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Conheço mal a obra de Jorge de Lima. De muito novo acompanha-me Essa Negra Fulô dito na voz de João Villaret e gravado num recital no Teatro S. Luis em Lisboa, em 1957 se não erro, recital esse editado em dois discos de vinil.
Nota: Há pequenas trocas na ordem porque os versos são ditos por Villaret em relação à versão impressa do poema que possuo e que aqui transcrevo.
Poema de onde sai um mundo, é um mundo apenas aparentemente extinto.
Hoje são outras as práticas e outras as relações de domínio entre seres humanos, mas a sua verdade, tão pungentemente aqui descrita, permanece.
Essa Negra Fulô
Ora, se deu que chegou
(isso já faz muito tempo)
no bangüê dum meu avô
uma negra bonitinha,
chamada negra Fulô.
Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!
Ó Fulô! Ó Fulô!
(Era a fala da Sinhá)
— Vai forrar a minha cama,
pentear os meus cabelos,
vem ajudar a tirar
a minha roupa, Fulô!
Essa negra Fulô!
Essa negrinha Fulô
ficou logo pra mucama,
pra vigiar a Sinhá
pra engomar pro Sinhô!
Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!
Ó Fulô! Ó Fulô!
(Era a fala da Sinhá)
vem me ajudar, ó Fulô,
vem abanar o meu corpo
que eu estou suada, Fulô!
vem coçar minha coceira,
vem me catar cafuné,
vem balançar minha rede,
vem me contar uma história,
que eu estou com sono, Fulô!
Essa negra Fulô!
“Era um dia uma princesa
que vivia num castelo
que possuía um vestido
com os peixinhos do mar.
Entrou na perna dum pato
saiu na perna dum pinto
o Rei-Sinhô me mandou
que vos contasse mais cinco.”
Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!
Ó Fulô? Ó Fulô?
Vai botar para dormir
esses meninos, Fulô!
“Minha mãe me penteou
minha madrasta me enterrou
pelos figos da figueira
que o Sabiá beliscou.”
Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!
Ó Fulô? Ó Fulô?
(Era a fala da Sinhá
Chamando a negra Fulô.)
Cadê meu frasco de cheiro
Que teu Sinhô me mandou?
— Ah! Foi você que roubou!
Ah! Foi você que roubou!
O Sinhô foi ver a negra
levar couro do feitor.
A negra tirou a roupa.
O Sinhô disse: Fulô!
(A vista se escureceu
que nem a negra Fulô.)
Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!
Ó Fulô! Ó Fulô!
Cadê meu lenço de rendas,
Cadê meu cinto, meu broche,
Cadê o meu terço de ouro
que teu Sinhô me mandou?
Ah! foi você que roubou.
Ah! foi você que roubou.
Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!
O Sinhô foi açoitar
sozinho a negra Fulô.
A negra tirou a saia
e tirou o cabeção,
de dentro dêle pulou
nuinha a negra Fulô.
Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!
Ó Fulô! Ó Fulô!
Cadê, cadê teu Sinhô
que Nosso Senhor me mandou?
Ah! Foi você que roubou,
foi você, negra fulô?
Essa negra Fulô!
Poesia multifacetada, tantas vezes coloquial, culmina em A Invenção de Orfeu, longo poema publicado em 1952, pouco antes da morte do poeta, e do qual disse João Gaspar Simões:
Tudo entra no poema de Jorge de Lima concebido na febre que exalta, no sonho que dilata, no transe que confunde. E o passado junta-se ao presente. Memória e invenção, sonho e realidade, história e futuro, infância e ancestralidade confundem-se, como se, em verdade, o poeta formasse com o seu poema uma espécie de caos preparatório de onde surgirá um dia uma ordem ideal.
Nos anos 30 do século XX o poeta converteu-se ao catolicismo reflectindo-se na sua poesia essa dimensão religiosa.
Rasto dessa conversão são os 2 poemas escolhidos a seguir.
Primeiro este A mão enorme guiando a nau da existência num dos grandes poemas da lingua portuguesa, onde à cadência do verso se une a meditação teológica do destino.
A mão enorme
Dentro da noite, da tempestade,
a nau misteriosa lá vai.
o tempo passa, a maré cresce,
o vento uiva.
A nau misteriosa lá vai.
Acima dela
que mão é essa maior que o mar?
Mão de piloto?
Mão de quem é?
A nau mergulha,
o mar é escuro,
o tempo passa.
Acima da nau
a mão enorme
sangrando está.
A nau lá vai.
O mar transborda,
as terras somem,
caem estrelas.
A nau lá vai.
acima dela
a mão eterna
lá está.
E este singular Inverno, onde, numa ligação à terra e à natureza tão característica da poesia brasileira antiga, e é o eco de Glaura de Manuel Inácio da Silva Alvarenga que me ressoa nesta Zefa com quem o poeta fala, também aqui temos no final a marca da devoção religiosa:
Mas tudo isso, Zefa, / vamos dizer, / só com os poderes / de Jesus Cristo!
Inverno
Zefa, chegou o inverno!
Formigas de asas e tanajuras!
Chegou o inverno!
Lama e mais lama
chuva e mais chuva, Zefa!
Vai nascer tudo, Zefa,
Vai haver verde,
verde do bom,
verde nos galhos,
verde na terra,
verde em ti, Zefa,
que eu quero bem!
Formigas de asas e tanajuras!
O rio cheio,
barrigas cheias,
mulheres cheias, Zefa!
Águas nas locas,
pitus gostosos,
carás, cabojés,
e chuva e mais chuva!
Vai nascer tudo
milho, feijão,
até de novo
teu coração, Zefa!
Formigas de asas e tanajuras!
Chegou o inverno!
Chuva e mais chuva!
Vai casar, tudo,
moça e viúva!
Chegou o inverno
Covas bem fundas
pra enterrar cana:
cana caiana e flor de Cuba!
Terra tão mole
que as enxadas
nelas se afundam
com olho e tudo!
Leite e mais leite
pra requeijões!
Cargas de imbu!
Em junho o milho,
milho e canjica
pra São João!
E tudo isto, Zefa…
E mais gostoso
que tudo isso:
noites de frio,
lá fora o escuro,
lá fora a chuva,
trovão, corisco,
terras caídas,
córgos gemendo,
os caborés gemendo,
os caborés piando, Zefa!
Os cururus cantando, Zefa!
Dentro da nossa
casa de palha:
carne de sol
chia nas brasas,
farinha d’água,
café, cigarro,
cachaça, Zefa…
…rede gemendo…
Tempo gostoso!
Vai nascer tudo!
Lá fora a chuva,
chuva e mais chuva,
trovão, corisco,
terras caídas
e vento e chuva,
chuva e mais chuva!
Mas tudo isso, Zefa,
vamos dizer,
só com os poderes
de Jesus Cristo!
Termino a escolha com Este Poema De Amor Não É Lamento
Este poema de amor não é lamento
Nem tristeza distante, nem saudade,
Nem queixume traído nem o lento
Perpassar da paixão ou pranto que há de
Transformar-se em dorido pensamento,
Em tortura querida ou em piedade
Ou simplesmente em mito, doce invento,
E exalta visão da adversidade.
É a memória ondulante da mais pura
E doce face (intérmina e tranqüila)
Da eterna bem-amada que eu procuro;
Mas tão real, tão presente criatura
Que é preciso não vê-la nem possuí-la
Mas procurá-la nesse vale obscuro.
Em nota final refiro que o espectáculo O Grande Circo Místico, de Edu Lobo e Chico Buarque de Hollanda, foi baseado na obra do poeta.
Reblogged this on Eu Vivo a Melhor Idade and commented:
O teMA É DATADO MAS SUPER INTERESSANTE
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Pingback: Nega Fulô « Marvada – O blog da cachaça
esse poema e outro mas eu conheçor por que eu sou da terra da liberdade eu vou fazer ou melhore recontar este poema lindo maravilhoso outra vez aqui mesmo wm união dos palmares na linda e maravilhosa terra da liberdade ande nasceu o famoso Jorge de Lima
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