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vicio da poesia

Category Archives: Poetas e Poemas

Varinas de Lisboa em poemas de Almada Negreiros e Carlos Queiroz

30 Segunda-feira Out 2017

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Almada negreiros, Carlos Queiroz

E vós varinas que sabeis a sal
e trazeis o mar no vosso avental!
(Almada Negreiros)

 

Mulheres esbeltas de língua afiada e resposta pronta, tanto quanto a memória infantil mo permite recordar, foram por séculos presença assídua nas ruas de Lisboa.
Levando à cabeça a cesta de peixe fresco, ecoavam pelas manhãs da cidade os pregões a anunciá-lo, rivalizando com outras vendedeiras, como o recorda Gomes Leal (1948-1921) no soneto Pregões matinais:

…
De manhã é que passa a leiteirinha,
Com seu pregão chilrado de andorinha,
Passam varinas de gargantas sãs…
…

 

Imagem de propaganda de uma Lisboa popular durante o Estado Novo, surgiram na arte pública por aqui e por ali na sua elegância, decorando entradas e fachadas de prédios na nova Lisboa dos anos 40, transmitindo a imagem sensual que o imaginário popular a pouco e pouco incorporou, e os poetas deram voz, sobretudo David Mourão-Ferreira com Maria Lisboa, tornada famosíssima pelo fado na voz de Amália Rodrigues.
Vinham sobretudo de Alfama, e hoje são apenas uma ténue memória, mesmo para os mais velhos que ainda lá vivem. Encontramos imagens deste mundo urbano nas prosas de cidade de Irene Lisboa (1892-1958), contadas com o pudor e empatia que atravessa toda a sua escrita.
Hoje recordo varinas em dois poemas: Varina de Carlos Queiroz (1909-1949) e Varina de Almada Negreiros (1893-1970).
Se no poema de Carlos Queiroz lemos a mitificação de um tipo humano, com Almada Negreiros estamos no mundo da brincadeira (séria) recusando tal tipo, como matéria para lá do desejo que o mito induz.

 

Varina — poema de Carlos Queiroz

Ó Varina, passa,
passa tu primeiro…
que és a flor da raça,
a mais séria graça
do país inteiro!

Teu orgulho seja
sonora fanfarra,
zimbório igreja!
Que logo te veja
quem entra na Barra.

Lisboa, esquecida
que é porto-de-mar,
fica esclarecida
e reconhecida
se te vê passar.

Dá-lhe a tua graça
clássica e sadia.
Ó varina passa…
na noite da raça
teu pregão faz dia!

Vê que toda a gente
ao ver-te, sorri.
Não sabe o que sente,
mas fica contente
de olhar para ti.

E sobre o que pensa
quem te vê passar,
eterna, suspensa,
acena a imensa
presença do mar!

1929

A Varina — poema de Almada Negreiros

Lá na Ribeira Nova
onde nasce Lisboa inteira
na manhã de cada dia
há uma varina
e se não fosse ela
ai não sei
não sei que seria de mim!
Por ela
fiz dois versos a todas as varinas:
E vós varinas que sabeis a sal
e trazeis o mar no vosso avental!
Acho parecidos estes versos
com as varinas de Portugal.

Uma vez falei-lhe
para ouvi-la
e vê-la
ao pé.
A voz saborosa
os olhos de variar
castanhos de variar
castanhos-escuros de variar
com reflexos de variar
desde o rosa
até ao verde
desde o verde
até ao mar.

Num reflexo refleti:
não dar aquele destino
ao meu destino aqui.

Escrito em 1926

 

Termino com a nota humana do sofrimento que esta dura vida popular consigo trazia, evocada no poema Desenho, também de Carlos Queiroz.

 

Desenho — poema de Carlos Queiroz

Varina
sentada
na areia:
— Que sina
te é dada,
na manhã chegada
com a maré cheia?

— “Canastra vazia,
Barqueiro morrido…”
— Vem da maresia
teu pensar dorido.

Não penses tão claro;
vai à tua lida.
Pensar, é amaro
padecer da vida.

E a vida é sonhada
viagem incerta…
— Varina sentada
na praia deserta!

 

Poemas de Carlos Queiroz transcritos de Desaparecido e Outros Poemas, Livraria Bertrand, Lisboa, 1950.

Poema de Almada Negreiros transcrito de Obras Completas, vol.I, INCM, Lisboa, 1990.

O poema Pregões matinais (citado em fragmento) foi publicado em Gomes Leal, Mefistófeles em Lisboa, 1907.

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Jorge Barradas (1894-1971), Varinas de 1930, da coleção do Museu do Chiado.

Antes do poema de Almada Negreiros surge a variação digital sobre um desenho do artista que acompanha a edição referida da sua poesia.

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Eugénio de Andrade — Green god

27 Sexta-feira Out 2017

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Eugénio de Andrade

Ocupados com as preocupações de todos os dias, nem sempre temos o olhar disponível para o fulgor do instante, um flash de beleza que nos passa diante dos olhos e perdura longo tempo na memória, por tal forma que, ao recordá-lo, sentimos invadir-nos uma espécie de felicidade inexplicável.

 

É de um momento assim que Eugénio de Andrade (1923-2005) fala no poema Green god.

O poema tem, na concisão da forma, a elegância que caracteriza toda a poesia de Eugénio de Andrade, e interpela-nos sobre a beleza que reside no mundo: na natureza, nos corpos, no movimento, na luz, na música; em tudo o que à nossa volta pode fazer pressentir o paraíso, e com isso sermos felizes; o que talvez o ensimesmamento em que tantas vezes mergulhamos, deixe escapar.

Mais que a letra do poema importa a emoção que a sua leitura desencadeia e a multiplicidade de pistas e caminhos que abre na fruição do sentimento do belo.

Green god

Trazia consigo a graça
das fontes, quando anoitece.
Era o corpo como um rio
em sereno desafio
com as margens, quando desce.

Andava como quem passa,
sem ter tempo de parar.
Ervas nasciam dos passos,
cresciam troncos dos braços
quando os erguia do ar.

Sorria como quem dança.
E desfolhava ao dançar
o corpo, que lhe tremia
num ritmo que ele sabia
que os deuses devem usar.

E seguia o seu caminho,
porque era um deus que passava.
Alheio a tudo o que via,
enleado na melodia
de uma flauta que tocava.

 

O poema foi inicialmente publicado em As mãos e os frutos (1948), o primeiro livro de poemas publicado pelo poeta.
Transcrito de Eugénio de Andrade, Poesia, Rosto editora lda, V. N. Gaia, 2011.

 

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Lição sobre a água — poema de António Gedeão

12 Quinta-feira Out 2017

Posted by viciodapoesia in Crónicas, Poetas e Poemas

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António Gedeão, John Everett Millais

Só conseguimos gostar do que conhecemos.
À entrada da adolescência, tinha eu doze anos, um austero professor fez-me descobrir o sortilégio das experiências de química, a tal ponto que, qual pesquisador da pedra filosofal, Instalei no terraço de casa um pequeno laboratório, com o beneplácito de meu pai, que tinha uma paciência infinita para as minhas fantasias, e dei início à minha actividade experimental. Como era de esperar, fruto da ignorância, a coisa correu mal, e depois de um desastre sem consequências graves, fui levado a desmontar o laboratório e esquecer as experimentações domésticas. Mas o entusiasmo ficou cá.
De entre as variadas coisas que ensinei, o que recordo com uma ternura nostálgica são umas aulas de laboratório de química, e o prazer de fazer descobrir aquele mundo mágico a sucessivas camadas de adolescentes. Hoje é a lembrança dessas experiências que me faz trazer ao blog o poema de António Gedeão (1906-1997), Lição sobre a água.

 

O poema, no seu propósito didáctico, assume um tradição que remonta à medicina árabe medieval, na qual os tratados médicos (os únicos que o mundo medieval cristão conheceu) eram escritos em verso para facilitar a sua assimilação. O mas notável será o Poema da Medicina, de Avicena.

 

Ainda que o Químico, o Prof. Rómulo de Carvalho, que escreveu poesia sob o pseudónimo de António Gedeão, tenha esquecido a biologia e o papel da água como fonte da vida, na estrofe final do poema associa toda esta ciência à mente humana e ao que ela pode ter de mais dilacerante: a loucura e o suicídio por transtornos emocionais entre família, dever, e desejo. Evoca aí o poeta a morte de Ofélia, paixão (?) de Hamlet, na peça homóloga de Shakespeare.

 

A cena descrita na última estrofe do poema foi pretexto para uma famosa pintura de John Everett Millais (1829-1896), com cuja imagem abre o artigo. A pintura original pertence à Tate Britain.

 

 

 

Lição sobre a água

 

Este líquido é água.
Quando pura
é inodora, insípida e incolor.
Reduzida a vapor,
sob tensão e a alta temperatura,
move os êmbolos das máquinas que, por isso,
se denominam máquinas de vapor.

 

É um bom dissolvente.
Embora com excepções mas de um modo geral,
dissolve tudo bem, bases e sais.
Congela a zero graus centesimais
e ferve a 100, quando à pressão normal.

 

Foi neste líquido que numa noite cálida de Verão,
sob um luar gomoso e branco de camélia,
apareceu a boiar o cadáver de Ofélia
com um nenúfar na mão.

 

 

in Antonio Gedeão, Obra Completa, 2ªedição, Relógio d’Água, Lisboa 2007.

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Como a morte se infiltra — poema de João Cabral de Melo Neto

10 Terça-feira Out 2017

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Arshile Gorky, João Cabral de Melo Neto, Paul Gauguin

Cabe-nos a todos, cedo ou tarde, cuidar de familiares. Para o processo de envelhecimento que nos espera, podemos aprender nos outros comportamentos e estados de espírito, que conduzam a atitudes essenciais para a fruição da vida, o melhor possível, enquanto ela durar.

No poema de João Cabral de Melo Neto (1920-1999), Como a morte se infiltra, que à frente transcrevo, é um desencantado e pungente relato de desistência que acompanhamos. Embora seja frequente, não tem que ser assim.

Quando a lucidez permanece mas a autonomia desapareceu, o espectáculo dos lares de terceira idade, quais salas de espera de Deus, para usar uma expressão terrível que encontrei algures, mostra tudo o que não deve ser viver o tempo, já sem tempo para novos sonhos, mas mais que suficiente para fruir um quotidiano benigno.

O entusiasmo é sempre possível, e a alegria de estar vivo é algo que cuidadosamente se rega, e todos os dias se faz renascer. Sei do que falo. Tenho ao meu lado um exemplo vivo: à beira dos noventa anos estreou hoje com o maior entusiasmo, uma Scooter eléctrica que lhe permitirá reganhar uma mobilidade há muito perdida. E a sensação de que a aventura pode sempre recomeçar é um motor irresistível, tal como a experiência do novo é sempre um desafio que vale a pena.
Depois disto dito, aqui fica o exemplo a não seguir:

 

 

 

Como a morte se infiltra

 

Certo dia, não se levanta,
porque quer demorar na cama.

No outro dia ele diz porquê:
é porque lhe dói algum pé.

No outro dia o que dói é a perna,
e nem pode apoiar-se se nela.

Dia de dia lhe cresce um não,
um enrodilhar-se de cão.

Dia dia ele aprende o jeito
em que menos lhe pesa o leito.

Um dia faz fechar as janelas:
dói-lhe o dia lá fora delas.

Há um dia em que não se levanta:
deixa-o para a outra semana,

outra semana sempre adiada,
que eu não vê por que apressá-la.

Um dia passou vinte e quatro horas
incurioso do que é de fora.

Outro dia já não distinguiu
noite e dia, tudo é vazio.

Um dia, pensou: respirar,
eis um esforço que se evitar.

Quem deixou-o, a respiração?
Muda de cama. Eis seu caixão.

 

 

Poema publicado em Agrestes (1981-1985), e transcrito de A educação pela pedra e depois, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1997.

Acompanham o artigo imagens de duas pinturas: a abrir, de Arshile Gorky (1904-1948) O pintor e sua mãe; a seguir de Paul Gauguin (1848-1903), No jardim do hospital de Arles.

 

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Amor é o olhar total num poema de Fiama Hasse Pais Brandão

08 Domingo Out 2017

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Fiama Hasse Pais brandão, Píerre-Auguste Renoir

E de novo o amor! Aquele não-sei-quê físico que incendeia a alma e inexplicavelmente nos agarra, ou como escreve superiormente Fiama Hasse Pais Brandão (1938-2007) no poema de hoje:

 

Amor é o olhar total, que nunca pode
ser cantado nos poemas ou na música,
…

 

 

Fiama fala de amor como absoluto físico sem um entendimento de relação, e aí surge como estranho. Que amor é este tão-só próprio e bastante como a poetisa refere? Escorre … como chuva cai / na minha cara …, e depois? Há sempre um depois a que o poema foge deixando-nos apenas um …  em si mesmo absoluto táctil, … que à maior parte de nós deixa certamente insatisfeitos. Ao físico o amor exige sempre o psicológico que nesta definição está ausente. Parece antes o poema do amor-instante que se espera seja eterno. Será?

 

 

 

Amor é o olhar total, que nunca pode
ser cantado nos poemas ou na música,
porque é tão-só próprio e bastante,
e em si mesmo absoluto táctil,
que me cega, como chuva cai
na minha cara, de faces nuas,
oferecidas sempre apenas à água.

 

 

O amor escrito nos livros tem sempre pouco a ver com a complexidade da vida real, mas na sua variedade ajuda-nos a percebê-lo melhor em nós e nos outros.

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Renoir (1841-1919), Mulher a ler.

 

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As recordações olham para mim — poema de Tomas Tranströmer

06 Sexta-feira Out 2017

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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carlos mendonça lopes, poema de Tomas Tranströmer

A paisagem na memórias ou a poesia dos lugares, são  expressões que me ocorrem à leitura de muita da poesia de Tomas Tranströmer (1931-2015).
Quase sempre, os poemas partindo do trivial levam-nos subrepticiamente para o essencial da existência, induzindo no leitor uma reflexão que permanece bem para lá de concluída a leitura. Deixo como ilustração o poema As recordações olham para mim.

 

 

As recordações olham para mim

Uma manhã de Junho quando ainda é cedo para acordar
mas demasiado tarde para voltar a pegar no sono.

Embrenho-me pelo arvoredo repleto de recordações
e elas seguem-me com os seus olhares.

Autênticos camaleões, elas não se mostram,
diluem-se literalmente no cenário.

E embora o gorjeio dos pássaros seja ensurdecedor,
estão tão perto de mim que ouço como respiram.

 

Tradução de Alexandre Pastor

Transcrito de Tomas Tranströmer, 50 Poemas, Relógio d’Água Editores, Lisboa, 2012.

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura digital a partir de uma fotografia tirada em Tavira no início dos anos 70. Foto e pintura fi-las ambas num tempo a que não volto. A cidade representada é outra e a mesma que hoje existe. E em mim junta o prazer de hoje à memória de tempos frequentemente felizes.

Carlos Mendonça Lopes

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António Patrício — Vilancete

22 Sexta-feira Set 2017

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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António Patrício, Picasso

É de alucinação que fala o poema Vilancete de António Patricio (1878-1930).

Sentindo a presença viva da amada que partiu: … / Aparece irrealmente: / vem agora que está morta / sem bater à minha porta. /… , o poema conta-nos uma serena aceitação da morte de quem amamos:
…
Se o luar doira a vidraça,
ficamos juntos a ver
como a lua vem benzer
a cada coisa que passa.
Assim a noite esvoaça…
E por fim a amiga morta
sai sem nunca abrir a porta.

Nele não há vislumbre de desespero ou angústia, apenas uma espécie de saudade que o desgosto suavizou:
…
Como um perfume no escuro,
como na alma um perdão,
surge assim no coração
que por ela se fez puro.
…

Para os leitores que o recordem, lemos neste poema uma forma mitigada de viver com a lembrança da amada morta que Teixeira de Pascoaes exacerbou em Elegia do Amor.

Vilancete

Não mais bate à minha porta
aquela que nos sorria…
Coração: a amiga é morta.

Entra agora fluidamente
por onde quer, como quer;
com suas mãos de mulher
não bate: truz, truz! tremente.
Aparece irrealmente:
vem agora que está morta
sem bater à minha porta.

Como um perfume no escuro,
como na alma um perdão,
surge assim no coração
que por ela se fez puro.

Não há janela nem muro
que resista à amiga morta:
abre, sem abrir, a porta.

Vem sentar-se à minha mesa,
sonha ao canto da lareira,
só por ela a noite inteira
a candeia fica acesa.
Que eu já não tenho surpresa
quando ela vem, doce morta,
sem bater à minha porta.

Se o luar doira a vidraça,
ficamos juntos a ver
como a lua vem benzer
a cada coisa que passa.
Assim a noite esvoaça…
E por fim a amiga morta
sai sem nunca abrir a porta.

Este sentir a presença de fantasmas, diz-nos a medicina, é desvio mental que vale a pena vigiar. Há certamente luto por fazer em quem assim o sinta, e nós, leitores desprevenidos, precisamos ter presente que um poema é apenas ficção, não um relato emocional verídico com que possamos ter empatia.

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Picasso (1881-1973), A sombra de 1957.

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O primeiro de DOIS EXCERTOS DE ODES de Pessoa / Alvaro de Campos

12 Terça-feira Set 2017

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Fernando Pessoa

Há no primeiro dos dois excertos de odes, poema de Fernando Pessoa/Alvaro de Campos, de 1914, uma volúpia nas palavras que precede a inteligibilidade do verso, e o mistério da poesia expõe-se como totalidade do mundo.

 

Embora o poema seja um todo coerente e orgânico, muito para além de quaisquer fragmentos, permito-me destacar alguns aspectos: quando o poema começa a fazer caminho em nós é o Não sou nada / Nunca serei nada / À parte isso tenho em mim todos os sonhos do mundo … mais tarde lido em Tabacaria, que neste primeiro excerto de ode se esboça:

 

……
Vem, Noite antiquíssima e idêntica,
…
Nossa Senhora
Das coisas impossíveis que procuramos em vão,
Dos sonhos que vêm ter connosco ao crepúsculo, à janela.
…
Vem e arranca-me
Do solo de angústia e de inutilidade
Onde vicejo.
…

 

 

Neste apelo ao sortilégio permanece o desejo de milagre que torne possíveis os sonhos pelo desaparecimento do mundo visível e da sua materialidade hostil, para finalmente apenas pedir a chegada da noite consoladora do enorme cansaço do mundo:

 

…
Vem, e embala-nos,
Vem e afaga-nos.
Beija-nos silenciosamente na fronte,
…
Vem envolver na noite manto branco
O meu coração…
Serenamente como uma brisa na tarde leve,
Tranquilamente com um gesto materno afagando.

 

 

Em todo o poema surge um desejo de integração cósmica do ser, procurando a diluição da singularidade do eu, e da sua irrelevância, no manto diáfano da noite onde todas as diferenças se esbatem.

 

Quanto todos nós lutamos com a noite e seus fantasmas!
Tantas vezes, é o contrário do apaziguamento que o poema afirma, o que a noite traz. Mas também sabemos quanto a noite pode ser consoladora, e gratos ficamos ao acordar.
É um mistério de todos os dias, e a que a poesia volta uma e outra vez.

 

 

 

 

[Primeiro de]
DOIS EXCERTOS DE ODES
(FINS DE DUAS ODES, NATURALMENTE)

 

……
Vem, Noite antiquíssima e idêntica,
Noite Rainha nascida destronada,
Noite igual por dentro ao silêncio. Noite
Com as estrelas lantejoulas rápidas
No teu vestido franjado de Infinito.

 

Vem, vagamente,
Vem, levemente,
Vem sozinha, solene, com as mãos caídas
Ao teu lado, vem
E traz os montes longínquos para o pé das árvores próximas.
Funde num campo teu todos os campos que vejo,
Faze da montanha um bloco só do teu corpo,
Apaga-lhe todas as diferenças que de longe vejo.
Todas as estradas que a sobem,
Todas as várias árvores que a fazem verde-escuro ao longe.
Todas as casas brancas e com fumo entre as árvores,
E deixa só uma luz e outra luz e mais outra,
Na distância imprecisa e vagamente perturbadora.
Na distância subitamente impossível de percorrer.

 

Nossa Senhora
Das coisas impossíveis que procuramos em vão,
Dos sonhos que vêm ter connosco ao crepúsculo, à janela.
Dos propósitos que nos acariciam
Nos grandes terraços dos hotéis cosmopolitas
Ao som europeu das músicas e das vozes longe e perto.
E que doem por sabermos que nunca os realizaremos…
Vem, e embala-nos,
Vem e afaga-nos.
Beija-nos silenciosamente na fronte,
Tão levemente na fronte que não saibamos que nos beijam
Senão por uma diferença na alma.
E um vago soluço partindo melodiosamente
Do antiquíssimo de nós
Onde têm raiz todas essas árvores de maravilha
Cujos frutos são os sonhos que afagamos e amamos
Porque os sabemos fora de relação com o que há na vida.

 

Vem soleníssima,
Soleníssima e cheia
De uma oculta vontade de soluçar,
Talvez porque a alma é grande e a vida pequena.
E todos os gestos não saem do nosso corpo
E só alcançamos onde o nosso braço chega,
E só vemos até onde chega o nosso olhar.

 

Vem, dolorosa,
Mater-Dolorosa das Angústias dos Tímidos,
Turris-Eburnea das Tristezas dos Desprezados,
Mão fresca sobre a testa em febre dos humildes.
Sabor de água sobre os lábios secos dos Cansados.
Vem, lá do fundo
Do horizonte lívido,
Vem e arranca-me
Do solo de angústia e de inutilidade
Onde vicejo.
Apanha-me do meu solo, malmequer esquecido,
Folha a folha lê em mim não sei que sina
E desfolha-me para teu agrado,
Para teu agrado silencioso e fresco.
Uma folha de mim lança para o Norte,
Onde estão as cidades de Hoje que eu tanto amei;
Outra folha de mim lança para o Sul,
Onde estão os mares que os Navegadores abriram;
Outra folha minha atira ao Ocidente,
Onde arde ao rubro tudo o que talvez seja o Futuro,
Que eu sem conhecer adoro;
E a outra, as outras, o resto de mim
Atira ao Oriente,
Ao Oriente donde vem tudo, o dia e a fé,
Ao Oriente pomposo e fanático e quente,
Ao Oriente excessivo que eu nunca verei,
Ao Oriente budista, bramânico, sintoísta,
Ao Oriente que tudo o que nós não temos.
Que tudo o que nós não somos,
Ao Oriente onde — quem sabe? — Cristo talvez ainda hoje viva,
Onde Deus talvez exista realmente e mandando tudo…

 

Vem sobre os mares,
Sobre os mares maiores,
Sobre os mares sem horizontes precisos,
Vem e passa a mão pelo dorso da fera,
E acalma-o misteriosamente,
Ó domadora hipnótica das coisas que se agitam muito!

 

Vem, cuidadosa,
Vem, maternal,
Pé antepé enfermeira antiquíssima, que te sentaste
À cabeceira dos deuses das fés já perdidas,
E que viste nascer Jeová e Júpiter,
E sorriste porque tudo te é falso e inútil.

 

Vem, Noite silenciosa e extática,
Vem envolver na noite manto branco
O meu coração…
Serenamente como uma brisa na tarde leve,
Tranquilamente com um gesto materno afagando.
Com as estrelas luzindo nas tuas mãos
E a lua máscara misteriosa sobre a tua face.
Todos os sons soam de outra maneira
Quando tu vens.
Quando tu entras baixam todas as vozes,
Ninguém te vê entrar.
Ninguém sabe quando entraste,
Senão de repente, vendo que tudo se recolhe,
Que tudo perde as arestas e as cores,
E que no alto céu ainda claramente azul
Já crescente nítido, ou círculo branco, ou mera luz nova que vem,

 

A lua começa a ser real.

30-6-1914

 

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Um poema de Vladimir Holan

23 Quarta-feira Ago 2017

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Pierre Soulages, Vladimir Holan

Quando a “dor não é de tamanho natural, / é sempre maior que o homem / e no entanto, deve alojar-se no seu coração“, estamos perante tempos muito duros.
Frequentemente, o optimismo que impregna a natureza humana, mesmo com a mais negra realidade, faz emergir a esperança. Não é assim no poema de Vladimir Holan (1905-1980), Mas, que à frente mostro, escrito nos anos negros do pós-WWII na Checoslováquia. Tempo absolutamente sem esperança o que o poeta viveu, afinal, como tudo, também teve o seu fim, embora o poeta não tenha chegado a conhecer a liberdade pós-1989. Liberdade que possuímos hoje na Europa Ocidental, ainda que seja frequentemente ameaçada pelo terror. Mas feito o luto, a vontade de a viver tem sido sempre mais forte. É preciso que assim continue, e que a alegria de viver não seja nunca “uma ténue memória que ecoa em nós.“.

 

 

 

Mas

O deus do canto e do riso há muito
fechou as portas da eternidade atrás de si.
Desde então apenas de vez enquando
uma ténue memória ecoa em nós.
E desde então só a dor
não é de tamanho natural,
é sempre maior que o homem
e no entanto, deve alojar-se no seu coração.

 

Versão de Carlos Mendonça Lopes a partir da tradução inglesa.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Pierre Soulages (1919), The red list, de 1970.

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O Viandante — poema de Carlos de Oliveira

18 Sexta-feira Ago 2017

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Carlos Oliveira

Há uma precisão cirúrgica na poesia de Carlos de Oliveira (1921-1981). As palavras cortam como estilete afiado, dilacerando o leitor com a realidade que devolvem. São frequentemente poemas onde o verso, na sua medida exacta, transmite o mais lídimo conceito de poesia, qual seja este poema O Viandante, que a seguir transcrevo.

 

O Viandante

Trago notícias da fome
que corre nos campos tristes:
soltou-se a fúria do vento
e tu, miséria, persistes.
Tristes notícias vos dou:
caíram espigas da haste,
foi-se o galope do vento
e tu, miséria, ficaste.
Foi-se a noite, foi-se o dia,
fugiu a cor às estrelas:
e, estrela nos campos tristes,
só tu, miséria, nos velas.

 

Se, felizmente, a realidade próxima, raíz deste poema, um certo Portugal até finais dos anos 50, desapareceu, esta miséria extrema de que o poema pungentemente fala, grassas pelo mundo, sobretudo em África, sem que os países desenvolvidos consigam contribuir para uma solução que a extinga.

No entanto, como em toda a poesia intemporal, multiplas são situações em que sentimos em nós o que o poeta refere a concluir o poema:

…

Foi-se a noite, foi-se o dia,
fugiu a cor às estrelas:
e, estrela nos campos tristes,
só tu, miséria, nos velas.

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Florian Maiorescu – People IV 2008, de colecção particular.

 

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