Etiquetas
Alguns escritores, talvez já aqui o tenha referido, desarmam-me quaisquer planos. É abrir-lhes um livro ao acaso e embalo na leitura, esquecido de compromissos ou obrigações. É o caso de Irene Lisboa.
Amanhecera azul num céu de Tiepolo e fui trabalhar de olhos cheios. A certa altura choveu sob o arco-iris e os suburbios-dormitório onde o trabalho me leva, ganharam um brilho transparente de cristal. Pareceram por momentos lugares onde apetecia viver.
Era dia de rua Irene Lisboa, e no infinito daquele subúrbio, lá apareceu entre lixo e grafitti, com edifícios pouco menos que degradados. Serão habitados por gente parente de quem a escritora fez a crónica, pensei.
Fiz o que precisava, e no regresso fui à sua poesia. Aqui fica apenas um poema:
outro dia
Ontem,
cansada, cansada,
cheguei a casa,
à noite.
O céu estava limpo.
Cheguei à porta e olhei,
antes de entrar.
Lá em baixo,
nem perto nem longe,
no escuro,
luziam uns pingos…
Caíam rectos
e brilhantes
na água…
Deixavam um rasto!
Os meus olhos riram,
vendo-os
imobilizaram-se.
E tive desejos
de seguir pelas ruas,
de cabeça no ar,
com um riso parado…
Mas subi as escadas.
Lisboa 1935
O poema encerra o livro um dia e outro dia…. A versão transcrita é a do vol I das Obras de Irene Lisboa organizada por Paula Morão e publicada pela Editorial Presença em 1991.