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Tag Archives: Bela Kadar

Coisas da Terra — um poema de Irene Lisboa

05 Sexta-feira Jan 2018

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Adília Lopes, Bela Kadar, Irene Lisboa

Estava há dias a ler a poesia de Adília Lopes (1960) e dei comigo a pensar quanto aqueles relatos da trivialidade dos dias e do existir são filhos directos da poesia de Irene Lisboa (1892-1958). Não evidentemente o afogueamento sexual que a certa altura atravessou a poesia de Adília Lopes, e lhe trouxe a notoriedade aureolada de escândalo, mas os tantas vezes comoventes incidentes da vida que acabam por determinar uma individualidade. Se outro dia irei à poesia de Adília Lopes, hoje transcrevo um poema de Irene Lisboa, Coisas da Terra, denso dessas implicações, em que as circunstâncias do existir ditam uma vida. Na economia da sua enunciação, lemos como a envolvente exterior determina quem afinal somos.

 

 

Coisas da Terra

A Engrácia e a mãe
chegaram numa tarde de domingo.
A Engrácia é minha sobrinha
e a mãe,
que eu ainda só vira duas vezes,
minha irmã.
Minha irmã…
uma pobre mulher,
uma simpática desconhecida
que vem ao hospital ver o marido.

Esta é minha gente.
Penso da mulher:
parecemo-nos.
Temos os mesmos olhos e boca,
o mesmo nascimento de cabelos.

Oito filhos teve já a minha irmã.
Uma filha que lhe morreu
levou o meu nome.
Este mistério que sou!
Filha de outro pai,
noutra terra criada,
lá vivida!

Dou pão com manteiga à Engrácia,
que não diz nada.
A mãe fala.
É o campo toda ela,
o seu cheiro até
e a sua resignação.
Conta coisas do António,
o meu sobrinho mais velho,
com o seu exame feito
e tão amigo de ler…
Mãe! coitada, penso.
Oiço-a,
esquecida do nosso parentesco.
As duas ali estão:
a criança vestidinha à cidade,
a mulher humilde e amável.
Tudo tão natural e pobre!

 

Assinado João Falco
Publicado pela primeira vez em Seara Nova, 1940.
Transcrito de Irene Lisboa, Folhas Soltas da Seara Nova (1929-1955), Antologia, prefácio e notas de Paula Mourão, INCM, Lisboa, 1986.

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Bela Kadar (1877-1955).

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Estranha coisa esta, a poesia — Fernando Namora

26 Quarta-feira Fev 2014

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Bela Kadar, Fernando Namora

kadar Bela  (1877-1955) figures in a square watercolor on cardboardA

Estranha coisa esta, a poesia,

que vai entornando mágoa nas horas

como um orvalho morno escorrendo dos vidros

numa tarde incorpórea…

 

A obra em prosa de Fernando Namora (1919-1989) é um exemplo lapidar do efémero da fama e da volubilidade do gosto das multidões. Escritor de best-sellers, vendendo de cada obra aos milhares de exemplares, esgotando edições sucessivas, repousa hoje no mais absoluto esquecimento.

Tendo começado por publicar três livros de poesia (1938, 1940, 1941), reuniu uma escolha desses poemas com alguns inéditos num único volume — As Frias Madrugadas— e só cerca de trinta anos volvidos (Marketing, 1969) voltou a publicar novos poemas.

Esta obra poética permaneceu na sombra do sucesso da prosa. Folheio-a hoje e encontro alguns poemas que vale a pena conhecer.

 

Em inicio de percurso a desilusão com as mulheres em A outra canção perdida, embora com a porta aberta à esperança:

 

…

Apenas, do logro,

me resta o travo

dos desejos amargos,

…e ainda às vezes

aquela esperança enganosa

de que passe

quem nunca no meu caminho passou.

 

fecho o périplo com o lânguido abandono à desilusão em Alheamento, fazendo passagem pelo esperançoso sonho do amor em Balada de sempre.

 Kadar Bela 00

A outra canção perdida

 

Das mulheres

que na minha vida passaram

ficou-me aquela lembrança

de um fio de areia

sobre o regato sedento,

de qualquer frase

que se ficou no tinteiro,

de um cigarro caro

que se não fumou além do meio,

de um grito rouco

gorado nos ouvidos,

de folhas de um diário inacabado

que o tempo desbotou,

de vinho

que não deixou nódoa no soalho…

 

Sinto a alma ávida

como sempre

e um cansaço inútil

de bater a tantas portas.

 

Apenas, do logro,

me resta o travo

dos desejos amargos,

…e ainda às vezes

aquela esperança enganosa

de que passe

quem nunca no meu caminho passou.
Kadar_Bela-Music

 

Balada de sempre

 

Espero a tua vinda,

a tua vinda,

em dia de lua cheia.

Debruço-me sobre a noite

inventando crescentes e luares.

Espero o momento da chegada

com o cansaço e o ardor de todas as chegadas.

Rasgarás nuvens, estradas,

abrindo clareiras

nas vielas de ciladas.

Saltarás por cima de mares,

de planícies e relevos

— ânsia alada

no meu desejo imaginada.

 

Mas…

enquanto deixo a janela aberta

para entrares,

o mar,

aí, além,

lambe-me os braços hirtos, braços verdes,

algas de sonho,

…e desenha ironias na areia molhada.

 

 

Alheamento

 

Meu corpo estiraçado, lânguido, ao longo do leito.

O cigarro vago azulando is dedos.

O rádio… a música… e as folhas murchas

caindo nas mãos do Outono.

E a tua presença que esvoaça

em torno do cigarro, da música, do Outono…

 

Ausência, minha doce fuga!

 

Estranha coisa esta, a poesia,

que vai entornando mágoa nas horas

como um orvalho morno escorrendo dos vidros

numa tarde incorpórea…

 

Termino com a invocação à mãe enquanto porto de abrigo para as desilusões da vida e a desistência de as enfrentar:

 

…

E sem uma crosta que me tornasse rijo,

nem lutei nem vivi;

fiquei quieto, absorto, em lágrimas

— e lá ao fundo esperavam-me valados

e chacais rancorosos.

Kadar_Bela-Mother_with_his_child

Poema cansado de certos momentos

 

Foi-se tudo

como areia fina esgueirando-se pelos dedos.

Mãe! aqui me tens,

metade de mim,

sem saber que metade me pertence.

Aqui me tens,

de gestos saqueados,

onde resta a saudade de ti

e do mundo de medos.

Meus braços, vê-os, estão gastos

de pedir luz

e de roubar distâncias.

Meus braços

cruzados

em cruz de calvário dos meus degredos.

Aí que isto de correr pela vida,

desbaratando a riqueza que me deste,

de levar em cada beijo

a pureza que pariste e embalaste,

aí, mãe, só um louco ou um Messias

estendendo a face ao justo

para os homens cuspirem o fel das suas veias,

Só um louco, ou um porta ou um Cristo

poderá beijar as rosas que os espinhos sangram

e, embora rasgado, beber o perfume

e continuar cantando.

 

Mãe! tu nunca previste

as geadas e os bichos

roendo os campos adubados

e o vizinho largando a fúria dos rebanhos

pela erva menina dos meus prados.

E assim, geraste-me despido

como as ervas,

e não olhaste os picos nem as cobras,

verdes, viscosas, espreitando dos nichos.

De mão nua, entregaste-me ao destino.

Os anjos ficaram lá em cima, cobardes, ansiosos.

E sem uma crosta que me tornasse rijo,

nem lutei nem vivi;

fiquei quieto, absorto, em lágrimas

— e lá ao fundo esperavam-me valados

e chacais rancorosos.

 

Poemas transcritos de As Frias Madrugadas, Editora Arcádia, Lisboa s/d (1959).

 

São de pinturas de Bela Kadar (1877-1956) as imagens que acompanham o artigo.

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