem, ardor, insinuosa simplicidade 

com uma expressão de indagação, são tudo o que alguém precisa ser!

       Certos rostos, poucos, um ou dois — ou um

       Rosto fotografado por lembrança —

              na minha opinião, a meu ver,

              devem permanecer um prazer.

 

Tradução em português de Carlos Mendonça Lopes

Embora o paralelismo da construção sintática e morfológica do poema original se perca em português, fica-nos a originalidade da expressão na interrogação de si perante a sua imagem e o que dela deve transparecer para os outros.

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Pablo Picasso (1881-1973), Girl Before A Mirror, de 1932, pertencente à colecção do MoMA de New York.

Nenhum homem é uma ilha — A Meditação XVII de John Donne

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… não procures saber

Por quem o sino toca,

Ele toca por ti.

Por quem os sinos dobram, frase tornada famosa como título de um livro de Ernest Hemingway, e de um filme nele inspirado com Gary Cooper e Ingrid Bergman, é originalmente, no singular, o terminus da meditação XVII de John Donne (1572-1631) em Devotions upon Emergent Occasions (1624), mais tarde adaptada a poema, e que hoje transcrevo acompanhado por uma tradução minha.

Entender a humanidade como um todo e a ela estender o sentido de pertença, é a mensagem perene da meditação de John Donne. em que vale a pena reflectir uma e outra vez. 

Quanto mais a discórdia assombrar os homens e a lei do mais forte ganhar apoio popular, mais necessário se torna lembrar que amigos e inimigos são sempre parte da mesma humanidade e apenas a justiça da igualdade como lei deve prevalecer, seja na sua dimensão individual, seja colectiva. Hoje, e no que à Europa respeita, o Brexit nas suas motivações e consequências está aí para nos fazer meditar.

 

Poem 

No man is an island,

Entire of itself.

Each is a piece of the continent,

A part of the main.

If a clod be washed away by the sea,

Europe is the less.

As well as if a promontory were.

As well as if a manor of thine own

Or of thine friend’s were.

Each man’s death diminishes me,

For I am involved in mankind.

Therefore, send not to know

For whom the bell tolls,

It tolls for thee.

 

 

Poema — Versão em português 

 

Nenhum homem é uma ilha,

Suficiente por si mesmo.

Cada um é um pedaço do continente,

Uma parte do todo.

Se um torrão for arrastado pelo mar,

A Europa não o é menos.

Tal como se um promontório o fosse.

Bem como se a tua própria casa

Ou a de teus amigos o fosse.

A morte de cada homem diminui-me

Pois sou parte da humanidade.

Portanto, não procures saber

Por quem o sino toca,

Ele toca por ti.

 

Versão em português por Carlos Mendonça Lopes

 

Abre o artigo a imagem de um cartoon alusivo ao Brexit publicado na imprensa.

A Ceifeira segundo Wordsworth, Pessoa, e Lope de Vega

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A mecanização das colheitas e o progressivo despovoamento dos campos remete para a experiência de quem os viveu, a memória dos ciclos do cultivo da terra, de que as colheitas eram o auge, podendo  significar abundância ou miséria para os tempos que se seguiam. Entre as colheitas, a faina da ceifa do cereal era, com a vindima, ocasião para alegria que acompanhava a dureza do trabalho. Tratava-se, afinal, de colher o que viria a dar o pão e o vinho de cada dia, essência e símbolo da alimentação. 

Com os extremos de calor pelo verão, as televisões foram à procura de testemunhos pelas terras do Alentejo onde o sol queimava, procurando saber como as pessoas mais velhas lidavam com o calor. Encontraram os testemunhos da memória desses dias de colheitas de sol a sol sob um calor inclemente, na fala da experiência de vidas de trabalho árduo, e que hoje dificilmente imaginamos na sua dureza.

Não tendo os poetas a experiência directa da rudeza do trabalho que o canto ajuda a aliviar, relatam o observável naquele efeito que Fernando Pessoa (1888-1935) refere no verso feliz: O que em mim sente está pensando. E assim, sobre a ceifa, leremos três poemas com afinidades e dissemelhanças.

Primeiro William Wordsworth (1770-1850) no poema A Ceifeira solitária, dá conta da emoção que atinge o poeta ao ouvir o canto dolente de uma ceifeira:

Sozinha ceifa no mundo

e canta melancolia.

Escuta: o vale profundo

transborda já de harmonia.

enquanto Fernando Pessoa refere:

Ouvi-la alegra e entristece,

Na sua voz há o campo e a lida,

São estes, versos do poema de Pessoa conhecido pelo primeiro verso, [Ela canta, pobre ceifeira,]. 

Poderia continuar no paralelismo de leitura dos dois poemas, mas deixo essa descoberta para os leitores que lerem os poemas mais à frente. 

No poema de Wordsworth, do encontro com o canto da ceifeira ganha o poeta a serenidade que a verdade das coisas simples transporta:

Sem falar, quieto, eu escutava.

E, quando o monte subia,

no coração transportava

o canto que não se ouvia.

 

No poema de Pessoa deparamos com uma meditação simultânea sobre a busca de sentido dos comportamentos perante as dificuldades do existir, … E canta como se tivesse / Mais razões para cantar que a vida./ …, e o desejo de ser outro que a contemplação da harmonia entre um nós e o mundo sempre traz consigo: … / Ah, poder ser tu, sendo eu! / …

 

 

Os poemas

 

William Wordsworth —  A Ceifeira solitária

 

Só ela no campo vi:

solitária de altas serras,

ceifa e canta para si.

Não digas nada, que a aterras!

Sozinha ceifa no mundo

e canta melancolia.

Escuta: o vale profundo

transborda já de harmonia.

 

Nunca um rouxinol cantou

em sombras da Arábia ardente

ao que exausto repousou

mais grata canção dolente;

ou gorjeio tão extremado

se escutou na Primavera,

cortando o Oceano calado

entre ilhas de Além-Quimera.

 

Quem me dirá do que canta?

Será que o que ela deplora

é antigo, triste e distante,

como batalhas de outrora?

Ou coisas simples são

do quotidiano viver?

Essas dor’s de coração,

que já foram e hão-de ser?

 

Seja o que for que cantara

é como infindo cantar,

que a vi cantando na seara,

no trabalho de ceifar.

Sem falar, quieto, eu escutava.

E, quando o monte subia,

no coração transportava

o canto que não se ouvia.

 

Tradução de Jorge de Sena. 

in Jorge de Sena, Poesia de  26 séculos, Fora do Texto, Coimbra, 1993.

 

 

Fernando Pessoa — [Ela canta, pobre ceifeira,]

 

Ela canta, pobre ceifeira,

Julgando-se feliz talvez;

Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia

De alegre e anónima viuvez,

 

Ondula como um canto de ave

No ar limpo como um limiar,

E há curvas no enredo suave

Do som que ela tem a cantar.

 

Ouvi-la alegra e entristece,

Na sua voz há o campo e a lida,

E canta como se tivesse

Mais razões para cantar que a vida.

 

Ah, canta, canta sem razão!

O que em mim sente está pensando.

Derrama no meu coração

A tua incerta voz ondeando!

 

Ah, poder ser tu, sendo eu!

Ter a tua alegre inconsciência,

E a consciência disso! Ó céu!

Ó campo! Ó canção! A ciência

 

Pesa tanto e a vida é tão breve!

Entrai por mim dentro! Tornai

Minha alma a vossa sombra leve!

Depois, levando-me, passai!

s/d

in Poesias. Fernando Pessoa. (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995).  – 108.

1ª publ. in Athena, nº 3. Lisboa: Dez. 1924.

 

 

Apêndice

Num registo mais ligeiro concluo com um Cantar de Ceifa por Lope de Vega (1562-1635), quem sabe, talvez semelhante ao cantar que desencadeou as reflexões poeticas que antes lemos.

 

Lope de Vega — Cantar de Ceifa

 

Tão branca tanto que eu era,

quando entrei para ceifar;

deu-me o sol, fiquei morena.

 

Tão branca soía eu ser

antes de vir a ceifar,

mas não quis o sol deixar

branco o fogo em meu poder.

No tempo do amanhecer

era eu brilhante açucena:

deu-me o sol, fiquei morena.

 

in Jorge de Sena, Poesia de  26 séculos, Fora do Texto, Coimbra, 1993.

 

Nota final

Perdem-se-me na memória os poemas publicados no blog. Para evitar duplicações, e quando a dúvida surge, pesquiso o blog para ver se algum dos poemas que vou transcrever já aqui está. Qual caixa de surpresas, o blog, muitas vezes vou de artigo em artigo, ora surpreendido, ora pasmado com o que escolhi, escrevi, e aqui encontro. Hoje foi uma dessas ocasiões. Na dúvida se já teria transcrito o poema de Fernando Pessoa [Ela canta, pobre ceifeira,], pesquiso o blog e eis que encontro o belíssimo poema de Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004) sobre a ceifeira Catarina Eufémia (1928-1954) (o leitor curioso encontra-o aqui). Não estando ainda no blog o poema de Pessoa, foi hoje a vez dele, e com companhia. Neste anterior artigo, além do poema de Sophia encontra-se também um poema de Luís Augusto Palmeirim (1825-1893), A Ceifeira, sobre uma ceifeira de pele morena, crestada pelo sol, e a sua beleza, eco talvez involuntário da anterior canção de Lope de Vega.

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Pieter Bruegel, o Velho (ca. 1525–1569) A Colheita, de 1565, pertencente à colecção do Met (The Metropolitan Museum of Art) de New York.

 

 

Philogelos — Facécias escolhidas e De humana physiognomonia de Battista della Porta

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Do vasto funda da literatura grega antiga respigo hoje algumas facécias de  Philogelos, (O Gracejador) na tradução portuguesa. Obra de autoria desconhecida e compilação em data incerta, mas posterior ao séc. IV, atribuída a dois autores, Hiérocles e Filágrio, é uma colecção de gracejos em que os ecos de alguns deles, transformados, chegaram até nós (p. ex. os nºs 9 ou 148). Escolho sobretudo idiotices, ou piadas com e sobre idiotas, afinal muito do alimento das cenas de comédia e “apanhados” nas televisões dos nossos dias.

De caminho, acompanho a escolha com algumas gravuras com fisionomias humanas, presumo que inventadas, incluídas na obra De humana physiognomonia (1586), de Giovanni Battista della Porta (1535-1615), constituindo elas um mosaico de plausíveis espécimes de humanidade.

Eis a escolha:

3.  Um indivíduo, ao consultar um médico idiota, fez a seguinte afirmação: – “Doutor, sempre que me levanto depois de dormir, sinto-me zonzo durante uma meia hora, mas depois fico bem.” Ao que o médico respondeu: – “Então espere meia hora antes de se levantar.”

9. Um idiota tentou ensinar o seu burro a não comer tanto, não lhe dando alimento. Todavia, como o burro morresse, ele exclamou. “Que grande desgraça!  Mal eu o tinha ensinado a não comer, dá-lhe para morrer!”

93. Tendo verificado que uma escada tinha vinte degraus a subir, um néscio procurou indagar quantos é que tinha a descer.

88. Quando escalou uma montanha escarpada ao regressar a casa de uma viagem, um simplório, admirado, constatou: “Não consigo entender. Da primeira vez que passei por aqui era uma descida. Como é possível que tenha mudado tão depressa para uma subida?”

11. Pretendendo saber que aspecto tinha enquanto dormia, um imbecil pôs-se à frente de um espelho com os olhos fechados.

15. Tendo sonhado que tinha pisado um prego, um desmiolado resolveu pôr uma ligadura no pé. Explicou o porquê a um amigo, que indagou o que lhe tinha acontecido. “Não admira que nos chamem parvos!”, explicou o amigo. “O que é que te deu para dormires descalço?”

70. Ao chegar para visitar um amigo doente, um idiota foi informado pela esposa que o seu amigo já tinha partido. – “Então quando ele regressar, diga-lhe que eu estive aqui.”

104. Um avarento colocou-se a si mesmo como herdeiro no próprio testamento.

154. Em Cumas, alguém perguntou aos condolentes do funeral de um distinto cidadão: “Quem é o morto?” Um dos habitantes de Cumas voltou-se e apontou o dedo, esclarecendo: “É aquele ali, que vai estendido no carro fúnebre”.

171. Um homem de Cumas entregou o corpo do seu pai que tinha falecido em Alexandria a um embalsamador. Voltou mais tarde para ir buscá-lo, mas o embalsamador, que estava rodeado de outros corpos, perguntou que marca distintiva é que o seu pai tinha. – “Tossia muito.”

247. Um misógino estava a enterrar a sua falecida mulher. “Quem é que ganhou o descanso eterno?”, perguntou alguém. “Eu, agora que me vi livre dela.”

148. Um barbeiro tagarela perguntou a um engraçadinho: “Como é que eu devo cortar o teu cabelo?”. “Em silêncio” – disse ele.

206. Perguntou-se a um cobarde: “Que navios são mais seguros – navios de guerra ou navios mercantis? “Navios atracados.” – foi a sua resposta.

207. Tendo passado a noite inteira a sonhar que estava a ser perseguido por um urso, um caçador cobarde comprou uns cães e pô-los a dormir consigo.

Termino com uma brejeirice, que a colecção também contém.

251. Uma mulher tinha um escravo atrasado mental. Mas quando ela se apercebeu que ele possuía uma protuberância excepcionalmente grande, desenvolveu uma paixão por ele. Cobriu a cara com uma máscara para que ninguém a reconhecesse e levou-o para a cama. Mas nisto ele identificou de quem se tratava. Então chegou ao pé do senhor da casa e disse com uma risada: “Senhor, senhor! Dormi com a dançarina mascarada e a senhora estava lá dento!”

 

in Hiérocles e Filágrio, Philogelos (O Gracejador). Tradução do grego, introdução e notas: Reina Marisol Troca Pereira, Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, Universidade de Coimbra, 2013.

A numeração que antecede cada facécia é a desta edição.

Fecho o artigo com a imagem de abertura da obra De humana physiognomonia onde podemos ver um retrato do seu autor, Giovanni Battista della Porta.

Martim de Castro do Rio e Frei António das Chagas às voltas com as contas do tempo e seu uso

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Ganhou nos nossos dias divulgação acrescida um soneto atribuído a Frei António das Chagas, no século António da Fonseca Soares, (1631-1682), Conta e tempo, ao ser cantado por Camané com música de fado. 

Aborda o soneto, na peculiaridade formal da poesia barroca, a questão que a certa altura da vida todos nos colocamos: que fiz com o tempo que me foi dado viver? 

O assunto vem tratado no soneto de Frei António das Chagas na perspectiva religiosa e da vida no além, questionando as contas que é preciso prestar a Deus sobre a forma de viver o tempo de uma vida. Acontece que cerca de meio século antes, a mesma questão: que fiz com o tempo que me foi dado viver?, foi formulada em idênticos termos poéticos, que não teológicos, por Martim de Castro do Rio (c.1548-1613), poeta maneirista entre os poetas menores contemporâneos de Camões. Refere o soneto de Martim de Castro do Rio esta prestação de contas a si próprio e não a Deus, colocando, portanto, a ênfase na responsabilidade individual sobre as consequências das escolhas do viver, e não como as pedras do caminho para um qualquer prémio ou castigo, a que a perspectiva religiosa conduz.

O poema de Frei António das Chagas é no vocabulário e desenvolvimento da ideia idêntico ao soneto de Martim de Castro do Rio, e hoje dificilmente escaparia a ser considerado um flagrante plágio, a que nem o desvio da reflexão introduzida no poema pela presença de Deus salvaria. Eram outros tempos e o poema passou à história com inteira propriedade como de Frei António das Chagas, permanecendo o poema de Martim de Castro do Rio, que lhe é anterior, no esquecimento dos manuscritos até à sua edição recente.

Nunca é demais realçar ser o tempo o único bem que a cada indivíduo verdadeiramente pertence. E é na compatibilização das escolhas, ao vender o tempo que se possui, trabalhando para ganhar o dinheiro que permite viver, com a utilização do seu uso no quadro de valores que nos governam a vida, que reside a responsabilidade do balanço perante si, ou Deus, do que cada um fez e faz com o seu tempo.

 

 

Soneto de Martim de Castro do Rio

 

Ao tempo

O tempo de si mesmo pede conta,

É necessário dar-se conta a tempo,

Que quem gastou sem conta tanto tempo,

Como dará sem tempo tanta conta?

 

Não quer levar o tempo tempo em conta 

Pois conta se não fez de dar-se a tempo,

Onde só pera conta havia tempo,

Se na conta do tempo houvesse conta.

 

Que conta pode dar quem não tem tempo 

Em que tempo a dará quem não tem conta,

Que a quem a conta falta, falta o tempo.

 

Vejo-me sem ter tempo, com ruim conta,

Sabendo que hei-de dar conta do tempo 

E que se chega o tempo de dar conta.

 

Lição de BN6046

 

 

Soneto de Frei António das Chagas

 

Conta e Tempo

Deus pede estrita conta de meu tempo. 

E eu vou do meu tempo, dar-lhe conta. 

Mas, como dar, sem tempo, tanta conta 

Eu, que gastei, sem conta, tanto tempo? 

 

Para dar minha conta feita a tempo, 

O tempo me foi dado, e não fiz conta, 

Não quis, sobrando tempo, fazer conta, 

Hoje, quero acertar conta, e não há tempo. 

 

Oh, vós, que tendes tempo sem ter conta, 

Não gasteis vosso tempo em passatempo. 

Cuidai, enquanto é tempo, em vossa conta! 

 

Pois, aqueles que, sem conta, gastam tempo, 

Quando o tempo chegar, de prestar conta 

Chorarão, como eu, o não ter tempo… 

 

 

Nota bibliográfica

O soneto de Martim de Castro do Rio encontra-se em  A Poesia de Martim de Castro do Rio (c.1548-1613), Mafalda Ferin da Cunha, Imprensa da Unicersidade de Coimbra, edição digital. 

Edição modelar que pela primeira vez reúne a poesia atribuível ao poeta, e até esta edição distribuída por numerosos manuscritos. 

Deste soneto, Ao tempo, encontrou a compiladora 28 versões manuscritas, com ligeiras divergências, como sempre acontece nestes manuscritos, por desvio da recolha oral ou erro do copista. A compiladora escolheu a lição do manuscrito da Biblioteca Nacional BN6046, que transcrevi, dando conta em notas e anexo das variações encontradas.

 

Não possuo edição impressa do soneto Conta e Tempo. Correm na internet variadíssimas publicações com este soneto atribuído a Frei António das Chagas (1631-1682). Não encontrei referência sobre a sua publicação original impressa, ou manuscrita para confirmar a validade da atribuição, mas assumo que esteja correcta. 

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Salvador Dalí (1904-1989), Persistence of Memory, de 1931, pertencente à colecção do MoMA de New York.

Uma leitura possível da pintura, é vê-la como uma medida do tempo desperdiçado e interrogar-se o espectador se gosta do que vê.

Alguns enigmas da Antologia Grega

Para distrair quem me lê de preocupações mais sérias, venho com alguns enigmas recolhidos no tomo XIV da colecção de epigramas conhecida como Antologia Grega

Já várias vezes referi com detalhe no blog esta colecção de poemas, nomeadamente a sua antiguidade e origem. Transcrevo tão só alguns poemas de autor ou autores anónimos em tradução e notas de Carlos A. Martins de Jesus

 

Enigmas, ou adivinhas, constituem um vastíssimo património presente um pouco por todo o mundo nas diferentes culturas, sendo a tradição portuguesa riquíssima deles. Por gerações, desde a remota antiguidade têm entretido novos e velhos, e continuam presentes logo que um convívio intergeracional se estabeleça e da momentosa actualidade os convivas se distraiam.

 

 

Enigmas:

 

De um pai branco sou o negro filho, ave sem asas

     que a voar atinge mesmo as nuvens do céu; 

às pupilas que encontro gero lágrimas sem dor;

     acabado de nascer, logo me dissolvo no ar.

 

Solução: O fumo.

 

22.

Não fales, e falarás o meu nome. Tens mesmo de falar? 

Espantoso: que mesmo falando tu falarás o meu nome.

 

Solução: O silêncio.

 

A minha mãe dou à luz e ela a mim; umas vezes

      sou maior, outras vezes menor do que ela. 

 

Solução: A noite e o dia, que em grego são ambas palavras do género feminino.

 

Para terminar, dois epigramas com solução idêntica, o segundo mais desenvolvido na argumentação que o primeiro, exemplos de alguma brejeirice em que a Antologia Grega também é pródiga:

 

Sou o único que goza de intimar com mulheres

     com o consentimento dos maridos.

 

Sou o único que goza de intimar com mulheres

     às claras, a pedido dos maridos; 

apenas eu monto rapazes, homens maduros, velhos

     e donzelas, ante a aflição dos parentes.

Odeio a lascívia! Mas a mão curadora bem me quer

     por realizar a tarefa do filho de Anfitrião(1)

Pelos meus amantes, contra Plutão(2) em pessoa lutaria

     sempre pela vida daqueles com que me uno. 

Sou o filho de belo nariz e brancos dentes, o resultado

      da ciência dos mortais ao misturar o elefante e a cabra(3).

 

Solução: O clister.

 

Notas

(1) Héracles. Refere-se provavelmente à limpeza dos estábulos de Augeu.

(2) Contra a morte.

(3) O clister seria feito de pele de cabra envolvendo uma cânula de marfim.

in Antologia Grega, Epigramas Vários (livros IV, XIII, XIV, XV), Tradução, introdução e comentário de Carlos A. Martins de Jesus, Universidade de Coimbra. Edição digital.

A numeração dos enigmas é a desta edição.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma criação digital que certa tarde, sentado numa esplanada, me entretive a fazer, a partir de fotos tiradas à calçada que tinha sob os pés. É a enigmática surpresa da forma desenhada que me leva a abrir com ela o artigo.

Carlos Mendonça Lopes

D. Francisco de Sá e Meneses — pago sempre em tristeza / os sonhos do pensamento

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Os sonhos, porta de entrada da esperança, umas vezes realizam-se, outras ficam pelo caminho nos acidentes de percurso da vida vivida. Não que os sonhos do pensamento sempre se esboroem virando a esperança em tristeza, ou como poeticamente escreve D. Francisco de Sá e Meneses (1515-1584), 1.º Conde de Matosinhos(*), no poema que a seguir transcrevo: pago sempre em tristeza / os sonhos do pensamento. Esta desilusão permanente é talvez uma imagem de abismo decorrente de desilusões sucessivas, a ponto de o poeta desabafar: 

Que até de ter esperança

Tenho a esperança perdida. 

 

Embora suponhamos poder ter mão no destino, em verdade só a temos no que da nossa vontade depende, como bem lembra Epicteto (séc. I-II) em Encheiridion (Manual). O que nos é alheio atinge-nos sem fuga. E se esse acontecer, a que chamamos pouca sorte, persiste, então talvez sintamos como o poeta que ao terminar o poema se lamenta:

E eu, por não mudar a sorte,

Nem morro nem tenho vida.

 

Que nem todos tenhamos tamanha desilusão com o viver, desejo.

 

 

Poema

 

Mote

 

Já não posso ser contente:

Tenho a esperança perdida!

Ando perdido entre a gente;

Nem morro, nem tenho vida.

 

Glosa

 

A tudo quanto desejo

Acho atalhadas as vias;

Em tentos e fantasias

Mui mau caminho me vejo.

Se do passado e presente

O porvir se pode crer,

Já não há que pretender:

Já não posso ser contente.

 

Que de tudo quanto quero

Chego a tara triste estremo

Que vejo tudo o que temo 

E nem sombra do que espero,

Desengano-me da vida

E fiz nela tal mudança 

Que até de ter esperança

Tenho a esperança perdida.

 

Cuidei um tempo que havia

Na fortuna o que buscava,

E posto que o não dava,

O mesmo tempo o daria.

Achei tudo diferente,

Fiquei desencaminhado, 

E como em despovoado, 

Ando perdido entre a gente.

 

De que farei fundamento

Pois em nada acho firmeza

E pago sempre em tristeza

Os sonhos do pensamento?

Abrande esta dor crescida

Vivendo em pena de morte,

E eu, por não mudar a sorte,

Nem morro nem tenho vida.

 

Fonte do poema

As cem melhores poesias (líricas) da língua portuguesa escolhidas por Carolina Michaëlis de Vasconcelos, editado simultaneamente em Lisboa, Rio de Janeiro, Berlim, Bruxelas, Lausanne, Londres, 1910.

Actualizei a ortografia.

 

(*) Não confundir com o sobrinho de nome homónimo e autor do poema épico Malaca conquistada e poemas diversos.

Com esta publicação concluem-se dez anos de blog e quase mil artigos publicados.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Joan Miró (1893-1983), A Esperança.

Possa o contemplá-la ser um estímulo para manter a esperança vida fora.

 

Um soneto de Francisco Villaespesa

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Como bem lembra algures Octávio Paz (1914-1998), o erotismo não é uma simples imitação da sexualidade, é a sua metáfora, ou como noutra ocasdião referiu Georges Bataille (1897-1962), o erotismo humano é da esfera da espiritualidade.

As consideraçõs de tais autoridades literárias são o intróito a um poema de Francisco Villaespesa (1877-1936) que a seguir transcrevo, seguido de uma minha tradução:

La sabia mano a cuyo tacto ardiente
vibra la carne como un instrumento,
prolongó la agonía del momento
en una languidez intermitente…

Oh, el cálido contacto de tu frente!
Oh, tu dorso desnudo y opulento
echado sobre mí, como un sediento
sobre lá superfície de una fuente!

Mis besos perfumaron el vacío
de un húmedo y mortal escalofrío…
Y bajo tu melena estremecida

en un áureo manojo de serpientes,
sentí sangrar y sucumbir mi vida,
entre el canibalismo de tus dientes!

Para quem não seja fluente em castelhano segue uma tradução aproximada do soneto.

A sábia mão a cujo tacto ardente
Estremece a carne como um instrumento
Prolongou a agonia do momento
Em uma languidez intermitente…

Oh, cálido contacto da tua frente!
Oh, o teu dorso nu e opulento!
Deitado sobre mim, qual um sedento
Avidamente bebe de uma fonte!

Meus beijos perfumaram o vazio,
Húmida morte suou em calafrio…
E sob a tua melena estremecida

Num glorioso abraço de serpentes
Senti sangrar e sucumbir a vida,
Entre o canibalismo dos teus dentes!

Tradução de Carlos Mendonça Lopes

Conhecemos mal em Portugal a poesia erótica espanhola e hispano-americana, que é muita e de elevada qualidade média. Poetas há em que a tensão erótica perpassa toda a obra, e estou a lembrar-me de Octávio Paz, Luis de Góngora, Ruben Darío, Lorca, Vicente Aleixandre, isto para referir apenas os mais conhecidos entre nós.

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Tom Wesselmann (1931-2004), Great American Nude 59 (1965).

 

Nota final

O poema, a tradução, e uma primeira versão do artigo foram publicados no blog em Agosto de 2011.

 

Um epigrama de Théophile de Viau

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Em brejeirices de final do ano eis um epigrama atribuído a Théophile de Viau (1590-1626),  poeta de curta vida, condenado à fogueira aos trinta e três anos por heresia e libertinagem. Ausente de França, para execução da sentença foi queimado em esfinge. A sentença foi depois aliviada para prisão perpétua, o que de pouco serviu para os poucos anos que entretanto viveu.

O poema conta como um gordo abade, deitado, se entregava aos cuidados de uma esforçada freira, que lhe tentava erguer o membro. Vendo o sem sucesso da empresa, diz-lhe a freira: — Senhor, diga Magnificat, pois ao ouvi-lo todo o mundo se levantava.

Transcrevo o original para leitores familiarizados com o francês, e acrescento uma minha versão para português que conservando a rima, palidamente se aproxima da graça e elegância do original, em assunto habitualmente procaz.

 

Épigramme 

 

Un gros abbé se laissait en sa couche 

Tater le vit aux mains d’une nonain 

Mais son engein demeurait sous sa main 

Sans se mouvoir tout aussi qu’une souche; 

Cette nonain, que n’avait point de trêve, 

Voyant son vit demeurer aussi plat, 

Lui dit: Monsieur, dites Magnificat; 

Quand on le dit tout le monde se lêve.

 

Versão para português por Carlos Mendonça Lopes:

 

Epigrama

 

Na cama, um gordo abade entregue

A mãos de freira o membro tinha,

Mas tal engenho inerte segue:

Tal qual um morto se mantinha.

A freira trabalhava até ao fundo

E da verga vendo o tenaz pendor,

Ao abade sugere: — Diga Magnificat, Senhor,

Dizê-lo faz levantar o que há no mundo.

 

 

E agora uma imagem possível do pós-Magnificat numa gravura de Peter Geiger (1805-1880):

A imagem integra uma colecção de 10 gravuras eróticas de Peter Geiger (1805-1880), numa edição privada com 530 cópias, Viena, 1909.

A colecção mostra um conjunto típico do chamado período Biedermeier.

 

Formas da solidão em dois poemas de Patrizia Cavalli

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Estar só depois da experiência da vida a dois gera uma solidão diferente daquela vivida por quem nunca a vida partilhou. 

Num primeiro poema de Patrizia Cavalli (1947)  que a seguir traduzo, é essa solidão posterior à vida partilhada que a poesia capta, mostrando a evidência do desejo de que às vezes qualquer companhia é melhor que o silêncio da solidão:

 

 

Poema

 

Agora que o tempo parece todo meu

e ninguém me chama para o almoço ou jantar,

agora que posso ficar olhando

como uma nuvem se desvanece e desaparece,

como um gato caminha pelo telhado

no luxo imenso de uma exploração, agora

que em cada dia me espera

a ilimitada duração de uma noite

onde nada me chama e não há mais razão

para me despir com pressa e descansar dentro

da ofuscante doçura de um corpo que me espera,

agora que a manhã nunca começa

e silenciosa me deixa com os meus projectos

em todas as cadências da minha voz, agora

subitamente, gostaria da prisão.

 

Tradução do italiano por Carlos Mendonça Lopes 

 

 

Poema original

 

Adesso che il tempo sembra tutto mio

e nessuno mi chiama per il pranzo e per la cena,

adesso che posso rimanere a guardare

come si scioglie una nuvola e come si scolora,

come cammina un gatto per il tetto

nel lusso immenso di una esplorazione, adesso

che ogni giorno mi aspetta

la sconfinata lunghezza di una notte

dove non c’è richiamo e non c’è piú ragione

di spogliarsi in fretta per riposare dentro

l’accecante dolcezza di un corpo che mi aspetta,

adesso che il mattino non ha mai principio

e silenzioso mi lascia ai miei progetti

a tutte le cadenze della voce, adesso

vorrei improvvisamente la prigione.

 

in Patrizia Cavalli, Poesie (1974-1992), Einaudi, Torino, 1992.

 

Nestoutro poema que à frente traduzo, fala-nos Patrizia Cavalli da solidão acompanhada, tantas vezes presente numa relação cuja razão de ser desapareceu. O poema recorda-me irresistivelmente a canção de Patxi Andion, Aniversário, que em tempos trouxe ao blog.

 

Poema

 

Esta noite perfeita, esta hora tão doce,

o silêncio, e ninguém que perturbe

nesta casa exposta apenas ao mar e ao céu

na temperatura certa da carne,

eu sem carne aqui em frente a ti

enquanto me aborreço e enquanto tu te aborreces e crês

que quebrar o silêncio quebra o tédio

que em vez disso, cada palavra aumenta. E agora?

Entediar-se sozinho talvez seja um luxo,

mas entediar-se em duo é desespero

— não é tédio que plácido resida,

mas activamente trabalha no meu sangue

e me faz fraca e débil, me extingue.

 

Tradução do italiano por Carlos Mendonça Lopes 

 

Poema original

 

Questa notte perfetta, questa ora così dolce,

il silenzio, e nessuno che disturbi

in questa casa esposta solo al mare e al cielo

nella temperatura giusta della carne,

io senza carne qui di fronte a te

mentre mi annoio e mentre tu ti annoi e credi

che rompere il silenzio rompa la noia

che invece ogni parola accresce. E adesso?

Annoiarsi da soli forse è un lusso,

ma annoiarsi in due è disperazione

— non è noia che placida risieda,

ma attivamente lavora nel mio sangue

e mi fa scarsa e debole, mi estingue.

 

in Patrizia Cavalli, Datura, Einaudi, Torino, 2013.

 

 

Abrem e fecham o artigo as imagens de duas pinturas de Edward Hopper (1882-1967), Sol matinal e Hotel junto a uma estação de comboios, ambas de 1952. A primeira pertence à colecção do Columbus Museum of Art, a segunda ao Hirshhorn Museum and Sculpture Garden, Smithsonian Institution, ambos nos EUA.