É poesia a silenciosa
distância entre a emoção
e o seu canto
…
A obra de Merícia de Lemos (1913-1996(?)) é uma obra poética decantada de excessos retóricos onde por vezes o verso cintila, e poemas há que são uma absoluta revelação do eu pela palavra.
Onde Estive?
Andei esquecida da morte
anos e anos
numa graça de amor
numa harmonia de fontes cantar
e que mais canta
Andei esquecida da morte
dias e noites
— o tempo mais não é que sol e sombra
Andei esquecida da morte
— o coração tornado nova estrela
Andei a viver!
in Merícia de Lemos, Tangentes
Este viver que o poema mostra reflecte a sua poesia. Poesia que fala “com elegante fantasia e sóbria segurança das suas emoções e mágoas de mulher” na penetrante apreciação de Jorge de Sena na antologia Líricas Portuguesas 3.ª série.
Nos poemas que seguem leremos da emoção do desejo e da entrega contados com essa “sóbria segurança”: Porque quis ser mulher no teu abraço de homem!
…
Para o homem o amor é praia aprazível
onde é bom pôr-se nu.
Para a mulher um desejo de mar
anseios de sereia
sem coragem, afundados em lagos
às vezes nem profundos.
…
do poema Catedral I, Tangentes
Tua
Apenas vestida pelas tuas mãos
estou nos teus braços toda nua.
Sôfrego o teu corpo chama pelo meu,
e os poros da tua pele a acariciar-me
são como mil pequenas bocas
que me beijam
Quando estou completamente tua
fecho os olhos para que te não vejam.
Não quero que eles sintam tanto como eu.
E entre os desejos mais vãos
e as aspirações mais loucas
eu queria que este nosso abraço
em que eu gosto de amar-te
e tu gostas de amar-me
abolisse entre nós até o próprio Espaço
e que nada pudesse de mim separar-te.
in Merícia de Lemos, Tangentes
Vencida
Porque quis ser mulher no teu abraço de homem,
senti as alegrias do amor que começa
e dei-lhe igual altura à da amizade.
Fui sincera, leal e espontânea, meiga, ardente, apaixonada.
Senti o amor, a fé, a esperança.
Senti a violência da paixão na tortura da carne a desejar.
Senti a ansiedade curiosa do espírito em busca de outro espírito
e senti em mim o que é verdade.
Porque quis ser mulher no teu abraço de homem,
conheço o rasgar da luta, do desespero, da dor, do orgulho e da renúncia.
Conheço a fraqueza que me fez vencida.
Conheço o poder que te dei e me domina.
Sou a pedra rolada pelo rio e pelo oceano,
sou a erva pisada que não dá malmequer,
sou o grão lançado à terra e que não germinou,
sou a pata do animal desmembrado,
o tronco do pinheiro abatido,
a trave da casa que ruiu,
o leme do barco afundado pelo temporal
— Porque quis ser mulher no teu abraço de homem!
in Merícia de Lemos, Tangentes
A voluntariosa entrega aqui contada tem uma contraparte no esgotamento da paixão, e o poema Domingo dá dela conta:
Domingo
As aspirações mais exaltadas
em abismos profundos
separadas pela realidade do quotidiano
Os pequenos gestos repetidos do dia-a-dia
repetidos interminavelmente
repetidos automaticamente
repetidos necessariamente
repetidos resignadamente
repetidos cansativamente
repetidos exasperadamente
repetidos exaustivamente
repetidos inconscientemente
Repetido o beijo do “até logo”
é já um adeus ignorado
O acordar
o adormecer
deixam-nos em abismos profundos
separadas pela realidade do ontem hoje amanhã
das ambições antigas vivas futuras
Nesse domingo em que eras tu o meu amor
Ambição de agora agora
e já
para cada folha uma gota de orvalho
que o Sena amoroso, deslizando colhe sôfrego
enlaçando Paris apaixonado lento e insistente
apertado no mesmo abraço
a mulher desmaiada
ultrapassado do orgasmo o êxtase
atingida a luxúria exasperada e pura
Nesse Domingo em que eras tu o meu amor
Ambicão ambições
de carregar as roseiras de violetas
apanhadas às mãos cheias, não importa onde
às acácias mimosas vergar os galhos
de cerejas aos cachos
dos lírios do jardim delirantes
voarem para o cipreste sentinela à porta
Nesse Domingo em que eras tu o meu amor
os melros passeavam ousados e sem medo
atrevidos na relva
nos muros as trepadeiras, estremecendo
ao canto dos pássaros em mal de bem querer
floriam em pétalas de lua e aos de espuma
fitas de olhos em laços de afecto
colares de estrelas negras na verdade branca
secretos luxos da minha ideia
renegando o tempo
Nesse Domingo em que eras tu o meu amor
Era Domingo
outro Domingo
Domingos
segunda
terça
quarta
quinta
sexta-feira
sábados
repetidos
os pequenos gestos do dia-a-dia
repetidos intencionalmente
repetidos carinhosamente
repetidos tristemente
repetidos raivosamente
repetidos teimosamente
repetidos dolorosamente
repetidos passivamente
repetidos distraíramo-nos
e o beijo do “até logo”
foi adeus definitivo
in Merícia de Lemos, 12 Poemas
Com esta finitude onde a esperança residiu aproximamo-nos do final deste périplo com dois poema: primeiro o poema Amor que citei a abrir, o qual remata com a reflexão O amor talvez seja o que do nada resta.; e a seguir o poema republicado com o título Testamento no livro Tangentes, e onde um desejo de amor pós-morten se reflecte.
Amor
De um amor morto
sepultado no tempo
surge em condensação
duma afeição rara
a beleza do abraço
mais íntimo
mais voraz
mais nu
O arco-íris risca no firmamento
o desfio ao Sol
Brilha o luar mais do que a Lua
Sente-se o perfume da rosa
e não a rosa
É poesia a silenciosa
distância entre a emoção
e o seu canto
É poema ainda o já poema?
O amor talvez seja o que do nada resta.
in Líricas Portuguesas 3.ª série
Testamento
Antes de morrer
vou dizer-te as minhas últimas vontades,
vou fazer
o meu testamento.
Não quero que o meu corpo vá
para jazigo ou campa rasa.
Quero, depois de bem fria,
ser incinerada
e, já em cinzas, ao vento
por ti lançada.
Não quero que tenhas tristeza,
mas não queria morrer sem a certeza
que terás saudades.
Quando vires no ar o pó
a esvoaçar,
se vier pousar em ti,
não o sacudas, deixa-o ficar.
Posso saber-te só
e ser eu a fazer-te companhia.
Se nesse momento
algum pobre te pedir, dá,
dá e sorri.
Tudo quanto tenho para ti será.
Deixo-te: a emoção que se condensa
e em versos se extravasa.
Deixo-te: a minha ternura imensa.
Deixo-te: os beijos que te não dei
e a felicidade que sonhei.
in Merícia de Lemos, Pássaro Preso
Termino com dois poemas: o poema-metáfora da mulher, Rosa, Rosae, e a reflexão sobre o sentido da vida em Viver.
Rosa, Rosae
Dá-me rosas, outras rosas
dá-me mais rosas amor.
Já olhaste bem as rosas?
Rosas-bocas rosas-olhos
e há rosas coração.
Há rosas que são sorrisos
e rosas que são paixão
Rosa-beijo, rosa-abraços
e rosas-mãos.
Numa noite de luar
uma grande rosa aberta
acenou-me num jardim:
corri logo para ela
— seria a rosa-aventura?
Pela tarde num caminho
à hora em que o sol cansado
pensa em ir-se deitar
encontrei uma roseira
com uma rosa em botão
muitas folhas e espinhos
— e estava ali porquê?
Linda rosa cor-de-rosa,
sem saber…
in Líricas Portuguesas 3.ª série
Viver
A terra
insegurança
de esperança de medo
motivações
os olhos tropeçando
os sentidos a desbravar
o amor a dor a alegria
o rir contente
dada ao homem
a morte no instante exacto
in Merícia de Lemos, 12 Poemas
Nota bibliográfica
Merícia de Lemos, Pássaro Preso, Lisboa, 1946, s/indicação de editora e com 3 desenhos de António Dacosta.
Merícia de Lemos, Tangentes, Edições Ática, Lisboa, 1975.
Merícia de Lemos, 12 Poemas, ilustrações de Cícero Dias, INCM, Lisboa, 1999.
Líricas Portuguesas 3.ª série, selecção, prefácio e apresentação de Jorge de Sena, 2 volumes, 3.ª edição, Edições 70, Lisboa, 1984.
Abre o artigo a imagem de um desenho de Cícero Dias (1907-2003) incluído no livro 12 Poemas.
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