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A intimidade de cada um faz-se de objectos, de cheiros e sabores que a memória guarda e a vida no seu aleatório fluir uma vez por outra desperta. E às vezes, de surpresa, as recordações surgem e tomam conta de nós.
Tantas vezes em gestos simples como arrumar gavetas, andar na rua, ou olhar em redor, uma lembrança chega, e aí vai o tempo correndo para trás, em busca de quem já fomos e não voltaremos a ser. São ocasiões em que sentimos …/ o segredo de meu ser / todo entornado./ … de que fala Salette Tavares (1922-1994) no poema Roupa, e que a seguir transcrevo:
Roupa
Fui um dia à janela e vi as nuvens
carregadas de meus sonhos desdobrados
recolhi-os um a um
com mil cuidados
dobrei-os engomei-os e guardei os
são meus lenços
empilhados na gaveta.
Tão certos tão brancos tão iguais
quadrados sobrepostos arrumados,
nesse canto do sussurro
são a espera consumada de um aroma
que se espalha e me inunda toda roupa
guardando no mistério
o segredo de meu ser
todo entornado.
Mas ali vivem e residem
medindo-se em distância com lençóis
também dobrado também brancos também lisos
também memórias recolhidas de silêncio
na dimensão dos corpos conhecidos.
para além dos lençóis para além dos lenços
o perfume íntimo de outras roupas
lava e põe branco em todas elas
no diálogo imóvel do segredo
misturado a conchas e colares
no ruído surdo de um remanso medo
que se prende também outras peças.
Largos silêncios que o ranger de abrir suspende
estremecer de linhos despertar de panos
desabrocha de rendas alvas na penumbra,
quem vos tocou tão escondidos brandos
e me ensinou a ter-vos?
30.XI.1970
Transcrito de Obra Poética 1957-1971, INCM, Lisboa, 1992.
Abre o artigo a imagem de uma pintura de Ben Nicholson (1894-1982), Window in Cornwall de 1946.