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As pernas são belas, 

quando juntas. 

Que beleza a das pernas!

De alto a baixo 

um veio as desune, 

as distingue, 

as separa e arredonda 

como a dois esbeltos, firmes corpos… 

 

 

Apesar do título, e deste início, não é o erotismo o que associamos à poesia de Irene Lisboa (1892-1958), e também não é do que trata o poema que escolhi trazer ao blog. Fala ele do corpo, sim, mas do seu envelhecimento, e da perda de préstimo para o amor.

 

Que é um corpo? 

Um dom que se oferece… 

Que é um corpo? 

Um dom… 

Ai, não é!

Os corpos, 

como as flores, as bravas, 

murcham, muitas vezes, 

ao Deus dará… 

 

 

Começa o poema numa ilusória narrativa, dando conta da volúpia daquelas manhãs, quando, ao despertar, o mundo parece perfeito…

 

Há pouco, 

ainda deitada, 

tinha, de um lado, 

a palizez do céu, 

e do outro 

uma espécie de labaredas 

sem cor…

umas vassouradas de sol.

Quedo-me a gozar 

esta doçura… 

esta vaga esplêndida 

de luz…

 

e neste langor chega a reflexão:

Desentorpeço-me. 

Arredo de mim a roupa.

Olho-me.

Que é um corpo? 

Um dom? 

Não, um castigo!

 

 

Esta exclamação explica a leitura do amor feita por Irene Lisboa:

Amor! 

Quanto te encantas 

com as graças recatadas

dos gestos,

das formas,

da vida do corpo…

Com tudo te prendes! 

Amor! 

Que é para ti o corpo?

Uma violenta sedução, 

de que logo te enfastias… 

Amor, tão cruel! 

Passas e não deixas sinal… 

Amor! 

 

 

Esclarecido, mas não convencido (ver nota iconográfica), levo-o(a), leitor(a), ao poema que ao longo da conversa retalhei:

outro dia

 

Que quietação 

depois destas manhãs

e destas tardes de vento! 

Quedo-me a gozar 

esta doçura… 

esta vaga esplêndida 

de luz…

 

Há pouco, 

ainda deitada, 

tinha, de um lado, 

a palizez do céu, 

e do outro 

uma espécie de labaredas 

sem cor…

umas vassouradas de sol.

 

Desentorpeço-me. 

Arredo de mim a roupa.

Olho-me.

Que é um corpo? 

Um dom que se oferece… 

Que é um corpo? 

Um mar morto… 

Que é um corpo? 

Um tronco, 

uma planta de pé delgado, 

que alarga

e lança de si dois ramos,

os braços…

 

As pernas são belas, 

quando juntas. 

Que beleza a das pernas!

De alto a baixo 

um veio as desune, 

as distingue, 

as separa e arredonda 

como a dois esbeltos, firmes corpos… 

 

Que é um corpo? 

Um dom… 

Ai, não é!

Os corpos, 

como as flores, as bravas, 

murcham, muitas vezes, 

ao Deus dará… 

Como os seixos, 

rolados e confundidos 

entre algas e outros seixos, 

passam despercebidos… 

Um dom? 

Não, um castigo!

 

Amor! 

Quanto te encantas 

com as graças recatadas

dos gestos,

das formas,

da vida do corpo…

Com tudo te prendes! 

Amor! 

Que é para ti o corpo?

Uma violenta sedução, 

de que logo te enfastias… 

Amor, tão cruel! 

Passas e não deixas sinal… 

Amor! 

 

O pobre seixo, 

a flor que não animaste,

vivem

com aquela beleza 

e aquela tristeza 

dos sempre esquecidos…

Vivem!

 

in Poesia I, um dia e outro dia… e outono havias de vir, Editorial Presença, Lisboa 1991.

 

 

Nota iconográfica

 

Abre o artigo a imagem de uma obra de K B Brehmer (1938-1997), Aufsteller 13, de 1965. Trata-se de uma impressão sobre cartão laminado e dobrado, acrescentado de uma caixa.

O corpo feminino como escultura, vendido em embalagem de cartão, é uma outra medida da ilusão entre corpo, amor/desejo, e o seu uso.

É recorrente trazer ao blog abordagens de amor, desejo, beleza física, e a conveniência da lucidez sobre o seu valor. De modo nenhum acontece o que diz o poema:

Que é para ti o corpo?

Uma violenta sedução, 

de que logo te enfastias… 

Amor, tão cruel! 

Passas e não deixas sinal… 

Amor! 

 

Só mais um exemplo: no filme The Wife, agora em circulação, ele, amor e desejo, são subjacentes à história. Lamentavelmente, uma boa história, e porque cinematograficamente mal contada, apesar da excelente interpretação de Glenn Close, um filme falhado.