Uma graçola setecentista pelo Halloween

Etiquetas

Na minha quase infinita capacidade de compreensão o entusiasmo das gentes hoje pelo fenómeno Halloween (ou Dia das Bruxas nos países católicos) não cabe. Se nas raízes e na sua história a explicação da sua existência tem um fundo perceptível como esconjuro, o nosso mundo hoje não lhe presta atenção. É apenas o folclore do horror o que o entusiasma. Como prefiro o riso ao medo, a minha resposta a tudo este espectacular fenómeno é o poema que hoje aqui arquivo e mais à frente o leitor encontra. Para a semana regresso ao sério.

Habitualmente é o conteúdo do artigo que determina a escolha da(s) imagem(s) que o acompanha(m). Raramente é o contrário. Hoje é um desses casos. Ao ler uma monografia sobre a obra pictórica de Richard Hamilton (1922-2012), tantas vezes sarcástica como o evidencia a colagem “Just what is it that makes today’s homes so different, so appealing?” de 1956, e já reproduzida no blog, deparei-me com a imagem da obra que abre este artigo, o que me levou a memória para um poema setecentista que a seguir transcrevo, graçola fecal há anos encontrado numa colecção de poemas escatológicos setecentistas editada por Francisco Topa, e que o editor sub-titulou: “versos de entrudo em metáforas fedorentas”, de modo nenhum único à época: lembremo-nos de alguns sonetos atribuídos a Bocage (1765-1805) por Inocêncio nas suas Poesias Eróticas Burlescas e Satíricas, nomeadamente aquele “Cagando estava a dama mais formosa”, que o moderno editor da obra, Daniel Pires, especula poder ser do Abade de Jazente, Paulino da Costa Cabral (1719-1789).

É apenas tornar evidente a variedade temática que a poesia de todas as épocas e latitudes oferece que por vezes me leva a transcrever poemas que, se tomasse a vida sempre pelo lado sério, nunca o faria. Felizmente não acontece e volta e meia aqui vão aparecendo exemplares dessa poesia marginal.

 

 

Décima setecentista

 

No convento caga a Freira,  

O Algarve* na falua**,  

O pobre caga na rua,  

O mochila*** na cocheira. 

Também caga a cozinheira,  

Cagam moças, cagam amas,  

Cagam mariolas e damas,  

Cago eu e cagas tu;  

Não só caga quem tem cu, 

Também caga quem tem mamas.

 

* Algarve — indivíduo natural do Algarve

** falua — barco de pesca à vela

*** mochila — indivíduo que seguia de pé, atrás, numa carruagem.

As notas são minhas e não constam da edição.

 

 

Será certamente do âmbito da psicologia de grupo a explicação para que o relato destas manifestações fisiológicas continue a desencadear o riso sempre que em ambiente de desenfado a anedota surge.

 

 

Nota bibliográfica

Francisco Topa, Folguedos escatologicos inéditos do séc.XVIII — versos de entrudo em metáforas fedorentas, edição do autor, Porto, 1998.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma obra de Richard Hamilton (1922-2012), Girl with skirt up, de 1972. Técnica mista: colagem,lápis, acrílico e óleo s/papel impresso, 56×40,5cm, de colecção partícular.

A obra vem reproduzida em Richard Hamilton, Tate Publishing, London, 2014.

 

O mito dos andróginos e um epigrama de Filinto Elísio

Etiquetas

, , , ,

Se no artigo anterior sobre o Fragmento 328 West se condenava violentamente a promiscuidade sexual e o seu comércio, a busca da metade que nos falta tomando à letra o mito dos andróginos narrado por Aristófanes no diálogo O Banquete  (189d-193-d) de Platão (428/27-348/47 a.C.) não sai beliscada. Ou seja a demanda sexual do outro é perfeitamente justificável à luz da vida casta dos estóicos, salvaguardadas que sejam temperança e dignidade humana.

Na floresta imensa das composições poéticas de Filinto Elísio (1734-1819) tantas delas datadas no assunto e no estilo para o leitor de hoje, surgem alguns poemas que pelo tema continuam a falar-nos, sendo sempre servidos por uma arte poética de enorme sofisticação. 

Hoje trago aos leitores um seu epigrama com a leitura poética do mito dos andróginos que acima mencionei. Nele, e para quem conheça o discurso de Aristófanes no diálogo O Banquete de Platão, o epigrama aborda apenas a busca heterossexual, enquanto Aristófanes (ou antes Platão pela boca daquele) é mais abrangente e inclui também a explicação para a busca homossexual. 

Filinto Elísio não resiste à ironia e no último verso mostra o seu cepticismo sobre a veracidade do mito:

—Ei-la — (nos diz o coração ) — É aquela —

Mas vamos a prová-Ia, e nunca é ela.

 

 

EPIGRAMA

 

Prometeu, quando fez o homem primeiro,

Macho e fêmea, dous corpos fez, pegados:

Porém Jóve um composto assim inteiro

Partiu em dous ternissimos bocados.

Daqui nos vem andarmos sempre ao cheiro

Dos membros, que nos foram arrancados.

—Ei-la — (nos diz o coração ) — É aquela —

Mas vamos a prová-Ia, e nunca é ela.

in Filinto Elysio, Obras Completas, tomo 1.º, Paris, Na oficina de A. Bobée, 1817.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Bernard van Orley (1492?-1542) também conhecido como Bernard, Barent, ou Barend, pintor flamengo chamado o Rafael do Norte. A pintura, para lhe ser dada legitimidade icónica pretende representar Júpiter e a Ninfa.

 

Fragmento 328 West, em tempos atribuído a Arquíloco

Etiquetas

,

Ao ler a poesia que nos legou a antiguidade clássica vale a pena ter uma visão prévia dos valores e modos de vida por lá adoptados. Não é aqui o lugar para o fazer, mas tenhamos sempre presente que as palavras usadas nas línguas modernas para traduzir essa poesia nem sempre abarcam o completo ou exacto sentido do que significavam à época, conduzindo tantas vezes a interpretações enviesadas de como foi a vida nessas sociedades. Para o poema de hoje a necessidade desse enquadramento para a íntegra interpretação da moral que encerra é paradigmática. Em nota faço apenas uma pequena observação sobre vida casta e outra a propósito da imagem que abre o artigo. As considerações de prostituição e homossexualidade têm sido objecto de vasta produção universitária, sobretudo anglo-americana, nem sempre distante da militância dos seus autores nas lutas sociais e ideológicas dos nossos dias.

 

É um curioso e atípico poema da antiguidade greco-romana o fragmento 328 West, em tempos atribuído a Arquíloco (séc. VII a.C) que hoje trago aos leitores do blog. Nele se lê de início uma violenta diatribe contra a prostituição masculina ou feminina. 

 

 

Do devasso e da reles rameira igual é o espírito.

Alegram-se ambos em levar dinheiro 

para serem penetrados e rasgados, 

para serem fodidos e montados, 

para lhes meterem a cavilha e os abrirem, 

para lhes enfiarem a salsicha e os revolver no pó. 

 

Sem eufemismos nem pruridos de linguagem, a qual podemos também encontrar em Marcial (40-104), o poeta latino, ficamos elucidados do juízo do poeta, actualmente desconhecido. O poema prossegue no mesmo tom até que o autor nos esclarece sobre as suas escolhas ao rematar o poema com o propósito de vida casta* e temperança caros à sociedade grega e sobretudo aos estóicos:

Quanto a mim, os dons das Musas e da vida casta* 

são preferíveis, convicto de que aí sim 

está a delícia, a graça verdadeira,

de que nisso reside a alegria: nunca conviver 

com esses a quem apraz o vergonhoso prazer.

 

* vida casta não tem aqui o significado cristão de castidade, mas é no sentido de dosear desejos, emoções, etc, por valores de dignidade humana, reflectir sobre eles e agir de acordo.

 

 

É a tradução brilhante do poema a partir do original grego por Carlos A. Martins de Jesus antes citada que os leitores podem ler a seguir na totalidade:

 

 

Poema

 

Do devasso e da reles rameira igual é o espírito.

Alegram-se ambos em levar dinheiro 

para serem penetrados e rasgados, 

para serem fodidos e montados, 

para lhes meterem a cavilha e os abrirem, 

para lhes enfiarem a salsicha e os revolver no pó. 

A ambos não os satisfaz nunca um só garanhão,

antes dos devassos, um atrás do outro, 

toda e qualquer verga com gosto devoram; 

provam os maiores e mais grossos paus, 

para que, ao cavalgá-los, explorem 

todas as suas entranhas, para que lhes rasguem a funda 

abertura do horrível abismo e sem cessar 

avancem mesmo até ao centro do umbigo. 

Por isso, vá para o diabo a devassa meretriz

e com ela a raça dos debochados de cu aberto.

Quanto a mim, os dons das Musas e da vida casta 

são preferíveis, convicto de que aí sim 

está a delícia, a graça verdadeira,

de que nisso reside a alegria: nunca conviver 

com esses a quem apraz o vergonhoso prazer.

(Fra. 328)

 

in Arquíloco, Fragmentos Poéticos, introdução, tradução e notas de Carlos A. Martins de Jesus, INCM, Lisboa, 2008.

 

 

Abre o artigo a imagem de um vaso grego (kilix) de cerca de 520 a.C cuja pintura é atribuída a Amasis. O vaso pertence à colecção do museu de belas-artes de Boston. 

Na pintura dos vasos gregos que chegaram até nós, a representação de orgias com humanos é rara. Sabedores do lado animal da natureza humana, para a representar criaram na mitologia seres híbridos, parte animal, parte homem, dos quais os sátiros estão entre eles. Na sua representação distinguem-se de humanos por uma longa cauda de cavalo e surgem habitualmente com uma gigantesca erecção. Não surgem em representações homoeróticas. Tidos como criaturas incapazes de continência e segurar a urgência no que aos prazeres respeita, é essa uma leitura possível dos dois sátiros masturbando-se representados na taça da imagem de abertura.




Não lamentes, ó Nise, o teu estado — soneto de Bocage ou tradução do castelhano?

Etiquetas

, ,

Hoje trago um desafio aos estudiosos da obra de Bocage (1765-1805) com uma questão de autoria de um dos seus sonetos burlescos. Trata-se do soneto cujo primeiro verso é “Não lamentes, ó Nise, o teu estado” publicado por Inocêncio na primeira edição das Poesias Eróticas Burlescas e Satíricas com o nº6. Refere o editor em nota que o soneto, muito popular à época, embora tendo circulado sempre como de Bocage, o próprio nunca o reconheceu como seu e poderia, por isso, ser de João Vicente Pimentel Maldonado (1773-1838) e não de Bocage. O moderno editor destas poesias, Daniel Pires, diz taxativamente: “Julgamos tratar-se de um poema de Bocage.” em nota na sua edição, onde o soneto traz o nº23. Até aqui tudo bem.

Acontece que lendo eu poesias burlescas e satíricas em castelhano deparei com um soneto atribuído a Tomás de Iriarte (1750-1791), cujo primeiro verso é “No te quejes, ¡oh, Nise!, de tu estado”. Não só o primeiro verso em português e castelhano é idêntico, como o desenvolvimento dos sonetos é o mesmo com as adaptações de rima e métrica necessárias em cada língua, como o leitor pode constatar pelas transcrições respectivas a seguir.

A atribuição a Tomás de Iriarte sendo mais frequente, não é unânime, e diferentes edições de poesias burlescas castelhanas o dão ora como anónimo (ex. no “Álbum de Príapo (1820)), ou como de Francisco de Quevedo (1580-1645), ou ainda de Felix Maria de Samaniego (1745-1801). Sendo incerta a autoria de Iriarte, os modernos editores espanhóis da colecção escolhida por Barbadillo (ver nota bibliográfica) consideram como provável ser o soneto do séc. XVII. Tanta autoria atribuída em Espanha, e constando o soneto das mais variadas antologias antigas compiladas a partir de manuscritos os mais diversos, pode concluir-se da extrema popularidade do soneto em Espanha.

Como Bocage teria 26 anos em 1791 quando Iriarte morreu, para não falar em Pimentel Maldonado que teria 18 anos, parece-me difícil que Bocage tivesse escrito o soneto antes e este fosse tão popular que Iriarte ou outro em Espanha o tivesse traduzido e o fizesse circular como seu. Fica assim a única possibilidade plausível de o soneto ser um original castelhano e alguém em Portugal, Bocage ou outro, tentou a tradução e a fez circular eventualmente como original. Comparando os dois sonetos encontra-se uma elegância no soneto em castelhano que em português desaparece substituída por alguma grosseria.

Eis os sonetos:

 

 

Soneto atribuído a Bocage/Pimentel Maldonado

 

Não lamentes, ó Nise, o teu estado; 

Puta tem sido muita gente boa,

Putissimas fidalgas tem Lisboa, 

Milhões de vezes putas têm reinado:

 

Dido foi puta, e puta dum soldado; 

Cleopatra por puta alcança a c’roa; 

Tu, Lucrecia, com toda a tua proa, 

O teu cono não passa por honrado;

 

Essa da Rússia imperatriz famosa,

Que inda há pouco morreu (diz a Gazeta)

Entre mil porras expirou vaidosa.

 

Todas no mundo dão a sua greta: 

Não fiques pois, ó Nize, duvidosa 

Que isto de virgo e honra é tudo peta.

 

 

 

Soneto de Tomás de Iriarte (?)

 

 

Extención y fama del oficio de puta

 

No te quejes, ¡oh, Nise!, de tu estado

aunque te llamen puta a boca llena,

que puta ha sido mucha gente buena

y millones de putas han reinado.

 

Dido fue puta de un audaz soldado

y Cleopatra a ser puta se condena

y el nombre de Lucrecia, que resuena,

no es tan honesto como se ha pensado;

 

esa de Rusia emperatriz famosa

que fue de los virotes centinela,

entre más de dos mil murió orgullosa;

 

y, pues todas lo dan tan sin cautela,

haz tú lo mismo, Nise vergonzosa;

que aquesto de honra y virgo es bagatela.

 

 

Nota bibliográfica

Bocage, Obra Completa, vol VII, edição de Daniel Pires, Caixotim Edições, 2004.

Bocage, Poesias Eróticas, Burlescas e Satíricas, Bruxellas, MDCCCLXL.

Barbadilho, Joaquín López, Cancionero de Amor y de Risa, Ediciones Espuela de Plata, Sevilla, 2007.

 

 

Abre o artigo a imagem de um detalhe de uma pintura de Antoine Watteau (1684-1721), Uma mulher caprichosa (1718), pertença da colecção do museu Hermitage de São Petersburgo.




Poemas de Carlos Maria de Araújo

Etiquetas

,

O dia vai e noutro se encadeia

e este meu querer mais se liberta

de gestos, palavras, outras peias,

para ser

apenas

uma ideia

in Ofício de Trevas, Poema XII 

 

 

Há um desperdício no gesticular diário de cada um ao correr atrás do efémero, ou momentaneamente relevante, que no final nos deixa as mãos cheias de nada, parafraseando Irene Lisboa. Para a consciência desta vacuidade nos chama a atenção o poema de Carlos Maria de Araújo (1921-1962) com que abro o artigo.

 

São poucos poemas a obra conhecida de Carlos Maria de Araújo (1921-1962). Curta vida e edições pequenas fazem dos seus três livros publicados raridades bibliográficas. 

Talvez o nome do poeta Carlos Maria de Araújo de quem hoje transcrevo alguns poemas, seja familiar aos leitores de Hilda Hilst (1930-2004) pelos poemas de 1967, Pequenos funerais cantantes ao poeta Carlos Maria de Araújo

Foi Jorge de Sena quem, na edição de 1969 de Líricas Portuguesas, 3.ª Série, chamou a atenção em Portugal, em termos encomiásticos, para esta poesia: “A sua obra muito breve é por certo das mais puras e notáveis da poesia portuguesa …” e mais à frente acrescenta: “Poesia extremamente despojada e densa, de um intensa severidade formal e de vigorosa emoção contida numa expressão lapidar, é bem a de um oficiante das trevas que tão terrivelmente cobrem o mundo.

Feita a apresentação, necessária face à pouca visibilidade pública desta poesia, vamos à escolha:

 

 

XVIII

De longe

não se sabe se é orvalho

se são contas de vidro

se apenas a tristeza

e uma flor…

 

 

XVI

Ainda se caíssemos como a noite

 

ainda se o vento nos levasse

em suas longas crinas de cavalo

 

ainda se fôssemos um gesto

de mar se alongando para o longe

 

ainda se não fôssemos semente

do grande medo que se levanta em nós

 

 

XXIII

Ofício de Trevas

 

A nossa fome

senhor

quotidiana

 

a nossa sede

de água

e de justiça

 

a carnagem do sal em nossos pés

as raízes da noite em nossos olhos

 

nosso caminho

senhor

senhor

nosso caminho

 

em nossas mãos

abertas

nosso grito

 

 

II

Oh! A terra

vermelha

do meu corpo,

que tantos pés

já pisaram

em ritmo apressado

e em todos os sentidos

mas onde

jamais alguém ficou

sequer por um instante

adormecido

sonhando

 

 

XI

Já foi um barco à vela 

este meu corpo

hoje um madeiro, algas e salsugem

 

já foi proa de aventuras

e em seu seio

vozes cantaram e arderam lumes

 

rasgou-lhe o peito o amor

um desespero

um arrecife sem nome, de tão grande

 

já foi um barco à vela

este meu corpo

hoje nudez, hoje ausências, hoje brumas

 

 

V

Elegia

 

Os dedos

que percorrem meus cabelos

e aquietam os meus olhos

que afagam os meus lábios

e seguram minha mão

que afastam minha angústia

hoje

não são 

 

 

X

Porque nunca foste nostalgia

 

porque nunca foste insónia

febre de aventura

navio

 

porque nunca foste a lua

vento nocturno

agonia

 

porque nunca foste desatino

luzir de faca

cilício

 

porque és penumbra e quietude

capela nua

vigília

 

és tu esta poesia

minha amiga

 

 

Nota bibliográfica

Poemas transcritos de Carlos Maria de Araújo, Ofício de Trevas, c/retrato e ilustrações de Clóvis Graciando, Livros de Portugal, Rio de Janeiro, 1960.

Líricas Portuguesas, 3.ª Série, vol. I, 3.ª edição, Edições 70, Lisboa, 1984.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Picasso (1881-1973), O Marinheiro (1938), de colecção particular.

 

Bolas de sabão — Rememoração com a pintura de Manet e o poema de Afonso Lopes Vieira em fundo

Etiquetas

Durante alguns anos o museu Gulbenkian em Lisboa foi-me um lugar tranquilo de convívio com a arte. Acontecia ir estudar para o jardim da fundação, ou para o bar do seu museu, aí almoçar, e algumas tardes deambular no silêncio das salas sem gente, seguido apenas pelo olhar dos vigilantes. Olhava aqui, parava ali, e nas primeiras visitas era poderosamente atraído pela pintura de um velho pintado por Rembrandt (1606-1669). Na gigantesca mancha escura das suas vestes sobressaía uma cabeça pequena que olhava com uma tristeza infinita. E eu, sentado no banco frente à pintura ali ficava longos minutos fascinado, não sei se pela perplexidade de como se consegue pintar a tristeza com tamanha emoção, ou pela interrogação de como a vida consegue trazer tamanha tristeza ao olhar. Será que hoje tenho algumas respostas?

Havia outras pinturas e objectos que me atraiam e atraem a cada nova visita. Os vidros pintados e as cerâmicas do médio oriente, os marfins medievais, ou os livros de horas, são parte de um mundo de fascínio que na demora das visitas me abraçava.

Nos primeiros anos de abertura do museu mostravam-se algumas gravuras japonesas, que pela sua fragilidade, suponho, foram mais tarde retiradas de exposição. Revelação de um género na elegância e sofisticação do seu grafismo, tornou-se uma paixão que me conduziu mais tarde à sua colecção. Mas a pintura europeia continuou anos fora a ser o motor das minhas deambulações por horas entre as salas do museu.

Circulando entre o sumptuoso mobiliário surgia a pintura de intimidades de alcova de Boucher (1703-1770), que um fio invisível puxado por Casanova (1725-1798) me levava à jóia formada pelas pinturas de Guardi (1712-1793), conduzindo-me primeiro a uma Veneza de sonho, e depois de lá ter estado, ao debate entre a realidade e a sua pintura dela, sendo que tantos dos lugares captados pelo pincel do séc. XVIII continuam reconhecíveis à mesma luz de milagre da cidade mágica.

Se os retratos do séc. XVIII da colecção, franceses ou ingleses, nunca me atraíram particularmente, chegado aos impressionistas e afins é outra história. 

Quando pintei, acontecia ir ao museu estudar uma pintura de Monet (1840-1926) em particular que me fascinava e fascina, O Degelo de 1880, retrato da fria e avassaladora beleza de uma natureza perante a qual o homem é nada. Perscrutava cada pincelada na sua textura e cor, e afastando-me da pintura avaliava o efeito no conjunto que a distância produzia. Em pausa deste estudo olhava para a esquerda, e lá estava Madame Claude Monet pintada por Renoir (1841-1919) em 1872-74, pousada num canapé, com ar de quem pertence, não a um ambiente de salão mas a um universo rústico. À direita olhava de soslaio um jovem um tanto empertigado na sua elegância citadina, apreciador de intimidades com bailarinas, como sabemos, pois tratava-se de um auto-retrato de Degas (1834-1917) em 1863. E entre estes polos segui eu fascinado com a arte de pintar de Monet. Um pouco mais afastada estava então a pintura de Manet (1832-1883), O rapaz das bolas de sabão de 1867, pretexto desta deambulação induzida pelo poema de Afonso Lopes Vieira (1878-1946), que a seguir transcrevo.

O poema capta com rara felicidade, servindo-se da frágil beleza e brilho das bolas de sabão, e do encanto de as soprar, a realidade do homo faber que, se por momentos se entusiasma no seu fazer, rapidamente esse conseguimento se desvanece na sucessão dos efémeros de que a vida se faz, quais

… vagos, pequeninos mundos

que, como todos os mundos, evolucionam e desaparecem.

Esta extinção antecipadamente conhecida não é suficiente, como sabemos, para impedir a procura continuada do belo que a vida trás. E pela metáfora da aventura da vida segue o poema:

E [a criancinha] continua, absorta; o rosto sério,

como de quem trabalha e não descansa; 

cresce uma…, e parte-se; outra…, já soçobra.

Assim por elas, num deslumbramento,

canta, perpassa, brilha à claridade,

este abismo infinito dum momento: um pouco de Eternidade.

Eis o poema na totalidade:

Bolas de sabão

Assenta-se no chão a criancinha

cruza as pernitas,

… e na ponta do tubo incham e crescem 

aqueles vagos, pequeninos mundos

que, como todos os mundos, evolucionam e desaparecem.

Já profundos, os seus olhos

contemplam nessas quebradiças bolas 

a sua aérea evolução etérea.

Débeis, duma ideal fragilidade 

tão frágil que, suspensa e receosa,

inda mais leve, mais, que suspirando,

com vago sentimento de ansiedade

é que o contido bafo as vai lançando…

São corpos cuja alma vaporosa

apenas é um sopro de criança.

E continua, absorta; o rosto sério,

como de quem trabalha e não descansa; 

cresce uma…, e parte-se; outra…, já soçobra.

E brincando, embebido no mistério, 

esse poeta cria a sua obra…

Mas o sol, que ali vem do céu distante,

trespassa-as, colorindo-as reverbera:

e então a luz cintila deslumbrante 

em cada efémera esfera.

Cada raio de sol que vem pôr

o seu divino ser, vai, glorioso,

criando com poder maravilhoso

a maravilha da cor!

Assim por elas, num deslumbramento,

canta, perpassa, brilha à claridade,

este abismo infinito dum momento: um pouco de Eternidade.

Afonso Lopes Vieira

in O Pão e as Rosas, Livraria Ferreira — Editora, Lisboa, 1908.

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Eduard Manet (1832-1883), As bolas de sabão, de 1867. A pintura pertence à colecção do Museu Calouste Gulbenkian de Lisboa.

O mistério da aranha num poema de Carlos Queiroz

Os fios que nos ligam ao mundo são a nossa estratégia de sobrevivência. Criam-se e destroem-se por nós e pelos outros. Frágeis como os fios que a aranha tece, são a medida da vulnerabilidade, da persistência, do enredado da vida. E na reflexão poética sobre o eu, a vontade, e o mundo, vamos encontrar esta fragilidade em mais um poema perfeito de Carlos Queiroz (1907-1949) Aranha, uma obra-prima da poesia portuguesa.

 

 

Aranha

 

À sombra dum cedro imenso

Eis-me a sentir e a pensar;

Mas o que sinto não penso

E o que penso está suspenso

Como uma aranha no ar

 

No ar balouça, fremente,

Num débil fio invisível

Dessa teia intermitente

Que liga o passado ingente

Ao presente irreversível.

 

Irreversível instante

O estar aqui na paisagem

Dentro dela e já distante

— Pois o que somos durante

É de nós próprios imagem.

 

Imagem que se desdobra

Sem que a vontade a detenha

No tempo que nunca sobra.

Viver?… Criar uma obra?…

Oh, o mistério da aranha!

 

in Colectânea de Versos Portugueses do séc. XII ao séc. XX, organização de Cabral do Nascimento, Editorial Minerva, Lisboa, 1964.

 

 

Da poesia de Carlos Queiroz publicada no livro Desaparecido, primeiro e fulgurante livro do poeta, escreveu Fernando Pessoa (1888-1935):

“A beleza do livro começa pelo livro. A edição é lindíssima. A beleza do livro continua pelo livro fora: os poemas são admiráveis.

Não se pode dizer deste livro o que é vulgar dizer-se, elogiosamente, de um primeiro livro, sobretudo de um jovem: — que é uma bela promessa. O livro de Carlos Queiroz não é uma promessa, porque é uma realização. Cumpriu, sem ter prometido, sem ter tido que prometer.

Assim se deveria fazer sempre, ou quase sempre. Pertence ao mais íntimo da probidade literária e artística o não se apresentar ao público sem ter plena consciência de que na obra apresentada está tudo quanto em nós haja de forte. Não escrevia Milton um soneto sem que o fizesse como se desse soneto dependesse toda a sua fama futura.

E que prazer o de se poder escrever isto sem que a amizade que tenho pelo poeta, que é muita, uma só palavra me dite; sem o que o gosto de incitar quem é jovem, e tenho esse gosto, me faça sublinhar uma só frase; de poder escrever isto sem mais entendimentos que com a justiça, sem mais combinações que com a verdade.”

1935

in Textos de Crítica e de Intervenção, Fernando Pessoa, Lisboa, Ática, 1980.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Joan Miró (1893-1983), Cabeça e aranha, óleo s/tela de 1925, da colecção do Museu Reina Sofia de Madrid.

 

Merícia de Lemos — O amor talvez seja o que do nada resta

Etiquetas

,

É poesia a silenciosa

distância entre a emoção 

e o seu canto

 

 

A obra de Merícia de Lemos (1913-1996(?)) é uma obra poética decantada de excessos retóricos onde por vezes o verso cintila, e poemas há que são uma absoluta revelação do eu pela palavra.

 

 

Onde Estive?

Andei esquecida da morte

anos e anos

numa graça de amor

numa harmonia de fontes cantar

e que mais canta

 

Andei esquecida da morte

dias e noites

— o tempo mais não é que sol e sombra

 

Andei esquecida da morte

— o coração tornado nova estrela

 

Andei a viver!

in Merícia de Lemos, Tangentes

 

 

Este viver que o poema mostra reflecte a sua poesia. Poesia que fala “com elegante fantasia e sóbria segurança das suas emoções e mágoas de mulher” na penetrante apreciação de Jorge de Sena  na antologia Líricas Portuguesas 3.ª série

Nos poemas que seguem leremos da emoção do desejo e da entrega contados com essa “sóbria segurança”: Porque quis ser mulher no teu abraço de homem!

Para o homem o amor é praia aprazível

onde é bom pôr-se nu.

Para a mulher um desejo de mar

anseios de sereia

sem coragem, afundados em lagos

às vezes nem profundos.

do poema Catedral I, Tangentes

 

 

Tua

Apenas vestida pelas tuas mãos

estou nos teus braços toda nua.

Sôfrego o teu corpo chama pelo meu,

e os poros da tua pele a acariciar-me

são como mil pequenas bocas

que me beijam

 

Quando estou completamente tua

fecho os olhos para que te não vejam.

Não quero que eles sintam tanto como eu.

 

E entre os desejos mais vãos

e as aspirações mais loucas

eu queria que este nosso abraço

em que eu gosto de amar-te

e tu gostas de amar-me

abolisse entre nós até o próprio Espaço

e que nada pudesse de mim separar-te.

in Merícia de Lemos, Tangentes

 

 

Vencida 

Porque quis ser mulher no teu abraço de homem,

senti as alegrias do amor que começa

e dei-lhe igual altura à da amizade.

Fui sincera, leal e espontânea, meiga, ardente, apaixonada.

Senti o amor, a fé, a esperança.

Senti a violência da paixão na tortura da carne a desejar.

Senti a ansiedade curiosa do espírito em busca de outro espírito

e senti em mim o que é verdade.

 

Porque quis ser mulher no teu abraço de homem,

conheço o rasgar da luta, do desespero, da dor, do orgulho e da renúncia.

Conheço a fraqueza que me fez vencida.

Conheço o poder que te dei e me domina.

 

Sou a pedra rolada pelo rio e pelo oceano,

sou a erva pisada que não dá malmequer,

sou o grão lançado à terra e que não germinou,

sou a pata do animal desmembrado,

o tronco do pinheiro abatido,

a trave da casa que ruiu,

o leme do barco afundado pelo temporal

— Porque quis ser mulher no teu abraço de homem!

in Merícia de Lemos, Tangentes

 

 

A voluntariosa entrega aqui contada tem uma contraparte no esgotamento da paixão, e o poema Domingo dá dela conta:

 

 

Domingo

As aspirações mais exaltadas

em abismos profundos

separadas pela realidade do quotidiano

 

Os pequenos gestos repetidos do dia-a-dia

repetidos interminavelmente

repetidos automaticamente

repetidos necessariamente

repetidos resignadamente

repetidos cansativamente

repetidos exasperadamente

repetidos exaustivamente

repetidos inconscientemente

 

Repetido o beijo do “até logo”

é já um adeus ignorado

 

O acordar 

o adormecer

deixam-nos em abismos profundos

separadas pela realidade do ontem hoje amanhã

das ambições antigas vivas futuras

 

Nesse domingo em que eras tu o meu amor

 

Ambição de agora agora

e já

para cada folha uma gota de orvalho

que o Sena amoroso, deslizando colhe sôfrego

enlaçando Paris apaixonado lento e insistente

apertado no mesmo abraço

a mulher desmaiada

ultrapassado do orgasmo o êxtase

atingida a luxúria exasperada e pura

 

Nesse Domingo em que eras tu o meu amor

 

Ambicão ambições

de carregar as roseiras de violetas

apanhadas às mãos cheias, não importa onde

às acácias mimosas vergar os galhos

de cerejas aos cachos

dos lírios do jardim delirantes

voarem para o cipreste sentinela à porta

 

Nesse Domingo em que eras tu o meu amor

 

os melros passeavam ousados e sem medo

atrevidos na relva

nos muros as trepadeiras, estremecendo

ao canto dos pássaros em mal de bem querer

floriam em pétalas de lua e aos de espuma

fitas de olhos em laços de afecto

colares de estrelas negras na verdade branca

secretos luxos da minha ideia

renegando o tempo

 

Nesse Domingo em que eras tu o meu amor

 

Era Domingo

outro Domingo

Domingos

segunda 

terça

quarta

quinta

sexta-feira 

sábados

repetidos

os pequenos gestos do dia-a-dia

repetidos intencionalmente

repetidos carinhosamente

repetidos tristemente

repetidos raivosamente

repetidos teimosamente

repetidos dolorosamente

repetidos passivamente

repetidos distraíramo-nos

 

e o beijo do “até logo”

foi adeus definitivo

in Merícia de Lemos, 12 Poemas

 

 

Com esta finitude onde a esperança residiu aproximamo-nos do final deste périplo com dois poema: primeiro o poema Amor que citei a abrir, o qual remata com a reflexão O amor talvez seja o que do nada resta.; e a seguir o poema republicado com o título Testamento no livro Tangentes, e onde um desejo de amor pós-morten se reflecte.

 

 

Amor

De um amor morto

sepultado no tempo

surge em condensação

duma afeição rara

a beleza do abraço 

mais íntimo

mais voraz

mais nu

 

O arco-íris risca no firmamento

o desfio ao Sol

Brilha o luar mais do que a Lua

Sente-se o perfume da rosa

e não a rosa

É poesia a silenciosa

distância entre a emoção 

e o seu canto

 

É poema ainda o já poema?

 

O amor talvez seja o que do nada resta.

in Líricas Portuguesas 3.ª série

 

 

Testamento

Antes de morrer

vou dizer-te as minhas últimas vontades,

vou fazer

o meu testamento.

 

Não quero que o meu corpo vá

para jazigo ou campa rasa.

Quero, depois de bem fria,

ser incinerada

e, já em cinzas, ao vento

por ti lançada.

 

Não quero que tenhas tristeza,

mas não queria morrer sem a certeza

que terás saudades.

 

Quando vires no ar o pó

a esvoaçar,

se vier pousar em ti,

não o sacudas, deixa-o ficar.

Posso saber-te só

e ser eu a fazer-te companhia.

Se nesse momento

algum pobre te pedir, dá,

dá e sorri.

 

Tudo quanto tenho para ti será.

Deixo-te: a emoção que se condensa

e em versos se extravasa.

Deixo-te: a minha ternura imensa.

Deixo-te: os beijos que te não dei

e a felicidade que sonhei.

in Merícia de Lemos, Pássaro Preso

 

 

Termino com dois poemas: o poema-metáfora da mulher, Rosa, Rosae, e a reflexão sobre o sentido da vida em Viver.

 

 

Rosa, Rosae

Dá-me rosas, outras rosas

dá-me mais rosas amor.

 

Já olhaste bem as rosas?

Rosas-bocas rosas-olhos

e há rosas coração.

Há rosas que são sorrisos

e rosas que são paixão 

Rosa-beijo, rosa-abraços

e rosas-mãos.

 

Numa noite de luar

uma grande rosa aberta

acenou-me num jardim:

corri logo para ela

— seria a rosa-aventura?

 

Pela tarde num caminho

à hora em que o sol cansado

pensa em ir-se deitar

encontrei uma roseira

com uma rosa em botão

muitas folhas e espinhos

— e estava ali porquê?

Linda rosa cor-de-rosa,

sem saber…

in Líricas Portuguesas 3.ª série

 

 

Viver

A terra

insegurança 

de esperança de medo

motivações

os olhos tropeçando

os sentidos a desbravar

o amor a dor a alegria

o rir contente

dada ao homem

a morte no instante exacto

in Merícia de Lemos, 12 Poemas

 

 

Nota bibliográfica

Merícia de Lemos, Pássaro Preso, Lisboa, 1946, s/indicação de editora e com 3 desenhos de António Dacosta. 

Merícia de Lemos, Tangentes, Edições Ática, Lisboa, 1975. 

Merícia de Lemos, 12 Poemas, ilustrações de Cícero Dias, INCM, Lisboa, 1999.

Líricas Portuguesas 3.ª série, selecção, prefácio e apresentação de Jorge de Sena, 2 volumes, 3.ª edição, Edições 70, Lisboa, 1984.

 

Abre o artigo a imagem de um desenho de Cícero Dias (1907-2003) incluído no livro 12 Poemas.

Francisco Brines … e o ruído do mundo seja só o ruído do prazer

Etiquetas

,

No poema de Francisco Brines (1932) que hoje trago ao blog em tradução minha, faz-se o elogio do sexo ocasional:

Com um obscuro corpo,

de quem nada conheço

senão a juventude.

 

 

Não será da solidão acompanhada de um casal onde o desejo se esfumou, descrita em tantos poemas trazidos ao blog, que fala este poema, Canção dos corpos. É antes da solidão do desprendimento afectivo e da entrega ao prazer lúdico entre desconhecidos que se faz o elogio:

 

A cama está feita,

brancos os lençóis,

e um corpo se me oferece

para o amor.

 

 

Neste universo o sentimento não conta, e a felicidade tem a dimensão do efémero, desejavelmente repetivel:

Que não há felicidade

tão repetida e plena

como passar a noite,

romper a madrugada,

com um ardente corpo.

 

 

Nas variedades que o amor reveste ao longo da vida de cada um, o seu entendimento aqui descrito também cabe. Mas lá vem a hora em que a afectividade reclama os seus direitos. E deles nos falam outros poemas. Por agora eis o poema em tradução:

 

 

Canção dos corpos

A cama está feita,

brancos os lençóis,

e um corpo se me oferece

para o amor.

Abramos a janela,

entrem calor e noite,

e o ruído do mundo

seja só o ruído

do prazer.

Que não há felicidade

tão repetida e plena

como passar a noite,

romper a madrugada,

com um ardente corpo.

Com um obscuro corpo,

de quem nada conheço

senão a juventude.

 

Tradução de Carlos Mendonça Lopes a partir do original publicado em Ensayo de una Despedida, Poesía Completa (1960-1997), Tusquets Editores, Barcelona, 1997.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Vincent Arcilesi (1932), Vincent estúdio Wendy de 1967.  A pintura pertence à colecção do Hirshhorn Museum and Sculpture Garden, em Washington, e actualmente parte da Smithsonian Institution.

 

E o amor? — poema de Manuel da Silva Gayo

Etiquetas

,

Da poesia hoje merecidamente esquecida de Manuel da Silva Gayo (1860-1934) exumo dois poemas que justificam ser lembrados pela sua construção formal e originalidade temática. O assunto: o conflito entre razão e paixão. 

Ao longo do primeiro poema desenvolvem-se três momentos — nos dois primeiros quartetos uma separação amorosa e uma interrogação sobre a possibilidade da sua compreensão:

 

“E o amor? — insiste a voz — nem esse amor,

Que ainda é de dois tortura

E alto sonho já, dará valor

A tão fria amargura?

 

Não logrará o Amor ainda dar-te asas

Que te levem a ver

Duma altura de graça o fumo e as brasas

Do teu castelo a arder?”

 

 

Segue-se nos terceiro e quarto quartetos uma interrogação sobre a existência de um amor ideal, e a possibilidade de o viver se este fugir à razão:

Em vez de responder, eu só pergunto

Onde e quando nasceu

Essa alma que pudera erguer-me junto

Às portadas do céu?

 

E não serão tais núpcias, tais momentos

Um singular condão

Das almas novas, virgens dos tormentos

Que nascem da razão?…

 

 

Depois do relato e das dúvidas, a resposta vem pela aceitação desesperada da impossibilidade pessoal de conciliar o amor e a razão:

Ai! não! não tem remédio este tormento

É minha lei a dor;

Não me dá paz o sol do pensamento

Nem o luar do Amor.

 

 

Isto por culpa do que o poeta qualifica como um dom, ou seja: estando sempre em si a natureza dual humana, instinto e pensamento, observa o poeta uma sua impossibilidade de entrega incondicional com o que ela implica de esquecimento de si, decorrente de uma personalidade antropocêntrica:

— Esse dom de jamais me abandonar

Ao longo da existência;

De tudo dividir e desdobrar;

Duma dual consciência;

 

Esse dom de me ver no que possua,

De em nada me absorver,

De reduzir a mim quanto flutua

À volta do meu ser —

 

Fatal dom que, nascido já comigo,

Aumenta a cada hora,

Quanto mais eu caminho e ao longe sigo

Pela existência fora.

 

 

Esta é, na verdade, a impossibilidade do amor total, ou seja, um amor sem contabilidade de reciprocidades, nem espaço para o desenvolvimento da individualidade, e em grande medida associado ao entendimento da posse total e absoluta do outro.

 

 

Eis o poema na sequência original:

 

 

“E o amor? — insiste a voz — nem esse amor,

Que ainda é de dois tortura

E alto sonho já, dará valor

A tão fria amargura?

 

Não logrará o Amor ainda dar-te asas

Que te levem a ver

Duma altura de graça o fumo e as brasas

Do teu castelo a arder?”

 

Em vez de responder, eu só pergunto

Onde e quando nasceu

Essa alma que pudera erguer-me junto

Às portadas do céu?

 

E não serão tais núpcias, tais momentos

Um singular condão

Das almas novas, virgens dos tormentos

Que nascem da razão?…

 

Ah! quer suspire ao céu do puro Amor

Quer no lodo rasteje

É sempre o mesmo o mal, a mesma a dor

Que o meu destino rege:

 

— Esse dom de jamais me abandonar

Ao longo da existência;

De tudo dividir e desdobrar;

Duma dual consciência;

 

Esse dom de me ver no que possua,

De em nada me absorver,

De reduzir a mim quanto flutua

À volta do meu ser —

 

Fatal dom que, nascido já comigo,

Aumenta a cada hora,

Quanto mais eu caminho e ao longe sigo

Pela existência fora.

 

Ai! não! não tem remédio este tormento

É minha lei a dor;

Não me dá paz o sol do pensamento

Nem o luar do Amor.

in Novos Poemas, ed. do autor, Coimbra, 1906.

 

 

Numa espécie de epílogo às interrogações formuladas no poema anterior, o livro Novos Poemas termina com um soneto, Diálogo, dando-se nele conta de como a razão compreende os assuntos do coração, e os desvarios a que ele pode conduzir:

Mas a Razão, serena, respondeu:

“Descansa, Coração, se me traiste,

Já meu alto ditame te absolveu,

 

Pois li sempre — através do que tentaste —

Na mentira de quanto possuíste 

A verdade de quanto desejaste”.

 

Poema

 

Diálogo

Disse-me um dia à mente o Coração

“Quando lembro que aos fogos da Quimera

Teu amor imolei, fria Razão,

Logo um vago terror me aflige e altera;

 

Porque temo não vás, fada severa,

Para agora punir minha traição,

De teu porto negar-me a paz austera

Ao ver-me naufragante da ilusão!”

 

Mas a Razão, serena, respondeu:

“Descansa, Coração, se me traiste,

Já meu alto ditame te absolveu,

 

Pois li sempre — através do que tentaste —

Na mentira de quanto possuíste 

A verdade de quanto desejaste”.

Coimbra, abril de 1902

 

 

Dos tempos de Coimbra como estudante, publicou antes Manuel da Silva Gayo o livro Poesias (1892), com o qual pretendia despedir-se em definitivo da poesia, o que vimos, não aconteceu. Nele inclui o que chamou Canções do Mondego, com assuntos de alguma forma cristalizados na poesia oitocentista, e uma e outra vez repetidos nas versalhadas de memórias coimbrãs do passado. Entre eles as variadas visões de moças do povo, tricanas, fascínio dos estudantes universitários que todos os anos enchiam a cidade. Desse livro exumo parcialmente o poema A Vizinha, história de uma bela tricana, escrito em quadras rimadas de sete sílabas, transmitindo um sabor popular, adequado ao diz-que-disse das aparências e julgamentos sem base que o poema descreve.

 

 

A Vizinha

Se assomava entre os craveiros 

que o seu peitoril bordavam

todos na rua gabavam 

aqueles olhos trigueiros.

 

Cantava sempre, talvez 

para as mágoas espalhar,

porque assim faz, muita vez,

quem passa a vida a pensar.

 

E se havia quem dissesse:

“Não leva vida de moura, 

pois canta ao raiar da aurora 

e canta até que anoitece”.

 

Quando os seus olhos erguia,

um momento, da costura, 

a luz que neles sorria 

era feita de amargura.

 

Um poeta enamorado 

da costureira vizinha, 

só para cantá-la tinha 

aulas e livros deixado.

 

E ouvi mesmo, — a quem não sei —

que um doutor de teologia, 

e velho doutor da Lei,

— profundo em quanto sabia —

 

de tal modo se prendera 

no encanto daquele olhar,

que, só de nele pensar,

— toda a ciência perdera.

 

Por ela — flor das trigueiras, 

entre as moças cobiçadas —

se ouviam noites inteiras 

descantes e guitarradas.

 

Mas ninguém lograra ainda 

descobrir a quem amava 

aquela tricana linda 

que à janela costurava.

 

Constou-me, no entanto, um dia 

que aquela doce morena 

com seu cantar encobria 

segredo de íntima pena, 

 

história triste… de amores 

que a morte cortara breve 

como uma chuva de neve 

crestando um campo de flores.

 

E ainda havia quem dissesse:

“Não leva vida de moura, 

se canta ao raiar da aurora 

e canta até que anoitece!”.

 

— Dá muita sentença louca 

quem dá de tudo razão,

pois muita vez canta a boca 

quando chora o coração.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Alexej von Jawlensky (1864-1941) Retrato de Rapariga (1909).