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Estranha coisa esta, a poesia,
que vai entornando mágoa nas horas
como um orvalho morno escorrendo dos vidros
numa tarde incorpórea…
A obra em prosa de Fernando Namora (1919-1989) é um exemplo lapidar do efémero da fama e da volubilidade do gosto das multidões. Escritor de best-sellers, vendendo de cada obra aos milhares de exemplares, esgotando edições sucessivas, repousa hoje no mais absoluto esquecimento.
Tendo começado por publicar três livros de poesia (1938, 1940, 1941), reuniu uma escolha desses poemas com alguns inéditos num único volume — As Frias Madrugadas— e só cerca de trinta anos volvidos (Marketing, 1969) voltou a publicar novos poemas.
Esta obra poética permaneceu na sombra do sucesso da prosa. Folheio-a hoje e encontro alguns poemas que vale a pena conhecer.
Em inicio de percurso a desilusão com as mulheres em A outra canção perdida, embora com a porta aberta à esperança:
…
Apenas, do logro,
me resta o travo
dos desejos amargos,
…e ainda às vezes
aquela esperança enganosa
de que passe
quem nunca no meu caminho passou.
fecho o périplo com o lânguido abandono à desilusão em Alheamento, fazendo passagem pelo esperançoso sonho do amor em Balada de sempre.
A outra canção perdida
Das mulheres
que na minha vida passaram
ficou-me aquela lembrança
de um fio de areia
sobre o regato sedento,
de qualquer frase
que se ficou no tinteiro,
de um cigarro caro
que se não fumou além do meio,
de um grito rouco
gorado nos ouvidos,
de folhas de um diário inacabado
que o tempo desbotou,
de vinho
que não deixou nódoa no soalho…
Sinto a alma ávida
como sempre
e um cansaço inútil
de bater a tantas portas.
Apenas, do logro,
me resta o travo
dos desejos amargos,
…e ainda às vezes
aquela esperança enganosa
de que passe
quem nunca no meu caminho passou.
Balada de sempre
Espero a tua vinda,
a tua vinda,
em dia de lua cheia.
Debruço-me sobre a noite
inventando crescentes e luares.
Espero o momento da chegada
com o cansaço e o ardor de todas as chegadas.
Rasgarás nuvens, estradas,
abrindo clareiras
nas vielas de ciladas.
Saltarás por cima de mares,
de planícies e relevos
— ânsia alada
no meu desejo imaginada.
Mas…
enquanto deixo a janela aberta
para entrares,
o mar,
aí, além,
lambe-me os braços hirtos, braços verdes,
algas de sonho,
…e desenha ironias na areia molhada.
Alheamento
Meu corpo estiraçado, lânguido, ao longo do leito.
O cigarro vago azulando is dedos.
O rádio… a música… e as folhas murchas
caindo nas mãos do Outono.
E a tua presença que esvoaça
em torno do cigarro, da música, do Outono…
Ausência, minha doce fuga!
Estranha coisa esta, a poesia,
que vai entornando mágoa nas horas
como um orvalho morno escorrendo dos vidros
numa tarde incorpórea…
Termino com a invocação à mãe enquanto porto de abrigo para as desilusões da vida e a desistência de as enfrentar:
…
E sem uma crosta que me tornasse rijo,
nem lutei nem vivi;
fiquei quieto, absorto, em lágrimas
— e lá ao fundo esperavam-me valados
e chacais rancorosos.
Poema cansado de certos momentos
Foi-se tudo
como areia fina esgueirando-se pelos dedos.
Mãe! aqui me tens,
metade de mim,
sem saber que metade me pertence.
Aqui me tens,
de gestos saqueados,
onde resta a saudade de ti
e do mundo de medos.
Meus braços, vê-os, estão gastos
de pedir luz
e de roubar distâncias.
Meus braços
cruzados
em cruz de calvário dos meus degredos.
Aí que isto de correr pela vida,
desbaratando a riqueza que me deste,
de levar em cada beijo
a pureza que pariste e embalaste,
aí, mãe, só um louco ou um Messias
estendendo a face ao justo
para os homens cuspirem o fel das suas veias,
Só um louco, ou um porta ou um Cristo
poderá beijar as rosas que os espinhos sangram
e, embora rasgado, beber o perfume
e continuar cantando.
Mãe! tu nunca previste
as geadas e os bichos
roendo os campos adubados
e o vizinho largando a fúria dos rebanhos
pela erva menina dos meus prados.
E assim, geraste-me despido
como as ervas,
e não olhaste os picos nem as cobras,
verdes, viscosas, espreitando dos nichos.
De mão nua, entregaste-me ao destino.
Os anjos ficaram lá em cima, cobardes, ansiosos.
E sem uma crosta que me tornasse rijo,
nem lutei nem vivi;
fiquei quieto, absorto, em lágrimas
— e lá ao fundo esperavam-me valados
e chacais rancorosos.
Poemas transcritos de As Frias Madrugadas, Editora Arcádia, Lisboa s/d (1959).
São de pinturas de Bela Kadar (1877-1956) as imagens que acompanham o artigo.
Nossa! Amei esses poemas. Já tinha ouvido falar nesse autor mas não conhecia sua obra. Por coincidência, estou com um exemplar do livro Um homem disfarçado que ganhei e ainda não li. Sua postagem me despertou a curiosidade em conhecer esse autor. Parabéns pelo blog!
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O Homem Disfarçado, quando da sua edição em 1957 foi saudado por alguma critica como obra-prima, e o mesmo aconteceu com a posterior edição em francês. Se gostar, há outros romances e narrativas de ambiente urbano, posteriores, como Domingo à Tarde (que deu filme), Cidade Solitária, Rio Triste ou Resposta a Matilde,(um divertimento):
“Um dia, Matilde disse-me:
– Enfadam-me as tuas estórias. Todas
poderiam ter acontecido.
– E isso é defeito?, repliquei, um tanto amuado.
– Para mim, é. Prefiro coisas inverosímeis, incomuns.
– Mas as coisas inverosímeis onde acontecem é na vida. A literatura tem uma lógica, a vida tem outra.
– Pois experimenta misturá-las.
…
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Agora então é que vou ler mesmo esse livro. Obrigada! Abraço,
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Reblogged this on Borboletanoespelho and commented:
LINDAS PALAVRAS…..IMAGENS MARAVILHOSAS….COMO LETRA E MELODIA DE UMA LINDA MÚSICA…
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Quão prazeroso é visitar seu Blog. Muito agradecida por todas as coisas lindas que tenho enxergado através de seus olhos acostumados a descobrir os tesouros escondidos em cada palavra de uma poesia. Abraço.
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Obrigado pelo carinho do cumprimento e pela assiduidade com que visita o blog, transformando-o em algo vivo com os seus comentários.
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