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vicio da poesia

Category Archives: Convite à arte

Retratos extraordinários — O Bar de Maurice Vlaminck

06 Sexta-feira Jun 2014

Posted by viciodapoesia in Convite à arte

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Maurice Vlaminck

Vlaminck_Maurice_de-The_Bar 1900

Poucas vezes a pintura conseguiu com a economia figurativa deste O Bar, pintado por Maurice Vlaminck (1876-1958) em 1900, dar conta de um universo intuído na segurança do olhar frontal da mulher que encostada a um balcão onde um cocktail vermelho pousa, cigarro descaído ao canto da boca, fita o observador —nós— possíveis clientes, eventualmente polícias de bons costumes, enfim, toda a panóplia humana que corre fora da afirmação desta vida por opção.

É apenas a rugosidade da pincelada que assegura a atmosfera e conduz o olhar: do cabelo à flor do casaco.

Na distribuição espacial dos volumes, e tão só uma linha diagonal chega para transmitir profundidade, é a posição do tronco e cabeça, a lembrar A Dama do arminho de Leonardo da Vinci, que, na curva do peito guiam o observador para o vago fundo onde se intui a gente que povoa o bar. E uma ínfima paleta de amarelo, vermelho, branco e preto, a que laivos de azul se juntam, aplicada sobre um desenho sumário, transforma a pintura numa obra inesquecível.

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Olavo Bilac – A Alvorada do Amor ou Adão e Eva

04 Quarta-feira Jun 2014

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Poetas e Poemas

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Fernand Leger, Olavo Bilac

Adão e Eva 1935-39

Tenho dado conta no blog de parte da abundante iconografia sobre Adão e Eva. São em menor número as reflexões poéticas sobre o mito bíblico do pecado original. Hoje é o poeta brasileiro Olavo Bilac (1865-1918) quem, num precioso poema, A Alvorada do Amor, reflete sobre o amor e a expulsão do paraíso numa nada ortodoxa visão:

 

Vamos! que importa Deus? Desata, como um véu,

Sobre a tua nudez a cabeleira! Vamos!

…

Amo-te! sou feliz! porque, do Éden perdido,

Levo tudo, levando o teu corpo querido!

…

Pode, em redor de ti, tudo se aniquilar:

– Tudo renascerá cantando ao teu olhar,

…

E se, em torno ao teu corpo encantador e nu,

Tudo morrer, que importa? A Natureza és tu,

Agora que és mulher, agora que pecaste!

…

Porque, livre de Deus, redimido e sublime,

Homem fico, na terra, à luz dos olhos teus,

– Terra, melhor que o céu! homem, maior que Deus!”

 

E assim passaram os anos.

Da decisão de Adão “Homem fico, na terra, à luz dos olhos teus” nasceu a prole que encheu o mundo e hoje goza Os Prazeres do Ócio nesta feliz evocação de Fernand Léger (1881-1955).

Os prazeres do ócio 1948-9

Lidos os excertos, vamos ao poema integral.

 

A Alvorada do Amor

 

Um horror grande e mudo, um silêncio profundo

No dia do Pecado amortalhava o mundo.

E Adão, vendo fechar-se a porta do Éden, vendo

Que Eva olhava o deserto e hesitava tremendo,

Disse:

 

          “Chega-te a mim! entra no meu amor,

E à minha carne entrega a tua carne em flor!

Preme contra o meu peito o teu seio agitado,

E aprende a amar o Amor, renovando o pecado!

Abençôo o teu crime, acolho o teu desgosto,

Bebo-te, de uma em uma, as lágrimas do rosto!

 

Vê! tudo nos repele! a toda a criação

Sacode o mesmo horror e a mesma indignação…

A cólera de Deus torce as árvores, cresta

Como um tufão de fogo o seio da floresta,

Abre a terra em vulcões, encrespa a água dos rios;

As estrelas estão cheias de calefrios;

Ruge soturno o mar; turva-se hediondo o céu…

 

Vamos! que importa Deus? Desata, como um véu,

Sobre a tua nudez a cabeleira! Vamos!

Arda em chamas o chão; rasguem-te a pele os ramos;

Morda-te o corpo o sol; injuriem-te os ninhos;

Surjam feras a uivar de todos os caminhos;

E, vendo-te a sangrar das urzes através,

Se emaranhem no chão as serpes aos teus pés…

Que importa? o Amor, botão apenas entreaberto,

Ilumina o degredo e perfuma o deserto!

Amo-te! sou feliz! porque, do Éden perdido,

Levo tudo, levando o teu corpo querido!

 

Pode, em redor de ti, tudo se aniquilar:

– Tudo renascerá cantando ao teu olhar,

Tudo, mares e céus, árvores e montanhas,

Porque a Vida perpétua arde em tuas entranhas!

Rosas te brotarão da boca, se cantares!

Rios te correrão dos olhos, se chorares!

E se, em torno ao teu corpo encantador e nu,

Tudo morrer, que importa? A Natureza és tu,

Agora que és mulher, agora que pecaste!

 

Ah! bendito o momento em que me revelaste

O amor com o teu pecado, e a vida com o teu crime!

Porque, livre de Deus, redimido e sublime,

Homem fico, na terra, à luz dos olhos teus,

– Terra, melhor que o céu! homem, maior que Deus!”

 

Poema publicado pela primeira vez em 1902.

In Poesias, Editora Martins Fontes, São Paulo, 1997.

Transcrito de Os Cem Melhores Poemas Brasileiros do Século, seleção de Italo Moriconi, Editora Objectiva, Rio de Janeiro 2001.

 

Abre o artigo com a imagem de uma pintura de Fernand Léger (1881-1955), Adão e Eva (1935-39) chamada. Seguem-se Os Prazeres do ócio (1948-9) dos filhos de Adão, primeiro em fundo azul, e agora em findo vermelho.

Os prazeres do écio sobre fundo vermelho 1949

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A conferência dos partidos — pintura de Paul Klee, com passagem pelo Reino de Pacheco

24 Sábado Maio 2014

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Poetas e Poemas, Prosa

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Alexandre O'Neill, Eça de Queiroz, Jorge Luís Borges, Paul Klee, Peter Kagayi

Paul Klee - Erro em verde 1939

Contribuo para a reflexão pré-eleitoral que os portugueses hoje vivem, com a pintura alegórica de Paul Klee (1879-1940) que segue. Nela observamos de um lado o gigante liberal, à direita, enfrentando outros animais de corpulência diversa arrumados mais ou menos entre o centro e o lado esquerdo.

Paul Klee - O concerto dos partidos 1907

Os tempos correm perigosamente para o que Jorge Luis Borges (1899-1986) escreveu em 1976 no prólogo ao seu livro A Moeda de Ferro:

Sei-me de todo indigno de opinar em matéria política, mas talvez me seja perdoado acrescentar que descreio da democracia, esse curioso abuso da estatística (destaque meu).

Olhamos a campanha eleitoral na televisão, ouvimos quem se propõe governar-nos, cá ou em Estrasburgo, e ocorre-nos o fabuloso Pacheco inventado por Eça de Queiroz (1845-1900) (carta VIII de A Correspondência de Fradique Mendes).

O personagem é uma caricatura da inanidade parlamentar e pública que, infelizmente, e ainda hoje, vai ao encontro de exemplares vivos.

 

Vale a pena a transcrição da primeira intervenção parlamentar de Pacheco:

…

De pé, com o dedo espetado (jeito que foi sempre muito seu), Pacheco afirmou num tom que traía a segurança do pensar e do saber íntimo: “Que ao lado da liberdade devia sempre coexistir a autoridade!” Era pouco, decerto:— mas a Câmara compreendeu bem que, sob aquele curto resumo, havia um mundo, todo um formidável mundo, de ideias sólidas. Não volveu a falar durante meses — mas o seu talento inspirava tanto mais respeito quanto mais invisível e inacessível se conservava lá dentro, no fundo, no rico e povoado fundo do seu ser. O único recurso que restou então aos devotos desse imenso talento (que já os tinha, incontáveis) foi contemplar a testa de Pacheco — como se olha para o céu pela certeza que Deus está por trás, dispondo. A testa de Pacheco oferecia uma superfície escanteada, larga e lustrosa. E muitas vezes, junto dele, conselheiros e directores-gerais balbuciavam maravilhados: “Nem é necessário mais! Basta ver aquela testa!”

…

Ficaria por aquí, não fora Pacheco, o da testa, ter inspirado um mais pungente que sarcástico poema a Alexandre O’Neill (1924-1986): No Reino do Pacheco:

 

Às duas por três nascemos,

às duas por três morremos,

E a vida? Não a vivemos.

…

Na verdade, vivemos a vida, não o nosso sonho dela.

Sou pai de um desses jovens qualificados que procuram no mundo a vida que cá não há, e quando surge a chamada de decidir do futuro(?) dentro das regras, interrogo-me sobre o como destes últimos quarenta anos nos trouxe até aqui, sem esquecer o país em que nasci e cresci. Não foi feito o melhor. Mas foi feito o possível? E agora, será diferente?

Pensava no que nos angustía, na vida que temos e não queremos e dei de olhos num poema de um jovem do Uganda, Peter Kagayi (1986).

 

Em 2065

Nada irá mudar assim tanto, excepto o facto de ter mais de 70 anos

As estradas serão iguais

Os políticos serão iguais

Kampala será igual

Em 2065 nada irá mudar assim tanto, excepto o facto de ter mais de 70 anos

 

E irei a Mulago para tratar o meu reumatismo e os médicos dirão que não há cura

E o homem do taxi-bicicleta irá recomendar-me um curandeiro da zona Oeste do Nilo

E irei para a escola do meu neto assim como o meu avô fez

E irei ser mandado embora por excesso de idade

 

O presidente vai ser o mesmo que temos hoje, e desde uma cadeira de rodas irá proferir o seu Discurso Nacional

Só que o filho dele, feito entretanto Marechal, irá lê-lo no lugar dele

E falará no seu lugar

E mandará no seu lugar

Em 2065 nada irá mudar assim tanto, excepto o facto de ter mais de 70 anos.

 

E Makerere estará mexida por motins e o General-Major “Não-sei-quantos”

Ordenará abrir fogo contra os estudantes que reivindicam feijões fritos

Pois isso será um perigo para a segurança nacional

E U.R.A. irá taxar o ar que respiramos, as vezes que os casais se beijam,

Os nossos excrementos, as palavras que proferimos e a maneira como morremos

E determinará quem vai para o céu e quem vai para o inferno e irá taxar os seus corpos de modo diferente

 

Em 2065 nada irá mudar assim tanto, excepto o facto de ter mais de 70 anos.

 

E os professores estarão a pedir nas ruas para alimentarem as suas famílias

As suas esposas irão dormir com turistas para conseguirem levar uma vida decente

As leis serão a mesma sombra que os colonialistas deixaram atrás

Com sistemas demasiado arcaicos e demasiado alheados para proporcionarem alguma coisa de essencial

E os estudantes ficarão reduzidos a couves e batatas assim como se encontram hoje em dia

E a proporção entre os desempregados e os aspirantes a trabalho será de nove a um assim como é hoje

E assim a vida irá avançar

E assim nada mudará

…

 

E nós seremos as pessoas desse futuro

Construídas num presente que não promete assim tanto

Excepto envelhecer

Estaremos aí com a esperança de morrer em breve.

 

Depois da transcrição parcial deste terrível poema, deixo-vos com o Reino do Pacheco em véspera de ganhar novo fôlego democrático. Amanhã regresso ao mundo harmonioso do amor feliz.

 

No Reino do Pacheco

 

Às duas por três nascemos,

às duas por três morremos,

E a vida? Não a vivemos.

 

Querer viver (deixai-me rir!)

seria muito exigir…

Vida mental? Com certeza!

Vida por detrás da testa

será tudo o que nos resta?

Uma ideia é uma ideia

— e até parece nossa! —

mas quem viu uma andorinha

a puxar uma carroça?

 

Se à ideia não se der

o braço que ela pedir,

a ideia, por melhor

que ela seja ou queira ser,

não será mais que bolor,

pão abstracto ou mulher

sem amor!

 

Às duas por três nascemos,

às duas por três morremos.

E a vida? Não a vivemos.

 

Neste reino de Pacheco

— do que era todo testa,

do que já nada dizia,

e só sorria, sorria,

do que nunca disse nada

a não ser prá galeria,

que também não o ouvia,

do que, por detrás da testa,

tinha a testa luzidia,

neste Reino de Pacheco,

ó meus senhores que nos resta

senão ir aos maus costumes,

às redundâncias, bem-pensâncias,

com alfinetes e lumes,

fazer rebentar a besta,

pô-la de pernas pró ar?

 

Por isso, aqui, acolá

tudo pode acontecer,

que as ideias saem fora

da testa de cada qual

para que a vida não seja

só mentira, só mental…

 

Publicado pela primeira vez em Poemas com Endereço,1962. Transcrito de Poesias Completas 1951/1986, INCM, 3ªedição revista e aumentada, Braga, 10 de Junho, Dia de Portugal, 1980.

 

O poema de Peter Kagayi foi transcrito de Próximo Futuro, nº14, Outubro 2013, publicação em formato de jornal editada pela Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa.

Termino com o que poderá ser uma imagem da angústia portuguesa ao votar, pintura também de Paul Klee.

Paul Klee - Ensimesmamento 1919

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Filinto Elíseo — Anfiguri e dois epigramas

19 Segunda-feira Maio 2014

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Poesia Antiga

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Filinto Elíseo, Jackson Pollock

Pollock - Numero 8 1949

Epigrama

 

Prometeu, quando fez o homem primeiro,

Macho e fêmea, dous corpos fez, pegados:

Porém Jove um composto assim inteiro

Partiu em dois terníssimos bocados.

Daqui nos vem andarmos sempre ao cheiro

Dos membros, que nos foram arrancados.

— Ei-la — (nos diz o Coração) — É aquela —

Mas vamos a prová-la, e nunca é ela.

 

 

A exigência de uma sólida cultura clássica, a dureza do verso, a persistente recusa no uso da rima, sobretudo nas odes, tudo contribui para afastar o leitor moderno da poesia de Filinto Elíseo (1734-1819). E contudo, que grande poeta!

 

É no fluir encantatória do verso (aqui com rima) que reside todo o fascínio do Anfiguri de Filinto Elíseo que mais à frente transcrevo.

Género poético raro, de difícil factura com sucesso, este anfiguri antecipa todas as vanguardas literárias que o século XX conheceu e nos próximos artigos ilustrarei. É simultaneamente poesia dadaista e surrealista no conteúdo, e experimental no exercício sobre a palavra que tão caro foi às vanguardas poéticas ao longo do século XX.

 

Hoje as preocupações poéticas de criadores centram-se sobretudo nos relatos do “eu e o mundo” no tom sério que, supõem, convém à poesia. O non-sense, o absurdo, ou tão só o trabalho sobre a palavra, se têm cultores, não têm leitores.

Voltando ao que me ocupa hoje, define o dicionário anfiguri como obra literária de sentido confuso; e assim será. Mas ser de sentido confuso não significa ser sem sentido. E é aí que o desafio se coloca: perscrutar os sentidos possíveis num anfiguri que seja também, como é aqui o caso, um poema, notável pela organização rítmica da palavra, essência mesma da poesia.

Pollck- Fora da rede numero 7 1949

ANFIGURI

 

Dá cá o presunto,

Rapaz enfeitado:

Quem não comeu bocado

Não morre de fome.

Morreu Lobisomem

Em camas de neve

Co’a pena que escreve

Decretos de Amor

Que quis com primor

Em rico tapete

Depor o sainete

Da concha Ciprina.

Eu vi a Menina,

Que vence as formosas

C’os lírios, e rosas,

Falar de sob-capa

A bichos do Papa.

Foi muito daninho

Às cepas do Minho

O sol deste inverno:

Quem pôs o governo

Nas mãos da criança

Não canta nem dança;

Mas põe geringonça

Nos papos da Onça.

Garrido estribilho,

Com palha de milho

Vai mui penitente

Nas pelas da gente

Sorver a mostarda,

Que trouxe a Bastarda

Nas garras do lobo.

O magro Farrobo

Nas altas ameias,

Sem ligas, sem meias

Gritou tartamudo:

“Trazei-me veludo

De pelo encarnado

Que dê mau olhado

A três feiticeiros.”

Os velhos gaiteiros

Rebentam de riso

Co’as trovas de guizo

Na vã carapuça.

Bem vai quem se aguça

Por ver o chavelho

Do bom scaravelho

Pintado de azul;

E a penca ao Taful

Da parda caraça,

Que bem se almofaça

C’o texto da Glosa.

E viva essa Moça,

Que compra o rebique,

E diz no despique:

“São bons carapaus.”

Ásados maraus

Com pança balofa

Refrescam a fofa

Nas costas do Alfeito.

Mas foi mui bem feito

Trazerem castanhas

De avulsas maranhas

Do monte Pegú.

O Cucurucú

Despindo as baetas

Mostrou carapetas

Nos Alpes gulosos.

Vieram gostosos

Os nabos Turquinos

Trazer aos meninos

As torres da Sé.

Não ouve, não vê

Cruel rapazia

Dragão que assobia

Deserto e Filhota.

O Céu se encapota

Com manto de sarro

E chove catarro

Por gordas goteiras.

Sacode as peneiras

Brincam Demonico;

Lá leva no bico

Barbudo alguidar.

Mandei bugiar

O homem de ferro,

Que vai como um perro

Capar os picanços.

Passeiam mui mansos

Subtis Jesuítas

Varrendo as Mesquitas

De São Sarabando

Aqui vão quebrando

Os ecos das bombas,

Que estouram nas trombas

Dos Rinocerontes.

Com seis Faetontes

Nas pregas da cauda

Compunha uma lauda

De vãos palavrões

Para as Conclusões

O grande Enxobregas,

Que estanca as bodegas

Da esconsa Prosódia.

Gentil palinódia

Discanta o Sultão

No grão Casarão

Que Merlim lhe acabou.

Aqui me mandou

O seu mensageiro

O mui marralheiro

Autor da matraca,

Que intrépido ataca

Com seus consoantes

Os versos tonantes

Sem tais maravalhas;

E afia as navalhas

Trombudo Censor,

Sem pejo, sem dor.

Eu nestes entrementes

Vos lanço a seus dentes

Versículos louquinhos.

Pollck - pintura 1945

Para despedida, hoje, da poesia de Filinto Elíseo, termino com outro epigrama do poeta.

Epigrama

 

Entender de comércio é gran venida

Para dourar com cabedais a vida:

Val mais que tenças, mais que bons morgados.

Saibam que Filis d’alugar seu leito,

Que apenas lhe custou vinte cruzados,

Tira dez mil, cada ano, de proveito.

Poemas transcritos de Obras Completas, volume I, edição APPACDM, Braga, 1998, integrado em Obras Clássicas da Literatura Portuguesa, edição de Fernando Moreira a partir da 2ª edição, Paris, 1817.

Acompanham o artigo imagens de pinturas de Jackson Pollock (1912-1956).

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A Ceifeira, poema de Luís Augusto Palmeirim com passagem por Sophia

24 Quinta-feira Abr 2014

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Poesia Antiga, Poetas e Poemas

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Luis Augusto Palmeirim, Malevitch, Sophia de Mello Breyner Andresen

Ceifeiras 1929-33Em outros artigos do blog já referi o que de relevante me pareceu sobre a poesia de Luís Augusto Palmeirim (1825-1893) e o contexto de época em que a escreveu. Hoje venho com um poema onde um tipo de mulher do povo se elogia — A Ceifeira, num tempo em que apenas as burguesas eram matéria de inspiração poética.  

 

Profissão felizmente extinta pela tecnologia, a ceifa era uma actividade duríssima e sobre ela temos vasta produção literária no século XX, sobretudo entre os escritores neo-realistas. Nas lutas dos trabalhadores rurais por melhores condições de vida coube a uma ceifeira, Catarina Eufémia (1928-1954), o destino de heroína, ao cair morta às balas da polícia. É a esta mulher, a certa altura tornada símbolo, que Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004) dedica um poema belíssimo e simultaneamente uma notável reflexão sobre Justiça e ser Mulher — inocência frontal que não recua:

 Mulher com pau vermelho 1932-33

Catarina Eufémia

 

O primeiro tema da reflexão grega é a justiça

E eu penso nesse instante em que ficaste exposta

Estavas grávida porém não recuaste

Porque a tua lição é esta: fazer frente

 

Pois não deste homem por ti

E não ficaste em casa a cozinhar intrigas

Segundo o antiquíssimo método oblíquo das mulheres

Nem usaste de manobra ou de calúnia

E não serviste apenas para chorar os mortos

 

Tinha chegado o tempo

Em que era preciso que alguém não recuasse

E a terra bebeu um sangue duas vezes puro

 

Porque eras a mulher e não somente a fêmea

Eras a inocência frontal que não recua

Antígona poisou a sua mão sobre o teu ombro no instante em que morreste

E a busca da justiça continua

 

Publicado em Dual, 1972, transcrito de Obra Poética, Editorial Caminho, Lisboa, 2011.

Raparigas no campo 1928É outro o universo em que o poema de Luís Augusto Palmeirim se move. É a graça feminil da mulher que o poeta canta, realçando como valores de beleza, ao contrário do estereótipo da época, a pele trigueira, queimada pelo sol.

A Ceifeira

 

Há quem diga por inveja

Que és feia por ser trigueira;

Dizem as damas da corte,

Deixai-as dizer ceifeira.

 

Quisera que elas te vissem

Feita senhora festeira,

Que me dissessem depois,

Se eras ou não feiticeira!

 

Que vissem com que requebros

Tu vais a mercar na feira,

Que vissem como inocente

Vais depois pular na eira.

 

Mariquinhas de olhos pretos,

Mimosa—gentil ceifeira,

És bela por caprichosa,

És linda por ser trigueira.

 

Hei-de ir à festa e de longe

Ver-te na dança ligeira,

A ver se coras na dança,

A ver se tens quem te queira.

 

Hei-de ir depois alcançar-te

No atalho, mesmo à beira,

E dizer-te que na dança

Eras gentil, a primeira.

 

A dizer-te que eras linda

Como aurora prazenteira;

A contar-te que na festa

Eras só, sem companheira.

 

A contar-te que não perdes

Por te chamarem trigueira,

A ti, rainha da festa

Mimosa—gentil ceifeira.

 

A ti que eu vi assentada

Ontem à noite à lareira,

Crendo deveras num conto,

Num conto de feiticeira.

 

A ti que vergas a cinta,

Como se verga a palmeira,

Que tens escrita no rosto

Inspiraçâo verdadeira.

 

A ti que dormes com o Cristo  

Pendente da cabeceira;

Que só choraste na vida,

Uma vez—por brincadeira!

 

A quem chamam, por inveja,

A Mariquinhas trigueira;

Porque sabem que és de todas

A mais mimosa ceifeira!

 

Porque tens nos olhos negros

O condão de dar cegueira,

A quem os fita de perto,

Com atenção verdadeira.

 

Só te falta alva capela,

Das flores da laranjeira,

Que a todos diga que a noiva

Era ainda há pouco a festeira.

 

Que nos dê a triste nova,

Que pela vez derradeira,

Vemos de perto tão perto

Aquela fronte fagueira.

 

A quem as mais, por despique,

Vendo a formosa ceifeira,

Diziam — coitada dela

Sendo assim morre solteira!

 

Transcrito de Poesias, 1ª edição, Imprensa Nacional, 1851.

Modernizei a ortografia.

Ceifeiras

No confronto destes poemas surge, gritante, a distância entre a exigência intelectual que a poesia pode ser e ter, e a graciosidade rítmica que consola o leitor poupando-o ao “enfado” da reflexão. E nesse confronto medimos também a distância que separa hoje o gosto do leitor, do gosto dos leitores de há 150 anos, se tivermos em conta quanto ambos os poetas foram populares no tempo que viveram.

 

Acompanham o artigo imagens de pinturas de Kasimir Malevitch (1879-1935).

 

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Van Gogh — os auto-retratos

23 Quarta-feira Abr 2014

Posted by viciodapoesia in Convite à arte

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Van Gogh

1889 Agosto

Foram numerosos os auto-retratos pintados por Vincent van Gogh (1853-1890) nos últimos anos de vida. Atenho-me aos retratos realizados nos anos 1887-1889.

1887 Março-Abril aPara o período destes auto-retratos, as circunstâncias de biografia de van Gogh são conhecidas: a instalação em Arles com o propósito de criar uma comunidade de artistas, as dificuldades em vender obras suas, o conflito com Paul Gauguin, o corte da orelha e os episódios de insânia; e  têm ocupado biógrafos e leitores, colocando a fruição das obras na perspectiva da vida do artista.

1888 Setembro  - dedicado a GauguinAo vê-las, interessa-me sobretudo o confronto da técnica com o poder expressivo das imagens, dando conta de uma complexidade de sentimentos através de uma paleta irrealista e de uma pincelada visivelmente ostensiva, que acrescenta drama ao olhar o retratado.

1887 Verão  c

Sendo sempre o mesmo homem, retrato a retrato seguimos entre a placidez e a determinação, até mesmo à obstinação, e à tragédia da loucura, tomando consciência da fragilidade dos fios que nos prendem a um quotidiano tranquilo.

1887 verão b

São no seu conjunto uma intensa experiência para o olhar.

1886-87 InvernoVê-las cria no espectador uma complexa emoção entre a absoluta genialidade pictórica das obras, a reflexão sobre as contingências da vida que dali transparece, e o sentido das escolhas que fazemos pela vida fora.

1887-88 inverno

1888 Janeiro

1887 Verão d

1887 Verão

1888 Agosto

1889 Setembro

1887 Primavera

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A alma com o coração nas mãos — iluminura medieval e poema de Rabindranath Tagore

20 Domingo Abr 2014

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Poetas e Poemas

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Rabindranath Tagore

Iluminura 07 750px

Na transbordante imaginação pictórica escondida nos manuscritos medievais encontram-se prodígios a que a simbologia do figurado acrescenta uma dimensão metafísica incomparável.

 

Hoje mostro o que será uma representação da alma segurando entre as mãos o coração.

A alma, na forma de mulher-anjo (não sei de “anjas” na mitologia cristã) com asas coloridas, acaricia e interroga(?) o coração. Afinal, o que permanentemente fazemos: Vamos atrás do coração? Seguimos a razão? Ou deixamos que a alma faça a síntese e encontre o caminho que a ambos satisfaz?

 

Exemplar meditação representada, olhemos. E no olhar pensemos: onde está a beleza do mundo que à volta da alma meditativa gira. Em nós está o quê? Como caminhamos neste mundo e dele faremos parte?

 

Boa Páscoa!

Deixo-vos com um poema de Rabindranath Tagore (1861-1941)

 

 

Não voltes atrás

 

Se os portais do meu coração

Estiverem sempre fechados,

Rebenta-os e entra na minha alma,

Senhor, não voltes para trás.

 

Se um dia destes as cordas da minha harpa

Não ressoarem com o teu nome,

Na tua espera digna de piedade,

Senhor, não voltes para trás.

 

Se quando me chamares

A sonolência do meu sono não passar,

Bate-me e acorda-me com o teu trovão,

Senhor, não voltes para trás.

 

Se um dia destes no teu trono

Eu colocar alguém sem pensamentos,

Meu eterno Rei,

Não voltes para trás!

 

Tradução de José Agostinho Baptista

in Rabindranath Tagore, Poesia, Assírio & Alvim, Lisboa, 2004.

 

Nota sobre a pintura

 

Título: A alma dialogando com o seu coração

Pintura sobre pergaminho integrante do livro Mortifiement de vaine plaisance, de René d’Anjou, cerca de 1460.

Fólio 31 do manuscrito 165 da colecção do Fitzwilliam Museum, Cambridge (Mass.).

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TARDE VOS AMEI — Agostinho de Hipona

18 Sexta-feira Abr 2014

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Prosas

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Rogier van der Weyden, Santo Agostinho

Rogier van der WEYDEN - Deposição 9São ínvios os caminhos entre a razão e a crença. Matéria de fé e reserva de cada um, a Paixão de Cristo que o calendário cristão assinala faz-me trazer ao blog a evocação de Santo Agostinho (364-430) sobre a sua conversão cristã e a necessidade de Deus; e arquivar no blog as prodigiosas imagens da pintura de  Rogier van der Weyden (1400-1464), Deposição de Cristo, do Museu do Prado, pintada cerca de 1435.

Rogier van der WEYDEN - Deposição 2

TARDE VOS AMEI

 

Tarde Vos amei, Ó Beleza tão antiga e tão nova, tarde Vos amei.

Habitáveis longamente dentro de mim, e eis-me lá fora a procurar-Vos.

Dispersava-me entre as formosuras que criastes.

Estáveis já comigo, sem que eu estivesse convosco!

Demorava-me naquilo que não existiria se não existisse por Vós.

Até que rompestes minha surdez, chamando por mim com voz tão forte.

Brilhastes, cintilastes por dentro da minha cegueira.

Exaltastes perfume: respirei-o e desejei-Vos com todas as forças.

Saboreei-Vos, e agora padeço de fome, morro de sede.

Tocastes-me, e sem a Vossa paz, sei que nunca mais terei paz!

 

Agostinho de Hipona

Rogier van der WEYDEN - Deposição 5

Rogier van der WEYDEN - Deposição 6

Rogier van der WEYDEN - Deposição 7

Rogier van der WEYDEN - Deposição 8

 

Rogier van der WEYDEN - Deposição 3

Rogier van der WEYDEN - Deposição 1

 

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Vida e Destino com Ricardo Reis

13 Domingo Abr 2014

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Poetas e Poemas

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Fernando Pessoa, Gerhard Richter, Ricardo Reis

Gerhard Richter Abstracção 1990 (2)

A realidade

Sempre é mais ou menos

Do que nós queremos.

 

Parafraseando Camilo Castelo Branco, diria que os leitores do blog são bons e pacientes, mas também querem não ser tentados a perder essas excelentes qualidades, por isso deixo de lado as obscuridades poéticas com que me tenho ocupado, e dei exemplo nos últimos artigos, e regresso a Fernando Pessoa na forma do seu heterónimo Ricardo Reis.

Num pequeno grupo de poemas criados de 1916 a 1933, lemos diferentes pontos de vista sobre vida e destino consubstanciáveis nos versos Com que vida encherei os poucos breves / Dias que me são dados?

e que abrem o primeiro poema escolhido.

Mais à frente duas reflexões sobre carpe diem — goza o dia —no poema 61 de 1923:

Goza este dia como / Se a Vida fosse nele.,

e no poema 144 de 1933:

No mesmo hausto / Em que vivemos, morreremos. Colhe / O dia, porque és ele.

Oscilando entre desejar o gozo do efémero e a consciência de viver uma vida Que nem quero nem amo, / Minha porque sou ela. (Poema 145), acontece a recomendação Vê de longe a vida. / Nunca a interrogues. / Ela nada pode /Dizer-te. (Poema 34).

Porque a vida, felizmente, não nos surge sempre da mesma cor, terminemos com um desejo:

Sob a leve tutela / De deuses descuidosos, /Quero gastar as concedidas horas / Desta fadada vida. (poema 170),  

Conduzi a dança, ninfas singelas / Até ao amplo gozo / Que tomais da vida. (poema171).

Feito o intróito, seguem-se os poemas.

Gerhard Richter Abstracção 1991

67

 

Com que vida encherei os poucos breves

Dias que me são dados? Será minha

A minha vida ou dada

A outros ou a sombras?

 

À sombra de nós mesmos quantas vezes

Inconscientes nos sacrificamos,

E um destino cumprimos

Nem nosso nem alheio!

 

Porém nosso destino é o que for nosso,

Quem nos deu o acaso, ou, alheio fado,

Anônimo a um anônimo,

Nos arrasta a corrente.

 

Ó deuses imortais, saiba eu ao menos

Aceitar sem querê-lo, sorridente,

O curso áspero e duro

Da strada permitida.

 

5-5-1925

Gerhard Richter Abstracção 1994 (2)

61

De uma só vez recolhe

As flores que puderes.

Não dura mais que até à noite o dia.

Colhe de que lembrares.

 

A vida é pouco e cerca-a

A sombra e o sem-remédio.

Não temos regras que compreendamos,

Súbditos sem governo.

 

Goza este dia como

Se a Vida fosse nele.

Homens nem deuses fadam, nem destinam

Senão que  ignoramos.

 

24-10-1923

Gerhard Richter Abstracção 1992

144

Uns, com os olhos postos no passado,

Vêem o que não vêem; outros, fitos

Os mesmos olhos no futuro, vêem

O que não pode ver-se.

 

Porque tão longe ir pôr o que está perto —

O dia real que vemos? No mesmo hausto

Em que vivemos, morreremos. Colhe

O dia, porque és ele.

 

28-8-1933

Gerhard Richter Abstracção 1993 (2)

145

Súbdito inútil de astros dominantes,

Passageiros como eu, vivo uma vida

Que nem quero nem amo,

Minha porque sou ela.

 

No ergástulo de ser quem sou, contudo,

De em mim pensar me livro, olhando no atro

Os astros que dominam,

Submisso de os ver brilhar.

 

Vastidão vã que finge de infinito

(Como se o infinito se pudesse ver!) —

Dá-me ela a liberdade?

Como, se ela a não tem?

 

19-11-1933

Gerhard Richter Abstracção 1995 (3)

34

Segue o teu destino,

Rega as tuas plantas,

Ama as tuas rosas.

O resto é a sombra

De árvores alheias.

 

A realidade

Sempre é mais ou menos

Do que nós queremos.

Só nós somos sempre

Iguais a nós-próprios.

 

Suave é viver só.

Grande e nobre é sempre

Viver simplesmente.

Deixar a dor nas aras

Como ex-voto aos deuses.

 

Vê de longe a vida.

Nunca a interrogues.

Ela nada pode

Dizer-te. A resposta

Está além dos Deuses.

 

Mas serenamente

Imita o Olímpo

No teu coração.

Os deuses são deuses

Porque não se pensam.

 

1-7-1916

Gerhard Richter Abstracção 1994 (3)

170

Sob a leve tutela

De deuses descuidosos,

Quero gastar as concedidas horas

Desta fadada vida.

 

Nada podendo contra

O ser que me fizeram,

Desejo ao menos que me haja o Fado

Dado a paz por destino.

 

Da verdade não quero

Mais que a vida; que os deuses

Dão vida e não verdade, nem talvez

Saibam qual a verdade.

171

Sob estas árvores ou aquelas árvores

Conduzi a dança,

Conduzi a dança, ninfas singelas

Até ao amplo gozo

Que tomais da vida. Conduzi a dança

E sê quasi humanas

Com o vosso gozo derramado em ritmos

Em ritmos solenes

Que a vossa alegria torna maliciosos

Para nossa triste

Vida que não sabe sob as mesmas árvores

Conduzir a dança…

Gerhard Richter Abstracção 1995

in Ricardo Reis, Poesias, edição Manuela Parreira da Silva, Assírio & Alvim, Lisboa, 2000.

Acompanham os poemas imagens de pinturas de Gerhard Richter (1932), tituladas todas abstracção, e pintadas entre 1990 e 1995.

Gerhard Richter Abstracção 1995 (2)

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Amor e desejo em três poemas de Jorge de Sena

17 Segunda-feira Mar 2014

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Poetas e Poemas

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Edward Hopper, Jorge de Sena, Matisse

Matisse-Ronsard 08A600pxAgora que regressa às livrarias a Obra Poética de Jorge de Sena (1919-1978) (ainda que apenas a poesia reunida em livro pelo poeta em vida) tão escandalosamente ausente delas há mais e 20 anos, abro o apetite a novos leitores com dois poemas onde o amor se cumpre no corpo da amada:

… cristalino pó de amantes enlaçado.

“Conheço o sal…”

Conheço o sal da tua pele seca

depois que o estio se volveu inverno

da carne repousada em suor nocturno.

 

Conheço o sal do leite que bebemos

quando das bocas se estreitavam lábios

e o coração no sexo palpitava.

 

Conheço o sal dos teus cabelos negros

ou louros ou cinzentos que se enrolam

neste dormir de brilhos azulados.

 

Conheço o sal que resta em minhas mãos

como nas praias o perfume fica

quando a maré desceu e se retrai.

 

Conheço o sal da tua boca, o sal

da tua língua, o sal dos teus mamilos,

e o da cintura se encurvando em ancas.

 

A todo o sal conheço que é só teu,

ou é de mim em ti, ou é de ti em mim,

um cristalino pó de amantes enlaçados.

Madrid, 16/1/1973

“Tu és a terra…”

Tu és a terra em que pouso.

Macia, suave, terna, e dura o quanto baste

a que teus braços como tua pernas

tenham de amor a força que me abraça.

 

És também pedra qual a terra às vezes

contra que nas arestas me lacero e firo,

mas de musgo coberta refrescando

as próprias chagas de existir contigo.

 

E sombra de árvores, e flores e frutos,

rendidos a meu gesto e meu sabor.

E uma água cristalina e murmurante

que me segreda só de amor no mundo.

 

És a terra em que pouso. Não paisagem,

não Madre Terra nem raptada ninfa

de bosques e montanhas. Terra humana

em que me pouso inteiro e para sempre.

Londres, 15/3/1973

Concluo com o relato de um daqueles intensos desejos que uma desconhecida pode desencadear no sem que fazer de uma viagem solitária, onde o inesperado é sempre um sonho escondido.

 Compartimento de comboio 1938

No comboio de Edimburgo a Londres

Que coisas se fariam — tão de seios

redonda e esbelta aqui sentada e loira

e lendo um livro idiota à minha frente!

As pernas que se juntam quanto abri-las

a duras mãos com dedos titilantes

para depois se unirem apertando

em úmidas paredes o que se entesa vendo-a…

Poemas publicados originalmente no livro Conheço o sal… e outros poemas (1974), transcritos de Poesia III, 2ª edição, Edições 70, Lisboa, 1989.

 

Abre o artigo um desenho de Matisse (1859-1964) para um livro de poemas de Ronsard, Les amours de Ronsard, escolha e ilustração do mestre, e das mais belas obras que a biblioteca contem.

Fecha com uma pintura de Edward Hopper (1882-1967) de 1938.

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