Mãe — poema de Vladimir Holan

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Não são de medo mas de precaução os tempos que hoje vivemos. E no confinamento a que a realidade nos obriga, lembrar os pequenos gestos, a ternura daqueles que nos amam e nos são queridos, são conforto sem limites. Vladimir Holan (1905-1980) no poema Mãe lembra um desses gestos primordiais onde o amor de mãe se consubstancia e impregna o ambiente que nos rodeia, ainda que pela sua banalidade, raramente dele nos apercebamos.

Existe algures uma tradução deste poema por Eugénio de Andrade. Afastado da biblioteca, na impossibilidade de o encontrar, socorro-me de uma minha tradução a partir de uma versão inglesa, para o trazer ao blog.

 

Mãe

Alguma vez observaste a tua velha mãe 

ao fazer a cama para ti,

como ela puxa, estica, cobre e aconchega o lençol

para que não sintas uma única ruga?

O seu respirar, o movimento das mãos 

são tão lindos

que no passado apagaram aquele fogo em Persepolis

e agora acalmam alguma futura tempestade 

ao largo da costa da China ou em mares desconhecidos.

Tradução de Carlos Mendonça Lopes a partir de uma versão em inglês do poema.

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Mary Cassat (1844-1926), Jovem mãe a costurar de 1870. A pintura pertence à colecção do Metropolitan Museum de New York.

 

Todo o mundo está aqui, no teu corpo — Gustavo Cobo Borda

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E de novo relatos de paixão e seu fim reflectidos na poesia. Hoje traduzo poemas do colombiano Juan Gustavo Cobo Borda (1948). Primeiro a notícia de uma paixão, talvez clandestina, no poema Teu corpo: O mundo, que sobretudo conta como o mergulho físico no outro deixa o resto do mundo para trás:

Lá fora o mundo, monótono como uma tragédia.

Carácter que modificou a força única de um beijo,

todo o mundo está aqui, no teu corpo.

 

Depois, em Romance de ocasião, a vertigem de uma paixão e o seu fim:

 

Supostamente não era o tempo mais adequado 

para nos unirmos, sedentos um do outro, 

por hotéis efémeros 

que ainda ardem na memória. 

Hoje, quando o pranto angustiado

buscar em vão um pouco de paz 

só vejo a minha mão acariciando a tua nuca;

a tua, repousando no meu ventre. 

Aprenderei, é certo, uma nova forma de estar só,

carente da impetuosa confiança que me davas 

 

E enquanto houver mundo, notícia poética teremos deste vai-vem ao abismo dos sentidos.

Vamos aos poemas.

 

 

Teu corpo: O mundo

 

Lá fora o mundo e as suas pequenas misérias.

Aqui a difícil ciência do abraço,

a lentidão com que aprendo as tuas costas,

a arte de delapidar o tempo 

no descobrimento cauteloso do outro corpo.

Lá fora o aborrecido lastro do que fomos 

e esse manchado nome que não nos pertence.

Aqui, ao contrário, a inerme vulnerabilidade

do que sentimos pela primeira vez.

Lá fora os olhos que nos julgam 

as desculpas que devemos inventar para alcançar o êxtase,

essas mentiras nas quais nem nós mesmos acreditamos.

Aqui o compassado ballet 

graças ao qual as almas se amoldam,

isentas de qualquer remorso.

Lá fora o mundo e os seus mexericos néscios

tratando de contaminar este pudor que treme.

Lá fora o mundo, monótono como uma tragédia.

Carácter que modificou a força única de um beijo,

todo o mundo está aqui, no teu corpo.

 

Poema original em Todos los poetas son santos e irán al cielo 

 

Romance de ocasião

 

Supostamente não era o tempo mais adequado 

para nos unirmos, sedentos um do outro, 

por hotéis efémeros 

que ainda ardem na memória. 

Mas nunca há outro tempo senão este 

quando o passado por resolver fica atrás 

e uma ténue capa de beijos estanca a ferida.

Este, em que entro em ti 

e teu corpo formula a sua obscura exigência.

Hoje, quando o pranto angustiado

buscar em vão um pouco de paz 

só vejo a minha mão acariciando a tua nuca;

a tua, repousando no meu ventre. 

Uma cidade hostil 

onde o teu rosto arrasado me diz adeus 

com uma determinação que ignorava.

Aprenderei, é certo, uma nova forma de estar só,

carente da impetuosa confiança que me davas 

e todavia, perdoa por dizê-lo,

cuspirei cem vezes 

sobre o excessivamente feliz que me fizeste.

 

Poema original em Salón de té

 

 

Lúcido, o poeta, não só escreveu o que acima lemos, mas interrogando-se sobre o seu propósito não deixa também de o reflectir em Poética:

Para quê aumentar as dúvidas,

reviver antigos conflitos,

imprevistas ternuras;

esse pouco de ruído

acrescentado a um mundo

que o ultrapassa e anula?

poema com que termina esta curta viagem, e assim dando voz à eterna dúvida dos poetas sobre a relevância do seu escrever.

 

 

Poética

 

Como escrever agora poesia,

porque não calarmo-nos definitivamente 

e dedicarmo-nos a coisas muito mais úteis?

Para quê aumentar as dúvidas,

reviver antigos conflitos,

imprevistas ternuras;

esse pouco de ruído

acrescentado a um mundo

que o ultrapassa e anula?

Aclara-se algo com semelhante novelo?

A ninguém faz falta.

Resíduo de velhas glórias,

a quem acompanha, que feridas cura?

 

Poema original em Consejos para sobrevivir, 1974.

 

Traduções de Carlos Mendonça Lopes a partir dos originais incluídos em Antología, La poesía del sigilo XX em Colombia, Visor Libros, Madrid, 2006.

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Willem de Kooning (1904-1997), Abstracção de 1949-50, da colecção do Museo Nacional Thyssen-Bornemisza, Madrid.

 

Arroz Amargo, o filme, e o poema Lezíria de Miguel Torga

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Um filme ícone do cinema neo-realista italiano, Riso Amaro (Arroz Amargo) de 1949, cuja acção decorre entre  mondadeiras de arroz, dá conta simultaneamente de uma realidade social: as aspirações de vida melhor da juventude italiana pobre do pós- 2.ª guerra mundial, e de como o uso do corpo pode permitir uma ilusória melhoria material, se não alguma ascensão social. 

Filmado com mão de mestre por Giuseppe de Santis (1917-1997), toda aquela exploração humana é atravessada pelo erotismo que a juventude de qualquer condição social sente e vive. E aí, a pulposa e belíssima Silvana Mangano (1930-1989) nos seus 19 anos, dá corpo a uma personagem de antologia. O filme, proibido em Portugal até ao 25 de Abril de 1974 exactamente pela sua carga erótica, é um objecto precioso de uma certa maneira de ver pelo cinema. 

O trabalho das mondadeiras de arroz em meados do século XX, — Cantam, plantadas n’água, / Ao sol e à monda neste mês de Agosto. —, que em Portugal também existia, serviu a Miguel Torga (1907-1995) para um poema (Lezíria) em que a realidade social se associa a uma identidade de grupo nas mesmas condições de vida, e o poeta observa com empatia na distância da sua condição social.

O poema de Torga leva-nos a ver, naquela dura experiência, o amargo da condição humana — Cantam baixo, e parece / Que na raiz humana dos seus pés / Qualquer coisa apodrece. —, quando o conforto material é inexistente e a luta pela sobrevivência obrigava (e obriga) à emigração sazonal para os trabalhos duros do campo.

Sobre este poema de Miguel Torga escreveu Alexandre O’Neill (1924-1986) por ocasião de uma homenagem ao poeta(*):

Lezíria de Miguel Torga é um objeto mágico que há mais de 30 anos me acompanha — e devo dizer, com toda a franqueza, que da poesia portuguesa de hoje poucos são os talismã que trago comigo.”

O artigo continua numa interessante análise do poema verso a verso.

 

 

Lezíria 

 

São duzentas mulheres. Cantam não sei que mágoa 

Que se debruça e já nem mostra o rosto. 

Cantam, plantadas n’água,

Ao sol e à monda neste mês de Agosto.

 

Cantam o Norte e o Sul duma só vez.

Cantam baixo, e parece 

Que na raiz humana dos seus pés 

Qualquer coisa apodrece.

 

Ribatejo, 11 de Agosto de 1941.

Poema incluído em Diário I, Coimbra, 

(*) Artigo publicado no jornal A Luta em 4 de Novembro de 1976, e republicado em Relâmpago, Revista de Poesia, 13, Out 2003.

Abre o artigo a imagem de um cartaz publicitário ao filme Arroz Amargo.

Os homens na vida das mulheres segundo Anna Piwkowska

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Não sei até que ponto difere entre si o que hoje as mulheres esperam e admitem dos homens nas suas vidas. Talvez para algumas seja sobretudo o que Anna Piwkowska (1963) a certa altura escreve no poema Co prozynosza mezczyzni (O que os homens trazem) que escolhi traduzir a partir de uma sua versão em inglês:

Queremo-los para o momento de breve intimidade,

quando o destino se concentra como luz na pupila

do olho. …

No resto, a presença dos homens no quotidiano talvez seja empecilho, embaraço; chegará a ser contentamento? 

Que trazem os homens? Pitons, grampos, poemas,

 jogam as camisas desbotadas no chão,

 aquelas que se rasgaram navegando a toda a vela, …

 

 

A exaustiva lista do que os homens introduzem na vida das mulheres enunciada por Anna Piwkowska será parcelar certamente. Outras haverá. A perplexidade sobre as exigências e condicionantes das relações homem/mulher hoje, continuará em mim, sem que uma resposta esclarecedora encontre. Dir-se-á, a mulher enquanto conceito e ser único não existe. Mas até onde no seu relacionamento com o homem ela é sempre singular e única, e não senhora de um comportamento padronizável? Perguntas para continuar a incansável demanda.

 

 

O que os homens trazem

 

Eles trazem na areia das botas, risos e tulipas.

 Os ábacos, réguas, computadores. Títulos

 e ações da bolsa de valores. Mapas, planos 

secretos de aeroportos, bases, basílicas.  Estes mestres de estratégia,

 trazem as bússolas, relógios suíços e laptops,

 agendas em pele e folhas de papel amachucadas,

 cartas de um amigo afogado num

 amor não desejado; estes mestres da utopia trazem

 as suas visões de marchas, desfiles, renderes de guarda.

 Que trazem os homens? Pitons, grampos, poemas,

 jogam as camisas desbotadas no chão,

 aquelas que se rasgaram navegando a toda a vela, bem como aquelas

 que desapareceram em algum lugar alto nas Dolomitas brancas.

 Queremo-los para o momento de breve intimidade,

 quando o destino se concentra como luz na pupila

 do olho.  Quando o ponto escurece, mas o ângulo

 da visão aumenta.  Como navios em docas enferrujadas

 sempre prontos para partir.  A bagagem sempre pronta,

 com uma raquete de ténis, com pontos preciosos

 para os jogos que venceram.  O cartão magnético

 carregado para chamadas, impulsos sob a pele, esse é o seu recurso.

 Navegamos com eles, acreditando em mares sem neblina,

 cigarras, amendoeiras, cotovelos bronzeados pelo sol

 — necessitamos profundamente desse momento até o fim de nossos dias.

 Trazem livros desbotados sobre a alma e a vontade

 com macias capas cinzentas. Gostam de heréticos.

 Apertamo-los nas prateleiras entre os clássicos

 e assim a nossa biblioteca lentamente se completa.

 A nossa vida torna-se completa. Um outono,

 junto com eles, enfiamos capas revestidas a alcatrão 

 e acendemos fogos para finalmente expulsar

 a praga da cidade, enterrá-la para sempre.

 Sobrevivemos-lhes sempre. Luz frágil

 tão facilmente sai das fotografias antigas

 nos olhos, nos lábios — como pó branco, como cal.

 

Tradução do inglês por Carlos Mendonça Lopes 

 

 

Versão em inglês do original polaco:

 

What do men bring 

 

They bring in sand on their boots, laugther and tulips.

Their abacuses, rulers, computers. Bonds 

and shares from the stock exchange. Maps, the secret 

plans of airports, bases, basilicas. This strategy masters, 

they bring their compasses, Swiss watches and laptops,

leather diaries and crumbled sheets of paper, 

letters from a friend who drowned himself 

from unrequired love; these utopia masters bring 

their visions of marches, parades, changes of guard. 

What do men bring? Pitons, crampons, poems, 

they drop their faded shirts to the floor, 

those which got torn under full sail as well as those 

which faded somewhere high in the white Dolomites. 

We want them for the moment of a brief convening,

when fate focuses like light in the pupil

of the eye. When the point darkens, but the angle 

of vision widens. Like ships in rusty docks 

always ready to depart. The baggage always packed, 

with a tennis racket, with precious points 

for matches they had won. The magnetic card 

with call units, impulses under the skin, that’s their asset.

We sail with them believing in fog-free seas,

cicadas, almond trees, elbows tanned by the sun

— we’ll pine for this moment till the end of our days. 

They bring washed-out books on soul and will

in soft, gray covers. They like heretics.

We squeeze them on the shelves among the classics 

and thus our library slowly becomes complete.

Our life becomes complete. One autumn,

together with them, we put on tar-lined coats

and kindle fires to finally expel 

the plague from the city, to bury it for good.

We always survive them. Brittle light 

so easily falls from the old photographs 

on the eyes, the lips — like white dust, like lime.

 

Warsaw, May, 2002

Tradução do polaco para inglês por Elżbieta Wójcik-Leese.

Esta tradução vem incluída em Six Polish Poets, Arc Publications, UK, 2008; e também em Scattering the Dark, An Anthology of Polish Women Poets, White Pine Press, USA, 2015.

Abre o artigo a imagem de uma escultura de George Segal (1924-2000), Couple in Open Doorway 1977.

Íbico — Para mim o amor não descansa em nenhuma estação

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É um fogoso poeta que nos surge neste fragmento poético (fr. 286 PMG) de Íbico (séc. VI a.C.), poeta da Grécia arcaica, numa tradução de Frederico Lourenço, a que o tradutor chamou Primavera:

… Mas para mim o amor

não descansa em nenhuma estação;

ardendo sob o relâmpago 

como o Bóreas da Trácia,

lança-se de junto de Cípris com sedentas

insânias, …

 

Estas sedentas insânias são o vórtice da paixão que acomete alguns em amores sem medida, e, como refere o poeta: com força, de cima a baixo, sacode / o meu espírito.

Que o S. Valentim traga a todos o amor assim…

 

 

Primavera (fr. 286 PMG)

 

Na Primavera, os marmeleiros

da Cidónia, regados pelas correntes 

dos rios, lá onde das Virgens

está o puro jardim; e os pâmpanos

a crescerem sob folhagens sombrias,

rebentos de vinha. Mas para mim o amor

não descansa em nenhuma estação;

ardendo sob o relâmpago 

como o Bóreas da Trácia,

lança-se de junto de Cípris com sedentas

insânias, tenebroso, desavergonhado,

e com força, de cima a baixo, sacode

o meu espírito.

 

Tradução de Frederico Lourenço

in Poesia Grega de Álcman a Teócrito, Livros Cotovia, Lisboa, 2006.

E agora, para os leitores com mais tempo e curiosidade, duas outras versões do mesmo poema, uma em português, outra em inglês.

 

O amor não dorme

 

Na primavera, regados

pelas águas dos regatos, os marmeleiros 

florescem no inviolado 

jardim das Virgens e as flores 

da videira despontam e crescem 

sob os talos umbrosos dos pâmpanos.

Mas para mim o amor 

em nenhuma estação repousa, antes como 

o tracio Bóreas, inflamado 

pelo relâmpago, irrompendo

da morada de Cípris, com fúria 

abrasadora, obscuro 

e intrépido, com força 

de alto a baixo sacode 

o meu coração.

 

Tradução de Albano Martins

in Antologia da Poesia Grega Clássica, Edições Afrontamento, 2011.

Termino com a tradução inglesa de M. L. West:

286

In spring the Cydonian quince-trees 

watered from freshets of rivers

where Nymphs have their virginal gardens 

blossom, and vine-shoots are growing 

under the shade of the branches;

but Love in me at no season is laid to rest.

 

Like the North Wind of Thrace that comes blazing 

with lightning, he rushes upon me,

sent by the Cyprian goddess

with withering frenzies, dark-lowering,

undaunted, and from the foundations

he overwhelms and devastates my heart.

 

Tradução M. L. West

in Greek Lyric Poetry, Oxford World Classics, 2008.

Abre o artigo a imagem de um fragmento de uma pintura de Rafael (1483-1520), The Sistine Madonna, 1513-14, pertencente à colecção da Gemäldegalerie de Dresden.

O amor e o seu fim em dois poemas de María Mercedes Carranza

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Há um cerrar os dentes e seguir em frente na poesia da colombiana María Mercedes Carranza (1945-2003) quando fala do amor e do seu fim. Para transmitir a desolação e desamparo de um amor que acabou, a poetisa encontra a linguagem seca e sem adornos que transmite a força dos factos e a necessidade de os enfrentar. Sem subterfúgios ou circunlóquios, na lanhesa do verso surge a força da vontade de continuar a vida para além dos desencantos amorosos, seja no poema Ode ao amor ou no poema Acontece Acontecer que escolhi traduzir para o ilustrar.

 

 

Ode ao Amor

 

Uma tarde que jamais esquecerás 

chega a tua casa e senta-se à mesa. 

Pouco a pouco terá um lugar em cada divisão, 

nas paredes e nos móveis estarão as suas marcas,

desfazer-te-á a cama, amachurará a almofada.

Os livros da biblioteca, precioso tecido de anos,

acomodar-se-ão ao seu gosto e semelhança, 

mudarão de lugar as fotos antigas.

Outros olhos observarão os teus hábitos, 

o teu e vir entre paredes e abraços 

e serão diferentes os ruídos quotidianos e os cheiros.

Certa tarde que jamais esquecerás 

o que estragou tua casa e habitou tuas coisas 

sairá pela porta sem dizer adeus.

Deverás começar a fazer de novo a casa,

reacomodar os móveis, limpar as paredes,

mudar as fechaduras, rasgar retratos,

varrer tudo isso e seguir vivendo.

 

 

Acontece acontecer

 

Depois de alguns anos

de não o ver,

de novo nos encontrámos.

Não o desejo, como antes,

mas a nostalgia

daqueles dias de desejo

nos levou à cama.

A alegria de então

foi ternura, e o gozo

e a voluptuosidade

só complacência.

Ambos, poderia jurá-lo,

tivemos a certeza

de havermos sobrevivido.

 

Traduções de Carlos Mendonça Lopes a partir dos originais incluídos em Antología, La poesía del sigilo XX en Colombia, Visor Libros, Madrid, 2006.

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Colin Self (1941), Two waiting women and B52 nuclear bomber, 1963, de colecção partícular.

Numa associação simbólica da pintura na imagem de abertura com os poemas traduzidos, encontramos à esquerda a mulher que, saída do desmoronamento amoroso, medita no que lhe sucedeu, qual bombardeamento nuclear simbolicamente transmitido pelo aparecer do avião bombardeiro no canto superior esquerdo da pintura, e à direita a nova mulher, segura de si, que. de frente e olhando ligeiramente para o lado, para o seu anterior eu, talvez, segue o caminho sem desfalecer.

António Ramos Rosa — Daqui deste deserto em que persisto

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O tempo, medimo-lo pela nossa experiência directa e do que foi a vida que vivemos, ou o que ela nos fez. Para a geração sub-quarenta que cresceu nas consequências da revolução de 25 de Abril de 1974, tanto o tempo do Estado Novo como o da revolução, são história tão remota como a segunda guerra mundial, a primeira república ou o descobrimento do Brasil. Por isso, saber da ausência de horizontes, da esperança, e do naufrágio da barca dos sonhos associados ao 25 de Abril de 1974, é segredo hoje guardado por menos e não pelo país que inteiro se empolgou na experiência. Tempos em que a poesia devia ser útil à revolução e ao homem novo, criavam nos poetas a perplexidade que o poema de António Ramos Rosa (1924-2013), Daqui deste deserto em que persisto dá conta:

Que tenho eu a dizer

neste país

se um homem levanta os braços

e grita com os braços

o que de mais oculto havia

na secreta ternura de uma boca

que era a única boca do seu povo

 

O poeta, entregue ao seu ofício, não sabendo que dizer na pressão da realidade em volta, olhava a folha em branco em busca da palavra certa para o tempo:

 

Nenhum ruído no branco.

Nesta mesa onde cavo e escavo

rodeado de sombras

sobre o branco

abismo

desta página

em busca de uma palavra

 

E dessa busca vai o poema dando conta:

Que tenho eu para dizer mais do que isto

sempre isto desta maneira ou doutra

que procuro eu senão falar

desta busca vã

de um espaço em que respira

a boca de mil bocas

do corpo único no abismo branco

 

Resignado ao circunstancial, tenta encontrar o lugar que lhe cabe nessa sociedade nova a caminho dos amanhãs que cantam, e declara: 

Sou um pobre trabalhador pobre

nesta mina branca

onde todas as palavras estão ressequidas

pelo ardor do deserto

pelo frio do abismo total

para finalmente reconhecer o que lhe exigem:

Que posso eu fazer senão

daqui

deste deserto

em que persisto

chamar-lhe camarada

 

Além do circunstancial da sua composição, o poema toca uma questão que é de sempre: que papel social para a poesia, e de caminho, qual a utilidade dos poetas. E a resposta será sempre negativa, ou seja, ao colectivo, poetas e poesia são apenas adornos de prestígio quando convém. É a cada um, na sua individualidade, que a poesia pode trazer algo que lhe proporcione encontrar-se com o seu íntimo mais profundo.

Poema

 

Daqui deste deserto em que persisto

 

Nenhum ruído no branco.

Nesta mesa onde cavo e escavo

rodeado de sombras

sobre o branco

abismo

desta página

em busca de uma palavra

 

escrevo cavo e escavo na cave desta página

atiro o branco sobre o branco

em busca de um rosto

ou folha

ou de um corpo intacto

a figura de um grito

ou às vezes simplesmente

                                                uma pedra

busco no branco o nome do grito

o grito do nome

busco

com uma fúria sedenta

a palavra que seja

a água do corpo o corpo

intacto no silêncio do seu grito

ressurgindo do abismo da sede

com a boca de pedra

com os dentes das letras

com o furor dos punhos

nas pedras

 

Sou um trabalhador pobre

que escreve palavras pobres quase nulas

às vezes só em busca de uma pedra

uma palavra

violenta e fresca

um encontro talvez com o ínfimo

a orquestra ao rés da erva

um insecto estridente

o nome branco à beira da água

o instante da luz num espaço aberto

 

Pus de parte as palavras gloriosas

na esperança de encontrar um dia

o diadema no abismo

a transformação do grito

num corpo

descoberto na página do vento

que sopra deste buraco

desta cinzenta ferida

no deserto

 

As minhas mãos são frias

têm o frio da página

e da noite

de todas as sombras que me envolvem

são palavras frágeis como insectos

como pulsos

e acumulo pedras sobre pedras

cavo e escavo a página deserta

para encontrar um corpo

entre a vida e a morte

entre o silêncio e o grito

 

Que tenho eu para dizer mais do que isto

sempre isto desta maneira ou doutra

que procuro eu senão falar

desta busca vã

de um espaço em que respira

a boca de mil bocas

do corpo único no abismo branco

 

Sou um pobre trabalhador pobre

nesta mina branca

onde todas as palavras estão ressequidas

pelo ardor do deserto

pelo frio do abismo total

 

Que tenho eu a dizer

neste país

se um homem levanta os braços

e grita com os braços

o que de mais oculto havia

na secreta ternura de uma boca

que era a única boca do seu povo

 

Que posso eu fazer senão

daqui

deste deserto

em que persisto

chamar-lhe camarada

 

in A Nuvem Sobre a Página (1978)

Transcrito de Poemas do Último Século Antes do Homem, “colheita de poesia e arte na resistência antifascista”, Editorial Inova/Editorial O Oiro do Dia, Porto, 1979.

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Rogério Ribeiro (1930-2008), UCP – Unidade Colectiva de Produção, de 1976. A obra, propriedade da CGD, encontra-se em depósito no Palácio da Presidência da República, em Belém, estando instalada na Sala do Conselho de Estado, segundo informação do site da Culturgest.

 

Martim de Castro do Rio — Perdi-me dentro em mim como em deserto

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Depois da controvérsia com o tempo num soneto em artigo anterior, mais alguma poesia de Martim de Castro do Rio (1548-1613), cristão-novo, poeta contemporâneo de Camões e mais uma voz da poesia maneirista portuguesa que tanta influência teve na poesia portuguesa posterior.

A obra de Martim de Castro do Rio encontrava-se dispersa por manuscritos com atribuições de autoria ausente, ou erróneas, até à sua edição recente por Mafalda Ferin da Cunha, de onde extraí os sonetos que a seguir transcrevo.

Poesia reflexiva sobre a existência e a vida, qual o soneto com que abro:  Perdi-me dentro em mim como em deserto, / …, entre ela surgem alguns poemas em que discretamente se alude aos sofrimentos e desenganos do amor, que privilegiei na escolha. Entre eles encontramos um original e interessante poema sobre os encantos e armadilhas associados à cor dos olhos: Aos olhos vestidos de esperança [olhos verdes] / , concluindo o poeta sobre a sedução que olhos negros sobre si exercem. Pelo meio alguns belos sonetos sobre os anseios e sofrimentos de amor: Acho-me da fortuna salteado, / … ou este outro soneto: Acostumado tinha o sofrimento / … . Escolho ainda um soneto/interrogação sobre o que seja amor, Que cousa seja amor não se compreende, / …, assunto de vasta representação poética na poesia portuguesa antiga como já antes referi no blog. 

Vamos então aos poemas:

 

*

Perdi-me dentro em mim como em deserto,

Minha alma está metida em labirinto 

E posto em tal perigo já me sinto

Cair noutro maior nele encoberto.

 

Vejo o socorro longe e a morte perto,

Pois vivo do que temo e do que sinto 

Se alguém me quer valer não lho consinto,

Por vir o que desejo de ser mais certo.

 

Nova invenção de mal, novo tormento,

Ser cutelo da vida a mesma vida,

Ser desatino usar do entendimento.

 

Vingai-vos dor cruel, mal conhecida,

Que a vosso pesar sei do pensamento 

Que em grande dor não há vida comprida.

 

 

*

Aos olhos vestidos de esperança 

Não me rendi, pois muitas leva o vento,

E dos pardos, indícios de tormento,

Fugi, que em fim qualquer tormento cansa.

 

Dos azuis que do Céu são semelhança,

Com cautela fugiu meu peito isento 

Que, inda que de vista dá contentamento,

Nesses periga muito a esperança.

 

Mas pouco me durou esta vanglória,

Que outros olhos me roubaram, feiticeiros,

Vontade, entendimento e a memória;

 

Porém de frecha uns negros sorrateiros 

Alcançam de meu peito alta vitória,

Pois só negros tem mão para frecheiros.

 

 

*

Doce despojo de meu bem passado

Testemunha de dor que me deixou 

Aquela cujo foste e cujo sou,

Por quem chorei e agora sou chorado.

 

Como pode viver em tal estado 

Quem noutro tão contente se enganou 

De que somente a mágoa me ficou 

Do bem que foi em vindo arrebatado.

 

Fortuna que mo deu não mo deixara

Ou já que mo tirou, tão desumana,

Saber o que perdi não mo tirara.

 

Ah quão depressa o tempo desengana,

Se me temera dele eu me guardara

Mas quem mais se assegura mais se engana.

 

 

*

Que cousa seja amor não se compreende,

Quão caro custa amar minha alma o sente,

Um lhe chama afeição, outro acidente,

Mas quem mais o tratou menos o entende.

 

Quando se não receia, então ofende,

Entra dissimulado e não se sente.

Encobre no desejo a frecha ardente 

E o peito que é mais frio, mais acende.

 

Gasta a vida, esperança e sofrimento,

À sombra de um engano que sujeita 

Qualquer baixo ou altivo pensamento.

 

Triste de quem aprovou sua mão direita 

E o trouxe a tal estado seu tormento 

Que já de aborrecido a vida enjeita.

 

*

Acho-me da fortuna salteado,

O tempo vai correndo furioso,

Deixando-me da vida duvidoso 

E a cada hora mais desesperado.

 

Trocou-se meu descuido num cuidado 

Triste, grave, importuno, trabalhoso,

Nem vivo de perder-me receoso,

Nem de alcançar remédio confiado.

 

Qualquer ave nos vales mais agrestes,

Qualquer fera na cova repousando,

Tem horas de alegria, eu todas tristes.

 

Pois com tormento amor me está pagando,

Vós saudosos olhos pois quisestes 

Chorai o mal que tenho e o bem que vistes.

 

 

*

Acostumado tinha o sofrimento

Um mal que já de antigo não sentia 

E posto que era grave nele via 

Que o uso diminui o sentimento.

 

Ordenaram-me os céus novo tormento 

No tempo que esperei nova alegria 

Dantes somente amor me perseguia

E agora amor, fortuna e pensamento.

 

E a lembrança do bem que no outro estado 

Teve este peito meu, que em chamas arde,

E está cevando sempre meu cuidado.

 

Choro a noite, a manhã, a sesta e a tarde,

Mas não devo de estar desesperado 

Pois não se escusa a morte, ainda que tarde.

 

Poemas transcritos de A Poesia de Martim de Castro do Rio (c.1548-1613), Mafalda Ferin da Cunha, Imprensa da Universidade de Coimbra, edição digital.

Abre o artigo a imagem do detalhe de uma pintura de Lorenzo Lotto (1480-1556), Retrato de um ourives em três posições, de 1530. A pintura pertence à colecção do museu de arte antiga de Viena. A pintura completa surge acima, no final do artigo. Ao longo deste encontramos mais dois detalhes (vistas laterais esquerda e direita do rosto do retratado).

A escolha desta pintura prende-se com o facto de o retratado ser desconhecido, e, não sendo conhecidas imagens do poeta, este retrato de um provável judeu de Veneza aproximadamente seu contemporâneo (e o poeta era de origem judaica) ajudar a situar no tempo, e dar rosto humano, à sua poesia.

A pintura, original à época na sua concepção (mais tarde teremos o triplo retrato do cardeal Richelieu, já mostrado no blog), permite reflectir sobre o igual e diferente de cada rosto conforme o ângulo do nosso olhar, e simultaneamente dar continuidade à reflexão poética sobre o rosto desenvolvida por Marianne Moore, e que antes aqui trouxe.

 

Armando Silva Carvalho — Sentimento dum Acidental

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Transcrevo hoje o poema Sentimento dum Acidental de Armando Silva Carvalho (1938-2017). Num quadro de fado e turistas na Lisboa típica dos bairros populares, derrama o poeta o acre da sua reflexão sobre os homens e o mundo em redor, de alguma forma o que amiúde encontramos na sua poesia.

 

 

Sentimento dum Acidental

 

A noite lançava-se na última viagem.

Já bebida, a velha profissional 

engana-se nas redondilhas 

de um mouraria antigo

e o gestor turístico 

no seu azul e brilhante 

fato alpacatado

dentro do qual rebenta

solta no ar a praga impiedosa.

 

Amores de mãe tremiam 

na garganta vagarosa 

rescaldos de uma guerra erótica 

eram os mitos forçados 

do consumo.

 

Casais obesos descansavam nas mesas 

a digestão pesada, a paz 

tão transitória dos sentidos. 

Solerte ofício este de jogar na voz 

todas as noites, a fatalidade,

sob o olhar frio dos deuses 

tão mesquinhos.

As palavras amargas poderão ter 

a força duma chaga,

a cor nocturna da faca pitoresca, 

e a velha cantadeira 

pode deixar cair da boca 

as aves mortas que esconde no seu peito.

Porque eu não esqueço.

Ali, quando a noite arregaçava 

os braços no trabalho de parto indiferente,

sob as cinzas sujas da memória,

outro fado nascia abruptamente 

oculto e humilhado à luz do dia.

 

Poema publicado em Sentimento de um Acidental (1981), transcrito de O Que Foi Passado A Limpo, Obra Poética, Assírio & Alvim, Lisboa, 2006.

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Malhoa (1855-1933), Fado, de 1910. O quadro pertence à colecção do Museu da Cidade em Lisboa.

Ernesto Cardenal — Salmo I

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Na turbulenta e perturbada América Latina na segunda metade do século XX e até hoje, a figura humana e política de Ernesto Cardenal (1925) é quase paradigmática destes três quartos de século, onde política, religião, e comprometimento social dos intelectuais foi uma constante. Nascido na Nicarágua, Doutor pela universidade nova-yorquina de Columbia, no início dos anos 50 viajou pela Europa. Opositor ao regime de Somoza, tornou-se monge ainda nos anos 50, e mais tarde, na década de 60, padre. Aderiu ao marxismo depois de visitar Cuba. Foi ministro Sandinista e mais tarde seu opositor. Expulso da igreja católica pelo seu comprometimento político, foi já em 2019 readmitido na igreja católica pelo Papa Francisco. 

Com uma carreira poética recheada de prémios, do poeta transcrevo o Salmo I numa minha tradução. O poema foi inicialmente publicado em 1964 no livro Salmos, e para quem conheça o seu percurso político posterior é um retrato das contradições que envolveram um cidadão empenhado nas circunstâncias do seu tempo.

 

Salmo I 

 

Bem aventurado o homem que não segue as directivas do Partido

nem assiste aos seus comícios

nem se senta na mesa com os gangsters

nem com os Generais no Conselho de Guerra

Bem aventurado o homem que não espia o seu irmão

nem delata o seu companheiro de colégio

Bem aventurado o homem que não lê os anúncios comerciais

nem escuta suas rádios

nem acredita nos seus slogans

 

         Será como uma árvore plantada junto a uma fonte

 

Tradução do castelhano por Carlos Mendonça Lopes,

Poema original em Ernesto Cardenal, Antologia poética, Visor Libros, Madrid, 2009.

Abre o artigo a imagem de um cartaz de Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992)A Poesia está na rua” alusivo ao 25 de Abril de 1974em Portugal.