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É um poema sobre Separação que escolho para pela primeira vez trazer ao blog a poesia de Iosif Brodskii, ou Joseph Brodsky (1940-1996) como é talvez mais conhecido no ocidente.
Russo de nascimento, expulso da União Soviética em 1972, Prêmio Nobel em 1990, fixou-se nos Estados Unidos, e, auto-didacta, aprendeu inglês, tendo ganho um domínio da língua que lhe permitiu escrever nela com domínio absoluto, tal como já acontecerá com Nabokov.
Voltando ao poema de hoje, é à reflexão sobre a dimensão do amor e do seu fim que ele nos desafia:
Esquecemos quem uma vez foi uma paixão?
… o tempo, ao dar de caras com a memória, reconhece a invalidez dos seus direitos.
Ao recordar, recordamos como?
Tu tiveste sorte: onde estarias para sempre — salvo talvez
numa fotografia — de sorriso trocista, sem uma ruga, jovem, alegre?
E ao recordar significa que o amor permanece? Memória é amor?
Não me interpretes mal: a tua voz, o teu corpo, o teu nome
já não mexem com nada cá dentro. Não que alguém os destruísse,
só que um homem, para esquecer uma vida, precisa pelo menos
de viver outra ainda. E eu há muito que gastei tudo isso.
Tantas perguntas…; o poema aí fica.
Querida, hoje saí de casa já muito ao fim da tarde
para respirar o ar fresco que vinha do oceano.
O sol fundia-se como um leque vermelho no teatro
e uma nuvem erguia a cauda enorme como um piano.
Há um quarto de século adoravas tâmaras e carne no braseiro,
tentavas o canto, fazias desenhos num bloco-notas,
divertias-te comigo, mas depois encontraste um engenheiro
e, a julgar pelas cartas, tornaste-te aflitivamente idiota.
Ultimamente têm-te visto em igrejas da capital e da província,
em missas de defuntos pelos nossos comuns amigos; agora
não param (as missas). E alegra-me que no mundo existam ainda
distâncias mais inconcebíveis que a que nos separa.
Não me interpretes mal: a tua voz, o teu corpo, o teu nome
já não mexem com nada cá dentro. Não que alguém os destruísse,
só que um homem, para esquecer uma vida, precisa pelo menos
de viver outra ainda. E eu há muito que gastei tudo isso.
Tu tiveste sorte: onde estarias para sempre — salvo talvez
numa fotografia — de sorriso trocista, sem uma ruga, jovem, alegre?
Pois o tempo, ao dar de caras com a memória, reconhece a invalidez
dos seus direitos. Fumo no escuro e respiro as algas podres.
1989
Tradução de Carlos Leite,
in Paisagem com Inundação, Edições Cotovia, Lisboa 2001.
Abre o artigo a imagem de uma pintura de Vieira da Silva (1908–1992) — A saida luminosa, 1983-86. Fecha o artigo outra pintura de Vieira da Silva, Memória segunda. 1985.