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Estava há dias a ler a poesia de Adília Lopes (1960) e dei comigo a pensar quanto aqueles relatos da trivialidade dos dias e do existir são filhos directos da poesia de Irene Lisboa (1892-1958). Não evidentemente o afogueamento sexual que a certa altura atravessou a poesia de Adília Lopes, e lhe trouxe a notoriedade aureolada de escândalo, mas os tantas vezes comoventes incidentes da vida que acabam por determinar uma individualidade. Se outro dia irei à poesia de Adília Lopes, hoje transcrevo um poema de Irene Lisboa, Coisas da Terra, denso dessas implicações, em que as circunstâncias do existir ditam uma vida. Na economia da sua enunciação, lemos como a envolvente exterior determina quem afinal somos.

 

 

Coisas da Terra

A Engrácia e a mãe
chegaram numa tarde de domingo.
A Engrácia é minha sobrinha
e a mãe,
que eu ainda só vira duas vezes,
minha irmã.
Minha irmã…
uma pobre mulher,
uma simpática desconhecida
que vem ao hospital ver o marido.

Esta é minha gente.
Penso da mulher:
parecemo-nos.
Temos os mesmos olhos e boca,
o mesmo nascimento de cabelos.

Oito filhos teve já a minha irmã.
Uma filha que lhe morreu
levou o meu nome.
Este mistério que sou!
Filha de outro pai,
noutra terra criada,
lá vivida!

Dou pão com manteiga à Engrácia,
que não diz nada.
A mãe fala.
É o campo toda ela,
o seu cheiro até
e a sua resignação.
Conta coisas do António,
o meu sobrinho mais velho,
com o seu exame feito
e tão amigo de ler…
Mãe! coitada, penso.
Oiço-a,
esquecida do nosso parentesco.
As duas ali estão:
a criança vestidinha à cidade,
a mulher humilde e amável.
Tudo tão natural e pobre!

 

Assinado João Falco
Publicado pela primeira vez em Seara Nova, 1940.
Transcrito de Irene Lisboa, Folhas Soltas da Seara Nova (1929-1955), Antologia, prefácio e notas de Paula Mourão, INCM, Lisboa, 1986.

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Bela Kadar (1877-1955).