• Autor
  • O Blog

vicio da poesia

Tag Archives: Adília Lopes

O mundo poético de Adília Lopes

27 Quarta-feira Mar 2019

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa do sec. XX

≈ Deixe um comentário

Etiquetas

Adília Lopes

Hoje leio a poesia de Adília Lopes(1960) publicada em livro entre 1985 e 2014 e reunida pela própria no volume Dobra.

Estes poemas são um mundo feminino onde entro pé ante pé. Povoados de parentela, criadas, e amizades dúbias, são quase sempre poemas narrativos onde os homens por vezes surgem, quais fantasmas fálicos. Lendo as histórias que contam interrogo-me entre espanto e perplexidade: será assim? Aceito que seja.

Historietas contadas com desenvoltura e economia, são, na maior parte das vezes, platitudes à procura da poesia, ex:

…
então vamos comer um gelado
eu não vou eu digo
apetece-me um gelado
mas não como disse-me ela
o que é que se pode fazer
com uma rapariga destas?

 

com uma que outra piscadela de olho ao conhecimento cultural do leitor. Acontece surgir aqui e ali uma quadro sociológico ou mental dado com nervo e precisão cirúrgica, o que nos redime da leitura.

Num mundo de bonecas e bordados irrompe a certa altura o sexo, desbragado e explícito, não já as brincadeiras adolescentes, ora incestuosas ora homoeroticas que por lá andavam, mas a fome primordial de gozo, intensa e voraz. Os poemas com esta sexualidade ávida ficam hoje de fora. Outro dia a eles irei.

Quando não são narrativos, os poemas, surgem aforismos e sentenças, onde interrogações não existem. Eis uma escolha.

 

Os poemas seguem, cada um separado por um * e indicação da primeira publicação em livro.

 

*
Não busco
o tempo
perdido
porque
é o tempo
perdido
que vem
ter comigo

Reencontrado

o tempo
acaba
o tormento

Fica

espaço
para
o Verão

O mar

é verde
amplia
o meio-dia
in César a César, 1.ª edição & etc, 2003.

 

 

*
Debaixo
do vulcão
está o retrato
do artista
quando
jovem cão
in Sete Rios Entre Campos, 1.ª edição & etc, 1999.

 

 

*
O passado
é barro
como o futuro

O presente

é água
como a morte

 

 

*
O passado
é plasticina
como o futuro

O futuro

é carnificina
in Le Vitrail La Nuit * A Árvore Cortada, 1.ª edição & etc, 2006.

 

 

*
1
Tudo muda
Deus não muda

2

As mudas
saltam
as coxas
coaxam

3

Não é tarde
é só
de tarde

 

 

*
Está
certo
o que está
perto

Não quero

ser monge
longe
mas hoje
in Os Namorados Pobres, 1.ª edição Assírio & Alvim, 2009.

 

 

Depois destes aforismos, sentenças, e piscadelas de olho, entremos no mundo feminino:

 

 

*
Eu realmente falo muito
em raparigas
ora as raparigas
haverá excepções
foram sempre muito minhas amigas
da onça
um dia convidei uma
para morrer comigo
hei-de tentar entrar na morte
a dançar disse-lhe eu
ela disse-me o que tu dizes
não se escreve
pois não não lhe disse eu
e o que eu escrevo não se diz
então vamos comer um gelado
eu não vou eu digo
apetece-me um gelado
mas não como disse-me ela
o que é que se pode fazer
com uma rapariga destas?
in Um Jogo bastante perigoso, 1.ª edição: da Autora, 1985.

 

 

*
A Salada com molho cor-de-rosa

1
Conheci a Magda na praia
na praia é uma metáfora obscena
que como as outras metáforas obscenas
pode ser usada quer como eufemismo
quer como insulto
conheço por experiência própria
os dois usos da expressão
na praia

2

Eu gosto de me fazer passar
por uma rapariga ordinária
a Magda era mesmo ordinária
a princípio era isto o que mais
me atraía nela depois foi isto
o que sobretudo me desgostou dela

3

As minhas relações com a Magda
de deliciosas passaram a promíscuas
aconteceu-me
o que me tinha acontecido
quando comi salada com molho cor-de-rosa
ao princípio
a salada era deliciosa por causa do molho
depois comecei a perceber
que era mil vezes melhor
estar a comer os vegetais
sem molho do que com molho
o molho impedia-me de comer os vegetais
com gosto
desgostava-me da vida

4

Vivia com a Magda
num quarto de duas camas
quando eu chegava ao quarto
a Magda estava deitada na minha cama
numa posição de Maja desnuda
mas vestida
o que ainda era pior
outras vezes encontrava-a
sentada na minha cadeira
a folhear os meus livros
e a chupar os dedos

5

A Magda era uma intrusa
depois de ter sido um ser envoûtant
quer como intrusa
quer como ser envoûtant
ela era para mim
uma fonte de perturbação

6

Eu não era casta
não porque me entregasse
com a Magda
(que era aliás uma praticante profissional do safismo)
a um prazer que alguns dizem vicioso
(só lhe toquei uma vez
sem querer
e pedi-lhe automaticamente desculpa)
mas porque com a Magda
não tinha prazer nenhum

7

(Acho que o prazer é casto
o que não é casto
é o simulacro do prazer
ou a renúnica ao prazer
tanto o simulacro
como a renúncia)

8

Um dia voltei ao quarto
e a Magda tinha desaparecido
sem deixar marcas
custou-me não encontrar
o chiqueiro próprio da Magda
os meus cigarros fumados
o meu cinzeiro cheio de beatas
sujas de bâton
(que me faziam lembrar
dentes cuspidos após uma briga)
o Las Moradas
antes do Calculus I
na minha estante
quando eu me habituei
a pôr esses livros por ordem inversa

9

O que me custou
foi tudo ter acabado
como tinha começado
como se nada se tivesse passado
durante
ora o que se passou durante
ainda hoje me incomoda
e portanto deve ter acontecido
in Um Jogo bastante perigoso, 1.ª edição: da Autora, 1985.

 

 

*
Aproveitaram a esperada
ausência das tias
para a sete chaves
se fecharem no quarto
mais húmido da casa
aí a sete chaves
elas fizeram-se comer uma à outra
bombons
in A Pão e Água de Colónia, 1.ª edição: Frenesi, 1987.

 

 

*
A Desobediência Castigada

Não foi culpa minha
se caí na selha e se meu irmão
correu para dentro a chamar
o criado que a mana estava
a molhar os vestidos quando eu
estava mas era a afogar-me
não foi culpa minha
se desobedeci a minha mãe
por sem sua licença passar a ferro
o vestido azul da boneca e assim
fazer no pulso com o ferro em brasa
uma queimadura rubra e sépia
como uma pétala de rosa macerada
que escondi com um lenço que anda
a menina a esconder com o seu lenço
nada minha mãe nada é uma arranhadela
que o gato arranhou por o não querer largar eu
não foi culpa minha
se a criada esqueceu a porta das traseiras
aberta e eu tropecei no degrau
e caí no lajedo e parti a cabeça
para ainda hoje trazer na testa
uma cicatriz que disfarço
com uma madeixa de cabelo
não foi culpa minha
se porém sempre por desobediência
minha mãe me privou da sobremesa
in O Decote da Dama de Espadas (romances), 1.ª edição: Gota de Água / Imprensa Nacional, 1988.

 

 

*
Lucinda e Madame Palmira

Onde estará
mas onde estará
o chapéu da boneca Lucinda?
aquele chapéu com uma peninha branca
e laços de veludo preto
que madame Palmira
costurou por graça
para a sobrinha da sua cliente dilecta?
madame Palmira começou por ser
ajudante de alfaiate
mas deixou de o ser quando
um cliente
durante uma prova de fraque
fez uma coisa que ela interpretou
como um atentado ao pudor
tornou-se modista de senhoras
mas de uma vez espetou
inadvertidamente
um alfinete num sovaco
(o que causou uma infecção
que embora sem gravidade
lhe fez perder a clientela)
foi assim que madame Palmira
se decidiu pelos chapéus
prova-os em manequins italianos
de celulóide
madame Palmira tem um espírito
minucioso
gosta de miniaturas
mas também com a boneca Lucinda
parece não ter sorte
pois o chapéu
sim esse chapéu de peninha branca
e laços de veludo preto
pelos vistos
desapareceu
in O Decote da Dama de Espadas (romances), 1.ª edição: Gota de Água / Imprensa Nacional, 1988.

 

 

*
A Ladainha minha

Há cem anos
que bordamos
os nossos enxovais
para nenhuma boda
nos nossos quartos
fechados à chave
os nossos noivos
enviuvaram
e andam pelo terreiro
vestidos de preto
com um fumo no braço
e cravo branco murcho
na lapela
as nossa mães
deixaram-nos
a bordar
em silêncio
os nossos enxovais
de brancos que foram sendo
fizeram-se amarelos
como crisântemos
eu e minhas irmãs
choramos a nossa sorte
copiosamente a fio
dia após dia
o pavio das nossas velas
esfuma-se
as nossas lágrimas
grossas como punhos
formam uma ribeira
que corre para o nosso mar
e o nosso mar?
in Os Cinco Livros de Versos Salvaram o Tio, 1.ª edição: da Autora, 1991.

 

 

Vai longo o artigo, e mais escolher dificilmente traria outra perspectiva a este corpus poético, além da temática de sexualidade activa e explícita que deliberadamente hoje deixei de fora.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura, óleo sobre tela, de James Rosenquist (1933-2017) Cão descendo as escadas de 1979, pertença de colecção privada.

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Partilhar no Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

Coisas da Terra — um poema de Irene Lisboa

05 Sexta-feira Jan 2018

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

≈ 1 Comentário

Etiquetas

Adília Lopes, Bela Kadar, Irene Lisboa

Estava há dias a ler a poesia de Adília Lopes (1960) e dei comigo a pensar quanto aqueles relatos da trivialidade dos dias e do existir são filhos directos da poesia de Irene Lisboa (1892-1958). Não evidentemente o afogueamento sexual que a certa altura atravessou a poesia de Adília Lopes, e lhe trouxe a notoriedade aureolada de escândalo, mas os tantas vezes comoventes incidentes da vida que acabam por determinar uma individualidade. Se outro dia irei à poesia de Adília Lopes, hoje transcrevo um poema de Irene Lisboa, Coisas da Terra, denso dessas implicações, em que as circunstâncias do existir ditam uma vida. Na economia da sua enunciação, lemos como a envolvente exterior determina quem afinal somos.

 

 

Coisas da Terra

A Engrácia e a mãe
chegaram numa tarde de domingo.
A Engrácia é minha sobrinha
e a mãe,
que eu ainda só vira duas vezes,
minha irmã.
Minha irmã…
uma pobre mulher,
uma simpática desconhecida
que vem ao hospital ver o marido.

Esta é minha gente.
Penso da mulher:
parecemo-nos.
Temos os mesmos olhos e boca,
o mesmo nascimento de cabelos.

Oito filhos teve já a minha irmã.
Uma filha que lhe morreu
levou o meu nome.
Este mistério que sou!
Filha de outro pai,
noutra terra criada,
lá vivida!

Dou pão com manteiga à Engrácia,
que não diz nada.
A mãe fala.
É o campo toda ela,
o seu cheiro até
e a sua resignação.
Conta coisas do António,
o meu sobrinho mais velho,
com o seu exame feito
e tão amigo de ler…
Mãe! coitada, penso.
Oiço-a,
esquecida do nosso parentesco.
As duas ali estão:
a criança vestidinha à cidade,
a mulher humilde e amável.
Tudo tão natural e pobre!

 

Assinado João Falco
Publicado pela primeira vez em Seara Nova, 1940.
Transcrito de Irene Lisboa, Folhas Soltas da Seara Nova (1929-1955), Antologia, prefácio e notas de Paula Mourão, INCM, Lisboa, 1986.

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Bela Kadar (1877-1955).

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Partilhar no Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

St. Valentine’s Day segundo Adília Lopes

14 Domingo Fev 2016

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

≈ 2 comentários

Etiquetas

Adília Lopes

Maria Noma Bliss - CoupleNa poesia de Adília Lopes (1960), obsessivamente prosaica na formulação, frequentemente epigramática no conteúdo, atravessada pela ausência do par, e onde o desconsolo de viver é uma constante, surge esta floração sobre o amor para o Dia dos Namorados:

 

 

St. Valentine’s Day

 

To Michael

 

Roses are red

Violetas are blue

Love is gold

To the happy few

 

in A mulher-a-dias, & etc, 2002

 

Transcrito de Dobra, Poesia Reunida 1983-2014, Assírio & Alvim, 2014.

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Partilhar no Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

Visitas ao Blog

  • 2.060.413 hits

Introduza o seu endereço de email para seguir este blog. Receberá notificação de novos artigos por email.

Junte-se a 874 outros subscritores

Página inicial

  • Ir para a Página Inicial

Posts + populares

  • A valsa — poema de Casimiro de Abreu
  • Camões - reflexões poéticas sobre o desconcerto do mundo
  • Eugénio de Andrade — Green god

Artigos Recentes

  • Sonetos atribuíveis ao Infante D. Luís
  • Oh doce noite! Oh cama venturosa!— Anónimo espanhol do siglo de oro
  • Um poema de Salvador Espriu

Arquivos

Categorias

Site no WordPress.com.

  • Seguir A seguir
    • vicio da poesia
    • Junte-se a 874 outros seguidores
    • Already have a WordPress.com account? Log in now.
    • vicio da poesia
    • Personalizar
    • Seguir A seguir
    • Registar
    • Iniciar sessão
    • Denunciar este conteúdo
    • Ver Site no Leitor
    • Manage subscriptions
    • Minimizar esta barra
 

A carregar comentários...
 

    %d bloggers gostam disto: