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O amor e o corpo num poema de Irene Lisboa

17 Domingo Mar 2019

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa do sec. XX

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Irene Lisboa, K B Brehmer

As pernas são belas, 

quando juntas. 

Que beleza a das pernas!

De alto a baixo 

um veio as desune, 

as distingue, 

as separa e arredonda 

como a dois esbeltos, firmes corpos… 

 

 

Apesar do título, e deste início, não é o erotismo o que associamos à poesia de Irene Lisboa (1892-1958), e também não é do que trata o poema que escolhi trazer ao blog. Fala ele do corpo, sim, mas do seu envelhecimento, e da perda de préstimo para o amor.

 

Que é um corpo? 

Um dom que se oferece… 

…

Que é um corpo? 

Um dom… 

Ai, não é!

Os corpos, 

como as flores, as bravas, 

murcham, muitas vezes, 

ao Deus dará… 

 

 

Começa o poema numa ilusória narrativa, dando conta da volúpia daquelas manhãs, quando, ao despertar, o mundo parece perfeito…

 

Há pouco, 

ainda deitada, 

tinha, de um lado, 

a palizez do céu, 

e do outro 

uma espécie de labaredas 

sem cor…

umas vassouradas de sol.

…

Quedo-me a gozar 

esta doçura… 

esta vaga esplêndida 

de luz…

 

e neste langor chega a reflexão:

…

Desentorpeço-me. 

Arredo de mim a roupa.

Olho-me.

Que é um corpo? 

…

Um dom? 

Não, um castigo!

 

 

Esta exclamação explica a leitura do amor feita por Irene Lisboa:

…

Amor! 

Quanto te encantas 

com as graças recatadas

dos gestos,

das formas,

da vida do corpo…

Com tudo te prendes! 

Amor! 

Que é para ti o corpo?

Uma violenta sedução, 

de que logo te enfastias… 

Amor, tão cruel! 

Passas e não deixas sinal… 

Amor! 

…

 

 

Esclarecido, mas não convencido (ver nota iconográfica), levo-o(a), leitor(a), ao poema que ao longo da conversa retalhei:

outro dia

 

Que quietação 

depois destas manhãs

e destas tardes de vento! 

Quedo-me a gozar 

esta doçura… 

esta vaga esplêndida 

de luz…

 

Há pouco, 

ainda deitada, 

tinha, de um lado, 

a palizez do céu, 

e do outro 

uma espécie de labaredas 

sem cor…

umas vassouradas de sol.

 

Desentorpeço-me. 

Arredo de mim a roupa.

Olho-me.

Que é um corpo? 

Um dom que se oferece… 

Que é um corpo? 

Um mar morto… 

Que é um corpo? 

Um tronco, 

uma planta de pé delgado, 

que alarga

e lança de si dois ramos,

os braços…

 

As pernas são belas, 

quando juntas. 

Que beleza a das pernas!

De alto a baixo 

um veio as desune, 

as distingue, 

as separa e arredonda 

como a dois esbeltos, firmes corpos… 

 

Que é um corpo? 

Um dom… 

Ai, não é!

Os corpos, 

como as flores, as bravas, 

murcham, muitas vezes, 

ao Deus dará… 

Como os seixos, 

rolados e confundidos 

entre algas e outros seixos, 

passam despercebidos… 

Um dom? 

Não, um castigo!

 

Amor! 

Quanto te encantas 

com as graças recatadas

dos gestos,

das formas,

da vida do corpo…

Com tudo te prendes! 

Amor! 

Que é para ti o corpo?

Uma violenta sedução, 

de que logo te enfastias… 

Amor, tão cruel! 

Passas e não deixas sinal… 

Amor! 

 

O pobre seixo, 

a flor que não animaste,

vivem

com aquela beleza 

e aquela tristeza 

dos sempre esquecidos…

Vivem!

 

in Poesia I, um dia e outro dia… e outono havias de vir, Editorial Presença, Lisboa 1991.

 

 

Nota iconográfica

 

Abre o artigo a imagem de uma obra de K B Brehmer (1938-1997), Aufsteller 13, de 1965. Trata-se de uma impressão sobre cartão laminado e dobrado, acrescentado de uma caixa.

O corpo feminino como escultura, vendido em embalagem de cartão, é uma outra medida da ilusão entre corpo, amor/desejo, e o seu uso.

É recorrente trazer ao blog abordagens de amor, desejo, beleza física, e a conveniência da lucidez sobre o seu valor. De modo nenhum acontece o que diz o poema:

…

Que é para ti o corpo?

Uma violenta sedução, 

de que logo te enfastias… 

Amor, tão cruel! 

Passas e não deixas sinal… 

Amor! 

…

 

Só mais um exemplo: no filme The Wife, agora em circulação, ele, amor e desejo, são subjacentes à história. Lamentavelmente, uma boa história, e porque cinematograficamente mal contada, apesar da excelente interpretação de Glenn Close, um filme falhado.

 

 

 

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Coisas da Terra — um poema de Irene Lisboa

05 Sexta-feira Jan 2018

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Adília Lopes, Bela Kadar, Irene Lisboa

Estava há dias a ler a poesia de Adília Lopes (1960) e dei comigo a pensar quanto aqueles relatos da trivialidade dos dias e do existir são filhos directos da poesia de Irene Lisboa (1892-1958). Não evidentemente o afogueamento sexual que a certa altura atravessou a poesia de Adília Lopes, e lhe trouxe a notoriedade aureolada de escândalo, mas os tantas vezes comoventes incidentes da vida que acabam por determinar uma individualidade. Se outro dia irei à poesia de Adília Lopes, hoje transcrevo um poema de Irene Lisboa, Coisas da Terra, denso dessas implicações, em que as circunstâncias do existir ditam uma vida. Na economia da sua enunciação, lemos como a envolvente exterior determina quem afinal somos.

 

 

Coisas da Terra

A Engrácia e a mãe
chegaram numa tarde de domingo.
A Engrácia é minha sobrinha
e a mãe,
que eu ainda só vira duas vezes,
minha irmã.
Minha irmã…
uma pobre mulher,
uma simpática desconhecida
que vem ao hospital ver o marido.

Esta é minha gente.
Penso da mulher:
parecemo-nos.
Temos os mesmos olhos e boca,
o mesmo nascimento de cabelos.

Oito filhos teve já a minha irmã.
Uma filha que lhe morreu
levou o meu nome.
Este mistério que sou!
Filha de outro pai,
noutra terra criada,
lá vivida!

Dou pão com manteiga à Engrácia,
que não diz nada.
A mãe fala.
É o campo toda ela,
o seu cheiro até
e a sua resignação.
Conta coisas do António,
o meu sobrinho mais velho,
com o seu exame feito
e tão amigo de ler…
Mãe! coitada, penso.
Oiço-a,
esquecida do nosso parentesco.
As duas ali estão:
a criança vestidinha à cidade,
a mulher humilde e amável.
Tudo tão natural e pobre!

 

Assinado João Falco
Publicado pela primeira vez em Seara Nova, 1940.
Transcrito de Irene Lisboa, Folhas Soltas da Seara Nova (1929-1955), Antologia, prefácio e notas de Paula Mourão, INCM, Lisboa, 1986.

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Bela Kadar (1877-1955).

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Canto – um poema de amor de Irene Lisboa (talvez esquecido)

25 Segunda-feira Mar 2013

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Irene Lisboa

Klimt_Gustav-Hope_II

Já tinha alguns anos de publicação em livro a obra poética de Irene Lisboa (1892-1958) quando este exultante poema de entrega ao amor surgiu numa revista em 1944.

… e o vento,
o vento dos altos a que me dei,
a ti me trouxe
a ti me entregou.
Se em mim já estavas!
Pela boca, pelos olhos e pelas mãos,
arreigado e voraz,
meu invasor enternecido.
…

Desenvolve-se o poema, e mais à frente, na ênfase do verso repetido, regressa a força da entrega à paixão:

…
Mas o vento…
o vento dos altos a que me dei,
mais do que o resto a ti me trouxe,
a ti me entregou.
Como se eu te esperasse
e te pudesse fugir,
sôfrego quiseste-me prender.
Eu presa já estava…
…

Mas a longa,
a magnânima tarde
não me concedeu asas…
Por isso a minha mão dentro da tua,
sensível e cativa,
te disse, te repetiu longamente, à saciedade,
o que bem querias saber
e até o que sentias.
Te confessou quanto lhe pediste.

Na emoção do encontro e do afastamento seguimos pelos versos decantados onde o amor escorre em palavras de desejo e resignação.

…
Cinco vidas…
Mas uma, apenas, ardente, violenta e dissipada,
uma só não te bastaria?
Uma,
quintuplicada, centuplicada na hora inefável,
no momento embriagado…
Uma, para me dares, para eu de ti receber,
vergada, sucumbida?
…

É, sem duvida, um belo poema de amor, e dorme nas páginas esquecidas de uma revista literária hoje rara.

Podemos procurar com lupa até encontrar tão eloquente evocação poética de um beijo ardente quanto esta:

…
Ou, sequer, a lembrança inconfundível
do repente doce e acre
em que me beijaste,
como se eu fosse uma folha,
uma baga de árvore
e tu uma rajada.
Em que me aspiraste
ou em que me sorveste…
Não me ficaria a boca em sangue?
Deixaste-me,
deixaste a tua escrava um pouco atemorizada,
meu senhor.
…

A este poema aplicam-se como luva as palavras de José Gomes Ferreira escritas num prefácio a umas “Poesias completas de Irene Lisboa” que nunca se publicaram: …tema do Amor que é um dos mais difíceis de analisar na poesia de Irene Lisboa porque, no fim de contas, reflecte o que existe no espírito e no corpo de todas as mulheres e a grande poetisa dos Pequenos Poemas Mentais tentava dia a dia, desencantar e exprimir sem o reduzir à resignação biológica feminina mais ou menos alindada com palavras de galanteio suficientes.

Sendo a obra poética de Irene Lisboa hoje praticamente desconhecida, e encontrar os seus livros tarefa beneditina de pesquisa em alfarrabistas, vale talvez a pena transcrever o que sobre a obra diz Jorge de Sena em Líricas Portuguesas III, onde republicou os Pequenos Poemas Mentais acima referidos:

“É hoje considerada um dos grandes escritores portugueses, pela originalidade incomparável do seu estilo e da sua personalidade, tendo criado uma vasta obra que se destaca pela delicadeza e subtileza de tom e por uma ironia discretamente desapegada e lúcida, mas no fundo aberta a uma ternura selvagem, uma humanidade áspera, uma ácida doçura.
Os seus poemas pouco publicados em livro e dispersos, porém— e toda a sua prosa possui um timbre da mais límpida poesia, uma poesia ao mesmo tempo finamente civilizada e acremente campestre —, através do requinte de uma consumada arte do ocasional e do momentâneo, igualmente constituem, no seu aspecto aparentemente descosido, e vagamente meditativo, a afirmação de uma das mais notáveis figuras líricas contemporâneas: lirismo feminino que é plácida desenvoltura de um espírito implacável, indomitamente livre e liberto.“

Deixo-vos com o poema.

CANTO

… e o vento,
o vento dos altos a que me dei,
a ti me trouxe
a ti me entregou.
Se em mim já estavas!
Pela boca, pelos olhos e pelas mãos,
arreigado e voraz,
meu invasor enternecido.

*

Cinco vidas, nada menos,
cinco vidas querias ter.
Cinco vidas…
Mas uma, apenas, ardente, violenta e dissipada,
uma só não te bastaria?
Uma,
quintuplicada, centuplicada na hora inefável,
no momento embriagado…
Uma, para me dares, para eu de ti receber,
vergada, sucumbida?
É primavera! saíu-me da boca.
E tu sorriste.
Sorriste, creio.
Primavera e todas as estações…
Chuva e sol, tempo sem idade.

*

Aqueles suaves, langues verdes, tão cariciosos;
os redondos troncos
e os musgos fofos;
os melros agrestes
e as campainhas roxas daquelas flores da minha infância,
de que me ensinaste o nome tão doce, tão estranho…
E as loucas nuvens corredias
e as pedras hieráticas
e as veredas amáveis,
como se os ofereciam!
Amavam-nos,
Não o viste?
No passo certo em que ambos íamos
tudo, tudo nos prendia
e nós tudo deixávamos.
Mas o vento…
o vento dos altos a que me dei,
mais do que o resto a ti me trouxe,
a ti me entregou.
Como se eu te esperasse
e te pudesse fugir,
sôfrego quiseste-me prender.
Eu presa já estava…

*

E assim continuámos.

*

Aquela hora não esquece.
Não pode esquecer,
nem se repete.

*

Mudarás tu ou mudarei eu.
O mundo acena-te.
E não se é nada…
Mas a hora, a hora, a hora tão cobiçada,
a hora que chegou,
passando, não passa…
morrendo, ficou…
Nos ramos,
nas heras luzentes,
na chuvinha suspensa,
nas voltas do caminho,
na frescura aspirada,
na solidão alegríssima e confidente,
em ti e em mim.
Ficou.
Está.
Mas a ninguém o confesses
nem disso te convenças.

*

Permanece,
está naquelas flores rosadas,
quasi sem cor, dos lindos arbustos…
Tornaremos jamais a vê-los sem nos lembrarmos?
Eles… somos nós passando,
Tu, silencioso;
eu, aconchegada.
Na tua mão quente,
a minha, presa e enraizada,
tão segura e tão confiante,
era uma dádiva.
Naquele breve momento
tu a recebias e guardavas.

*

Assim, inteira, a mim me guardasses!

*

Ou, sequer, a lembrança inconfundível
do repente doce e acre
em que me beijaste,
como se eu fosse uma folha,
uma baga de árvore
e tu uma rajada.
Em que me aspiraste
ou em que me sorveste…
Não me ficaria a boca em sangue?
Deixaste-me,
deixaste a tua escrava um pouco atemorizada,
meu senhor.
Se eu pudesse voar,
soltar-me dos teus braços,
iria como um pássaro, receoso e deslumbrado,
de árvore em árvore, de ramo em ramo,
sem nada ver, tonto, tonto,
até que de novo o chamasses.

*

Mas a longa,
a magnânima tarde
não me concedeu asas…
Por isso a minha mão dentro da tua,
sensível e cativa,
te disse, te repetiu longamente, à saciedade,
o que bem querias saber
e até o que sentias.
Te confessou quanto lhe pediste.

Publicado no nº4 da revista Litoral em 1944.

Breve comentário bibliográfico.

A mais recente edição das obras de Irene Lisboa, de meu conhecimento, data da década de 90 e foi publicada pela Editorial Presença sob direcção de Paula Morão. Nesta edição, a poesia de Irene Lisboa, publicada originalmente em livro com o pseudónimo de João Falco, foi reunida no volume I, poesia I, com o título: um dia e outro dia… outono havias de vir. E por aqui ficou, que eu saiba. Houve um prometido volume de poesia inédita que não viu a luz do dia, suponho, e a poesia dispersa por publicações periódicas não foi objecto de qualquer recolha.

A organizadora da edição mencionada defendeu uma peregrina tese de doutoramento que publicou em livro, IRENE LISBOA vida e escrita, Editorial Presença, Lisboa, 1989, onde tratando da relação vida/escrita da mulher, consegue passar completamente ao lado da poesia de Irene Lisboa, quase como se esta fosse marginal à obra e não criação paralela à prosa ao longo da vida literária.

Na verdade a obra poética, dispersa (a partir de 1940 Irene Lisboa nunca mais publicou poesia em livro) exige primeiro a sua recolha para depois sobre ela reflectir. Mas numa obra literária onde a poesia conhecida surge a cada passo como voz interior que se liberta, pretender dissecar vida e escrita passando-lhe ao lado, interroga-nos sobre o sentido da tarefa e conclusões, para dizer o mínimo.

Pesquisar esta poesia perdida dá trabalho. Que maçada! É tão mais fácil perorar sobre edições acessíveis. Enfim!

Venha o investigador sério e probo que meta mãos à tarefa e nos dê estes poemas que, pelo conhecido, se adivinham de enorme valor. Eu, leitor, agradeço.

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Apetecia-me escrever um belo verso – Irene Lisboa

20 Terça-feira Dez 2011

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Irene Lisboa, João Falco

Agora que o Outono se despede, apenas um poema de Irene Lisboa (1892-1958).

 

Apetecia-me escrever um belo verso.

Sonoro, elegante, correcto, de mármore!

Nele pôr o que outros me inspirassem.

O que ali aquele poeta estava cantando.

Ele o cantava e eu o repetia.

Acrescentava, desdobrava, acrescia da minha ansiedade.

Mas verso bem feito!

Cheio do que se sonha, não do que se sente.

Parece-me pobre o que sinto.

E vulgar.

Estes olhos que sem querer se envidraçam, fúteis, sem recato, infantis, esta voz

   [insegura, enfim, tudo isto…

Que figura iriam fazer dentro de um verso elegante, lapidar?

Belo verso trair-te-iam, roubar-te-iam toda a graça e até a ressonância, o êxtase

[e aquela espécie de embalo que ao espírito sempre dás.

Mas sinceramente me apetecia escrever um verso de mármore belo!

Tudo, tudo por causa daquele poema…

 

 Poema publicado por Irene Lisboa em Outono havias de vir latente e triste, com o pseudónimo de João Falco, Lisbos, Seara Nova, 1937.

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Outro dia, com Irene Lisboa

06 Domingo Fev 2011

Posted by viciodapoesia in Crónicas, Poetas e Poemas

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Irene Lisboa

Alguns escritores, talvez já aqui o tenha referido, desarmam-me quaisquer planos. É abrir-lhes um livro ao acaso e embalo na leitura, esquecido de compromissos ou obrigações. É o caso de Irene Lisboa.

Amanhecera azul num céu de Tiepolo e fui trabalhar de olhos cheios. A certa altura choveu sob o arco-iris e os suburbios-dormitório onde o trabalho me leva, ganharam um brilho transparente de cristal. Pareceram por momentos lugares onde apetecia viver.

Era dia de rua Irene Lisboa, e no infinito daquele subúrbio, lá apareceu entre lixo e grafitti, com edifícios pouco menos que degradados. Serão habitados por gente parente de quem a escritora fez a crónica, pensei.

Fiz o que precisava, e no regresso fui à sua poesia. Aqui fica apenas um poema:

outro dia

Ontem,

cansada, cansada,

cheguei a casa,

à noite.

O céu estava limpo.

Cheguei à porta e olhei,

antes de entrar.

Lá em baixo,

nem perto nem longe,

no escuro,

luziam uns pingos…

Caíam rectos

e brilhantes

na água…

Deixavam um rasto!

Os meus olhos riram,

vendo-os

imobilizaram-se.

E tive desejos

de seguir pelas ruas,

de cabeça no ar,

com um riso parado…

Mas subi as escadas.

Lisboa 1935

O poema encerra o livro um dia e outro dia…. A versão transcrita é a do vol I das Obras de Irene Lisboa organizada por Paula Morão e publicada pela Editorial Presença em 1991.

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