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Category Archives: Poetas e Poemas

Table talk — poema de Wallace Stevens em várias versões

01 Quinta-feira Mar 2018

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Píerre-Auguste Renoir, Wallace Stevens

No seu desenho aforístico, o poema Table Talk de Wallace Stevens (1879-1955) põe-nos perante a evidência do papel do acaso e ausência de determinismo no que à vida respeita.
Diz-nos ele que a vida é, em grande medida, coisa de acontecer gostarmos, não de dever —  Life, then, is largely a thing / Of happens to like, not should. E sugere-nos que, no seu correr, sem interrogações, gostemos do que acontecer gostarmos: One likes what one happens to like. Sem mais. Pois, a vida quando acaba, é para sempre: Granted, we die for good.
E assim, com a despreocupação de uma conversa de café, somos levados a pensar quanto o sem sentido de muitas das angústias que nos atravessam a existência.

Seguem-se três interessantes exercícios de tradução sobre este poema. Elas dão-nos conta, de forma lapidar, quanto o exercício de tradução em poesia é reinterpretação do poema original para além das consabidas alterações de métrica e ritmo inerentes às diferenças linguísticas. A reinterpretação revela-se logo na tradução do título, Table talk. E temos de Conversa à mesa a Conversa Familiar, e Conversa de café. Depois, ao longo do poema, as diferenças nas opções de tradução abundam. A começar pela primeira palavra do poema, Granted, Concedido. Temos alteração do tempo verbal para Concedo, ou então Claro, ou ainda com inversão na posição de Granted no verso, e a sua tradução por é certo.
Poderia continuar quase palavra a palavra, o que seria sobremaneira enfadonho, pelo que lhe deixo, a si, leitor, o exercício de fruir outras diferenças e sentir como as variadas opções de tradução encaminham a leitura do poema em diferentes direcções.

 

 

 

Conversa de café

Claro, morremos para sempre.
A vida, então, é em grande parte uma coisa
De acontecer gostar-se, não de ter de.

E isso, também, claro, porque é que
Acontece eu gostar de arbustos vermelhos,
Relva cinzenta, e céu cinzento-esverdeado?

Que mais resta? Mas vermelho,
Cinzento, verde, porquê essas de entre todas?
Isso não é o que eu disse:

Não essas de entre todas. Mas essas.
Gosta-se do que acontece gostar-se
Gosta-se do modo como o vermelho cresce.

Não tem nenhuma importância.
Acontecer gostar-se é um
Dos modos como as coisas acontecem calhar.

Tradução de Luísa Maria Queiroz de Campos
in Wallace Stevens, Ficção Suprema, Assírio & Alvim, Lisboa, 1991.

 

 

 

Conversa à mesa

Morremos de vez, é certo.
Por isso, a vida é uma coisa,
De que acontece, ou não, gostar.

Mas, sendo assim, porque me acontece
Gostar do mato vermelho,
Da erva cinzenta, e do céu verde-cinza?

E que mais? Mas vermelho,
Cinzento, verde, porquê, especialmente?
Não foi isso o que eu disse:

Não esses, especialmente. Apenas, esses.
Gostamos do que acontece gostarmos.
Gostamos da maneira como o vermelho cresce.

Não tem nenhuma importância.
Acontecer gostar é uma das maneiras
Que as coisas têm de acontecer.

Tradução de Maria Andersen de Sousa
in Wallace Stevens, Antologia, Relógio d’Água, Lisboa.

 

 

 

Conversa Familiar

Concedo: quando se morre é para sempre.
E a vida é em grande parte coisa
De acontecer gostar, não de o dever.

E concedido também isto, porque acontece que eu
Goste do mato vermelho,
De relva cinzenta, da cinza verde do céu?

Que mais resta? Mas porquê de entre todos esses,
O vermelho, o cinzento, o cinzento verde?
Não foi isso o que eu disse:

Gosta-se do que gostar nos acontece.
Não de entre todos esses. Mas esses.
Gosta-se da maneira como o vermelho cresce.

Importante não deverá ser.
Acontecer gostar é uma
Das coisas que acontece acontecer.

Tradução de Victor Palla
in Poemas do Inglês, Ler Editora, Lisboa, 1985.

 

 

 

Table talk

Granted, we die for good.
Life, then, is largely a thing
Of happens to like, not should.

And that, too, granted, why
Do I happen to like red bush,
Grey grass and green-gray sky?

What else remains? But red,
Gray, green, why those of all?
That is not what I said:

Not those of all. But those.
One likes what one happens to like.
One likes the way red grows.

It cannot matter at all.
Happens to like is one
Of the ways things happen to fall.

1935?

in Opus Posthumous, 1957
Transcrito de Wallace Stevens, Collected Poetry & Prose, The Library of America, 1997.

 

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Pierre-Auguste Renoir (1841-1919), Almoço de barqueiros.

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Réplica — poema de William Carlos Williams

25 Domingo Fev 2018

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Richard Diebenkorn, William Carlos Williams

Amor, água, e poesia, trilogia para limpar o mundo, e fazê-lo à nossa medida, é o postulado de William Carlos Williams(1883-1963) no poema Riposte. São parte do essencial da vida, como o ar que respiramos, e por isso, o poeta nos aconselha a que os fechemos under lock and key, para que não se percam.
A tradução de José Manuel Mendes acompanha de forma precisa o original, dando-nos em português um poema magnífico.

 

 

Réplica

 

O amor é como a água,
queridos concidadãos:
purifica e dissipa os gases nocivos.
É como a poesia também
e pelas mesmas razões.

O amor é um tesouro de tal modo valioso,
queridos concidadãos,
que, no vosso lugar,
a sete chaves o guardaria…
como o ar ou o Atlântico ou
como a poesia!

Tradução de José Manuel Mendes
in Cinzas da Véspera, Ed. do Autor, 2012.

 

 

 

Poema original

 

 

Riposte

Love is like water or the air
my townspeople;
it cleanses, and dissipates evil gases.
It is like poetry too
and for the same reasons.
Love is so precious
my townspeople
that if I were you I would
have it under lock and key—
like the air or the Atlantic or
like poetry!

 

Publicado pela primeira vez no livro Al Que Quiere! A Book of Poems, 1917.
Transcrito de The Collected Poems of William Carlos Williams, vol.I 1909-1939, New Directions, 1991.

 

 

Abre o artigo a imagem de um detalhe de uma pintura de Richard Diebenkorn (1922-1993), Ocean Park #79.

 

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Um poema de Manuel Paço D’Arcos

12 Sexta-feira Jan 2018

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Anselm Kiefer, Ingeborg Bachmann, Manuel Paço D'Arcos, Walter Burkett

A poesia com Deus pelo caminho é hoje pouco apreciada. E, no entanto, a presença de um qualquer sentimento religioso é um universal, ainda que umas vezes difuso e outras intelectualmente rejeitado.

Num curioso e fascinante livro, A Criação do Sagrado, Walter Burkert argumenta sobre uma possível raiz biológica do sentimento religioso, sem base outra que o seu conhecimento dos mitos e da história das religiões, afirmando que: Poderemos continuar a conceber a religião, paralela à linguagem e à arte e, acima de tudo, em estreita simbiose com ambas, como um híbrido de grande longevidade entre as tradições culturais e biológicas.

Os surpreendentes estudos em neurociência identificando a simbiose biologica de emoções, sentimentos e cultura, que prosseguem, certamente nos darão noticia num futuro próximo do quão fundamentada pode ser a tese do Professor Burkert.

Não sei que caminhos levam à necessidade de Deus, ou à sua revelação, sendo certo que se trata sempre de um percurso que é matéria de fé, onde a razão está ausente e a alegria interior se procura. O que segue é que o sentimento de Deus tem dado lugar a muita poesia.
Hoje recupero de um esquecido Manuel Paço D’Arcos (????-????) o poema que a seguir transcrevo, o qual convida exactamente a esse caminho místico:
…
Esquece tudo que foi um engano profundo,
Um errado caminho.
Traz contigo somente os sonhos de criança
E vamos todos, numa turba imensa,
Com os olhos no Céu,
E na alma a esperança,
…

E o poema prossegue num caminhar para Deus depois de, a abrir, convidar o leitor a virar costas mundo em que vive:

Homem,
Larga a ruina fumegante do teu mundo
…

concluindo como o papel redentor da religião é o guia para Edificar a Cidade do Amor.

 

Eis o poema integral:

 

Homem,
Larga a ruina fumegante do teu mundo
E vem comigo para o meu País do Sul
Onde a terra é virgem e o céu é sempre azul.
Esquece tudo que foi um engano profundo,
Um errado caminho.
Traz contigo somente os sonhos de criança
E vamos todos, numa turba imensa,
Com os olhos no Céu,
E na alma a esperança,
Levando Deus em nós e na sua presença,
E só em seu louvor,
Edificar a Cidade do Amor,
No meu País do Sul,
Lá, onde a terra é virgem e o Céu é sempre azul!

Transcrito de Manuel Paço D’Arcos, A Ilha e o Mar, Edições Ática, Lisboa, 1952.

 

Notas iconografia e bibliográfica

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Anselm Kiefer (1945), Bohemia Lies by the Sea, de 1996, pertencente ao MET de Nova York.
O pintor foi buscar este título a um poema do mesmo nome da austríaca Ingeborg Bachmann (1926 – 1973), no qual esta reflecte sobre a necessidade de conhecer e ter o que não existe, traduzida no poema pela metáfora do território da Europa central, a Bohemia, existir à beira-mar.
A pintura dá-nos a ver esse caminho de gente e coisas para lado nenhum, talvez em busca do sonho, ou de qualquer desejo inominado.

O poema de Ingeborg Bachmann pode ser encontrado no original, Böhmen liegt am Meer, e em tradução inglesa, Bohemia Lies by the Sea, no livro Darkness Spoken, The Collected Poems, Zephir Press, 2006.

A Criação do Sagrado, Walter Burkett, Edições 70, Lisboa, 2001.

 

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Coisas da Terra — um poema de Irene Lisboa

05 Sexta-feira Jan 2018

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Adília Lopes, Bela Kadar, Irene Lisboa

Estava há dias a ler a poesia de Adília Lopes (1960) e dei comigo a pensar quanto aqueles relatos da trivialidade dos dias e do existir são filhos directos da poesia de Irene Lisboa (1892-1958). Não evidentemente o afogueamento sexual que a certa altura atravessou a poesia de Adília Lopes, e lhe trouxe a notoriedade aureolada de escândalo, mas os tantas vezes comoventes incidentes da vida que acabam por determinar uma individualidade. Se outro dia irei à poesia de Adília Lopes, hoje transcrevo um poema de Irene Lisboa, Coisas da Terra, denso dessas implicações, em que as circunstâncias do existir ditam uma vida. Na economia da sua enunciação, lemos como a envolvente exterior determina quem afinal somos.

 

 

Coisas da Terra

A Engrácia e a mãe
chegaram numa tarde de domingo.
A Engrácia é minha sobrinha
e a mãe,
que eu ainda só vira duas vezes,
minha irmã.
Minha irmã…
uma pobre mulher,
uma simpática desconhecida
que vem ao hospital ver o marido.

Esta é minha gente.
Penso da mulher:
parecemo-nos.
Temos os mesmos olhos e boca,
o mesmo nascimento de cabelos.

Oito filhos teve já a minha irmã.
Uma filha que lhe morreu
levou o meu nome.
Este mistério que sou!
Filha de outro pai,
noutra terra criada,
lá vivida!

Dou pão com manteiga à Engrácia,
que não diz nada.
A mãe fala.
É o campo toda ela,
o seu cheiro até
e a sua resignação.
Conta coisas do António,
o meu sobrinho mais velho,
com o seu exame feito
e tão amigo de ler…
Mãe! coitada, penso.
Oiço-a,
esquecida do nosso parentesco.
As duas ali estão:
a criança vestidinha à cidade,
a mulher humilde e amável.
Tudo tão natural e pobre!

 

Assinado João Falco
Publicado pela primeira vez em Seara Nova, 1940.
Transcrito de Irene Lisboa, Folhas Soltas da Seara Nova (1929-1955), Antologia, prefácio e notas de Paula Mourão, INCM, Lisboa, 1986.

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Bela Kadar (1877-1955).

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João Cabral de Melo Neto — A mulher e a casa

03 Quarta-feira Jan 2018

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Geza Voros, João Cabral de Melo Neto

Sentir a casa como mulher, descobri-la aos poucos, e desejá-la cada vez mais, é o originalíssimo feito de João Cabral de Melo Neto (1920-1999) no poema A mulher e a casa:
…
pelos espaços de dentro: / seus recintos, suas áreas,
organizando-se dentro / em corredores e salas,

os quais sugerindo ao homem / estâncias aconchegadas,
paredes bem revestidas / ou recessos bons de cavas,

exercem sobre esse homem / efeito igual ao que causas:
e vontade de corrê-la / por dentro, de visitá-la.

 

Talvez apenas uma paixão simultânea de engenheiro e poeta conduza a um poema assim, mas é de todos o simultâneo prazer de descoberta e aconchego, quando acontece o encontro com uma casa que se cola a nós como segunda pele, qual mulher a quem o amor nos entregou para sempre.

Ao longo da vida vivemos diferentemente as casas por onde passamos, tal como é diferente a vivência com cada uma das mulheres que encontrámos. De todas fica um sabor que nos acompanha, e fez de nós umas vezes seres gregários, outras vezes leves penas transportadas pelo vento.

 

A mulher e a casa

Tua sedução é menos
de mulher do que de casa:
pois vem de como é por dentro
ou por detrás da fachada.

Mesmo quando ela possui
tua plácida elegância,
esse teu reboco claro,
riso franco de varandas,

uma casa não é nunca
só para ser contemplada;
melhor: somente por dentro
é possível contemplá-la.

Seduz pelo que é dentro,
ou será, quando se abra:
pelo que pode ser dentro
de suas paredes fechadas;

pelo que dentro fizeram
com seus vazios, com o nada;
pelos espaços de dentro,
não pelo que dentro guarda;

pelos espaços de dentro:
seus recintos, suas áreas,
organizando-se dentro
em corredores e salas,

os quais sugerindo ao homem
estâncias aconchegadas,
paredes bem revestidas
ou recessos bons de cavas,

exercem sobre esse homem
efeito igual ao que causas:
e vontade de corrê-la
por dentro, de visitá-la.

 

Poema transcrito de A educação pela pedra e depois, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1997.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Geza Voros (1897-1957), Mulher num quarto com blusa de riscas.

 

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Um Estranho no Meu Túmulo — poema de Inês Dias

13 Quarta-feira Dez 2017

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Christian Schad, Inês Dias

Entre a avalanche de palavras à procura da poesia, às vezes fulge o poema capaz de entrar em nós e aí ficar colado pela verdade extrema da sua perfeição. Hoje refiro-me ao poema Um Estranho no Meu Túmulo de Inês Dias, que a seguir transcrevo. Nele, cada verso é um absoluto na verdade do sentimento que transmite, e o todo dá conta do complexo desencanto de uma paixão que viveu da sua possibilidade entrevista.

Começamos uma relação, e toda a expectativa da felicidade por vir nos acompanha. Às vezes “Chegámos tarde a nós.” como escreve a abrir o poema Inês Dias, e essa é a evidência à posteriori do progressivo desaparecer da felicidade esperada.

No poema acompanhamos o desencanto revelado nos sinais exteriores do viver comum. E em vez do circunstanciado desenvolvimento do que sucedeu, é a mestria poética de Inês Dias que constrói num curto poema o relato da desilusão deste viver.

 

Um estranho no meu túmulo

Chegámos tarde a nós.
Eu tinha a pele gasta, o coração no fio.
Tu eras um longo muro de cimento areado
em que deixava a carne inteira
a caminho do encontro.

A primavera ficava-nos sempre
à esquerda e tu cada vez mais
dentro de mim até não sentir nada,
até estares já do outro lado.
Para trás, a cova matinal na almofada,
o postal entre a leitura suspensa,
o número a chamar de um fantasma.

Se apagar as marcas de onde pousaste
a cabeça sobre a minha vida,
se ganhar novo espaço para o fôlego,
faz-me só um favor:
nunca mais me reconheças.

Transcrito de In Situ, Língua Morta, Abril de 2012.

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Christian Schad (1894-1982), Auto-retrato de 1927. A pintura pertence a uma coleção privada.

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David Mourão-Ferreira — Música de cama X

07 Quinta-feira Dez 2017

Posted by viciodapoesia in Erótica, Poetas e Poemas

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Étienne-Maurice Falconet, David Mourão-Ferreira

A poesia sobre o amor, se é desabafo de desgosto, grito de dor, ou desespero de ausência, também é registo do instante que se faz eternidade no gozo supremo da sua felicidade, ou como escreve David Mourão-Ferreira (1927-1996):

… de nos teus olhos
tão perto dos meus
descobrir o modo
de beber o céu

A estas práticas do amor tem a humanidade entregado engenho e saber, recusando tantas vezes moralidades e interditos de questionável finalidade. E depois da experiência, ou paralela a ela, temos a arte e a poesia a levar-nos a imaginação pelos caminhos que o prazer desbrava.

Não é de hoje, mas de sempre, esse registo literário e artístico do prazer experimentado. Há uns anos, a propósito do acto de amor hoje descrito por  David Mourão-Ferreira, transcrevi num artigo, [A propósito de cavalo de Heitor com Ovídio e Apuleio] como na antiguidade a encontramos referida. Cavalo de Heitor lhe chamavam. Hoje um poema de David Mourão-Ferreira recorda as delícias de tal prática:

 

 X

Sobre mim cavalgas
cingindo-me os flancos
Colhes à passagem
a luz do instante

De dentes cerrados
ondulas   avanças
retesas os braços
comprimes as ancas

Depois para a frente
inclinas-te olhando
o que entre dois ventres
ocorre entretanto

e o próprio galope
em que vais lançada
Que lua te empolga
Que sol te embriaga

Lua e sol tu és
enquanto cavalgas
amazona e égua
de espora cravada

no centro do corpo
Centauresa alada
com os seios soltos
como feitos de água

Queria bebê-los
quando mais te dobras
Os cabelos   esses
sorvê-los agora

Mas de cada vez
que o rosto aproximas
já é outra a sede
que me queima a língua

A de nos teus olhos
tão perto dos meus
descobrir o modo
de beber o céu

in David Mourão-Ferreira, Música de Cama, antologia erótica com um livro inédito, Editorial Presença, Lisboa, 1994.

Abre o artigo a imagem de uma escultura de Étienne-Maurice Falconet (1716-91).

Representa Cúpido. Pede silêncio para não perturbarmos os amantes entregues ao sublime prazer de Eros.

 

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A Adormecida — poema de Paul Valery

05 Terça-feira Dez 2017

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Augusto de Campos, Pandy Lajos, Paul Valery

A poesia, na miríade de cintilações que consegue provocar nas palavras, tem uma espécie de epítome na versão de Augusto de Campos do soneto de Paul Valery (1871-1945) La Dormeuse, A Adormecida em português. Pela palavra, nele lemos magia e encanto associados na contemplação da bela adormecida:

…
Tua forma ao ventre puro, que veste um fluido braço,
Vela. Tua forma vela, e meus olhos: abertos.

A adormecida

Que segredo incandesces no peito, minha amiga,
Alma por doce máscara aspirando a flor?
De que alimentos vãos teu cândido calor
Gera essa irradiação: mulher adormecida?

Sopro, sonhos, silêncio, invencível quebranto,
Tu triunfas, ó paz mais potente que um  pranto,
Quando de um pleno sono a onda grave e estendida
Conspira sobre o seio de tal inimiga.

Dorme, dourada soma: sombras e abandono,
De tais dons cumulou-se esse temível sono,
Corça languidamente longa além do laço,

Que embora a alma ausente, em luta nos desertos,
Tua forma ao ventre puro, que veste um fluido braço,
Vela. Tua forma vela, e meus olhos: abertos.

1920

Tradução de Augusto de Campos (1931).
Poema publicado em LINGUAVIAGEM, Editora Schwarcz, S. Paulo, 1987.

 

 

Poema original de Paul Valery (1871-1945)

 

La Dormeuse

Quels secrets dans mon coeur brûle ma jeune amie,
Âme par le doux masque aspirant une fleur?
De quels vains aliments sa naïve chaleur
Fait ce rayonnement d’une femme endormie?

Souffles, songes, silence, invincible accalmie,
Tu triomphes, ô paix plus puissante qu’un pleur,
Quand de ce plein sommeil l’onde grave et l’ampleur
Conspirent sur le sein d’une telle ennemie.

Dormeuse, amas doré d’ombres et d’abandons,
Ton repos redoutable est chargé de tels dons,
Ô biche avec langueur longue auprès d’une grappe,

Que malgré l’âme absente, occupée aux enfers,
Ta forme au ventre pur qu’un bras fluide drape,
Veille; ta forme veille, et mes yeux sont ouverts.

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura do pintor húngaro Pandy Lajos (1895-1957), Nu reclinado.

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Roupa — poema de Salette Tavares

20 Segunda-feira Nov 2017

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Ben Nicholson, Salette Tavares

A intimidade de cada um faz-se de objectos, de cheiros e sabores que a memória guarda e a vida no seu aleatório fluir uma vez por outra desperta. E às vezes, de surpresa, as recordações surgem e tomam conta de nós.

Tantas vezes em gestos simples como arrumar gavetas, andar na rua, ou olhar em redor, uma lembrança chega, e aí vai o tempo correndo para trás, em busca de quem já fomos e não voltaremos a ser. São ocasiões em que sentimos …/ o  segredo  de meu ser / todo entornado./ … de que fala Salette Tavares (1922-1994) no poema Roupa, e que a seguir transcrevo:

 

Roupa

Fui  um  dia  à  janela  e  vi  as  nuvens
carregadas  de  meus  sonhos  desdobrados
recolhi-os  um  a  um
com  mil  cuidados
dobrei-os         engomei-os       e  guardei os
são  meus  lenços
empilhados  na  gaveta.
Tão  certos      tão  brancos       tão iguais
quadrados  sobrepostos  arrumados,
nesse  canto  do  sussurro
são  a  espera  consumada  de  um  aroma
que  se  espalha  e  me  inunda  toda  roupa
guardando  no  mistério
o  segredo  de meu ser
todo entornado.
Mas ali vivem e residem
medindo-se em distância com lençóis
também dobrado também brancos também lisos
também memórias recolhidas de silêncio
na dimensão dos corpos conhecidos.
para além dos lençóis para além dos lenços
o perfume íntimo de outras roupas
lava e põe branco em todas elas
no diálogo imóvel do segredo
misturado  a  conchas  e  colares
no  ruído  surdo  de  um  remanso  medo
que  se  prende  também  outras  peças.

Largos  silêncios  que  o  ranger  de  abrir  suspende
estremecer  de  linhos          despertar  de  panos
desabrocha  de  rendas alvas  na  penumbra,
quem  vos  tocou  tão  escondidos  brandos
e  me  ensinou  a  ter-vos?

30.XI.1970

Transcrito de Obra Poética 1957-1971, INCM, Lisboa, 1992.

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Ben Nicholson (1894-1982), Window in Cornwall de 1946.

 

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Cantam ao longe — poema de Carlos Queiroz

09 Quinta-feira Nov 2017

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Carlos Queiroz, Edvard Munch

Dias há que o mundo e nós estamos de costas voltadas, e o desconforto dessa incompatibilidade sente-se intensamente.

Na concisão de um poema dá-nos Carlos Queiroz (1909-1949) essa dimensão de conflito existencial: uma palavra, um verso, e tudo fica dito.

No primeiro verso do poema a alegria dos outros regista o poeta com “Cantam ao longe.” seguido da escuridão sentida pelo próprio: “Anoitece.”
No segundo verso, “Faz frio pensar na vida;”, transmite-nos esse desconforto existencial que todo o poema transporte.
E o desacerto entre o homem e o mundo que o poeta quer transmitir surge na segunda parte do poema: “E a natureza parece / Dizer em voz comovida, /  Que o homem não a merece.”.

Exemplo maior do que a poesia pode ser na sua leitura das complexidades em que somos férteis, eis o poema:

 

 

Cantam ao longe

Cantam ao longe. Anoitece.
Faz frio pensar na vida;
E a natureza parece
Dizer em voz comovida,
Que o homem não a merece.

 

Publicado em Desaparecido, único livro do poeta, prémio Antero de Quental de 1935.

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Edvard Munch (1863-1944), Melancolia, de 1891.

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