Matéria dos sentidos, a ópera é das manifestações artísticas aquela onde a razão sossobra como exigência de um gostar. É no absoluto triunfo do irracional que o sublime se manifesta. E aí, o prazer é quase infinito.
Quem me conhece sabe desta minha paixão. Como seria de esperar tenho as minhas preferências e algumas de ilha deserta. Hoje partilho convosco a que é, provavelmente a ária que mais vezes ouvi, em dezenas de interpretações: Casta Diva. A todas as interpretes sobrepõe-se Montserrat Caballé, e a ela regresso frequentemente.
De um espectáculo memorável no Théatre Antique d’Orange em 20 de Julho de 1974 em que a Caballé cantou a Norma, saiu-me esta homenagem com a audição de Casta Diva:
Do silêncio, da noite de breu ergue-se um som de flautas. Quente, o vento varre o palco nu. Um foco apenas. De negro, alta, imóvel, o cabelo esvoaçante, canta. Do sussurro, a voz ergue-se cresce soluça estrondeia e extingue-se.
Silêncio!
Colados à cadeira, ouvimos…
Da paixão o canto…
Por momentos a beleza passou sobre nós.
Deixo-vos a gravação da ária no disco de estreia da Diva publicado em 1966.
Casta Diva – o poema original em italiano
Casta Diva, che inargenti queste sacre antiche piante, a noi volgi il bel sembiante, senza nube e senza vel.
…
Tempra, o Diva, tempra tu de’ cori ardenti, tempra ancora lo zelo audace, spargi, in terra, ah, quella pace che regnar tu fai nel ciel, etc.
…
Fine al rito ; e il sacro bosco sia disgombro dai profani. Quando il Nume irato e fosco chiegga il sangue dei Romani, dal druidico delubro la mia voce tuonerà.
…
Cadrà! punirlo io posso… (Ma, punirlo, il cor non sa.)
(Ah! bello a me ritorna del fido amor primiero: e contro il mondo intiero difesa a te sarò. Ah! bello a me ritorna del raggio tuo sereno; e vita nel tuo seno e patria e cielo avrò, etc)
…
( Ah! Ah! , bello a me ritorna, etc.)
…
(Ah! riedi ancora qual eri allora, quando il cor ti diedi allora, etc. ah, riedi a me.) Norma parte, seguida por todos em ordem
Giuditta Pasta (1797-1865) foi a cantora que estreou Norma em Milão a 26 de Dezembro de 1831, e cujo retrato vos deixo.
Nota erudita
Casta Diva é uma ária da ópera Norma de Vincenzo Bellini(1801-1835), expoente do romantismo musical italiano.
A acção da ópera decorre na Gália (França) ocupada pelos Romanos, por volta de 100 anos da nossa era. Norma, sacerdotisa dos Druidas, vive uma paixão secreta pelo general romano ocupante, do qual tem 2 filhos.
A ária Casta Diva é uma invocação cerimonial à deusa da floresta solicitando um sinal para romper a paz com os romanos e expulsá-los do país.
Na ária jogam-se a complexidade de sentimentos do dever perante o povo, da vontade de liberdade, e do amor pelo inimigo (Ma, punirlo, il cor non sa.) (Mas puni-lo não sabe o coração). Norma por um lado faz as invocações rituais coadjuvada pelo coro, e por outro em inflexão da linha melódica dá-nos conta da complexidade dos seus sentimentos perante a quebra dos votos de castidade e desejo de viver com o inimigo.
Já aqui escrevi da surpresa e admiração pela poesia de Manuel de Freitas (1972), excepção na poesia mimética que hoje por Portugal se escreve. Quando lancei um olhar abrangente sobre a sua poesia, ficou de fora o livro GAME OVER. A ele vou hoje buscar um poema de amor, que no meu desconhecimento supus, o poeta não escreveria.
IN VAIN THE AM’ROUS FLUTE
Estas escadas tinham degraus onde por acaso nos sentámos à espera de não ver gaivotas, com livros abertos quando as mãos chegavam.
De novo e despercebida e só, acendia-se para morrer na tarde a inútil figuração do desejo.
E éramos outra vez nós os seus irrepetíveis figurantes, escondidos num poema que o tempo pisou, deixa lá – o recomeçado amor descendo.
Nota talvez desnecessária
O título do poema remete para a Ode para o dia de Santa Cecília de 1692, Hail, bright Cecilia! Z 328, de Henry Purcell (1659-1695), onde se encontra a parte para dois tenores “In vain the am´rous flute and soft guitar”.
Vale a pena sentir o poema ganhar uma especial emoção e harmonia ao ouvi-la. A ardência do desejo no pudor da linguagem sobressai se se souber o que na ária se canta:
In vain the am´rous flute and soft guitar Jointly labour to inspire Wanton heat and loose desire Whilst thy chaste airs do gently move Seraphic flames and heav’nly love.
A fotografia que abre o artigo não evoca nada. Apenas o calor da luz sobre a desolação me fez escolhê-la.
Noticia bibliográfica
GAME OVER foi publicado por &etc em 2002, com capa de Luis Manuel Gaspar, paginação e composição de Olímpio Ferreira.
Quando a poesia fala do amor que se extinguiu, poucas vezes lemos a desolação do que resta como nestes versos:
que al igual que tu y que yo
ni se importan … ni se estorban
se soportan amistosas,
mas… mas no son… no son una cancion.
É um desencanto quase patético o que nos transmite este Aniversario, poema de Patxi Andión (1947), por ele cantado de forma pungente e tornado famoso nos anos setenta.
Para a sua leitura e audição vos convido. Na sua concisão está lá tudo. Mais palavras são supérfluas.
Nada como a experiencia para nos revelar quanto estamos errados com as nossas ideias feitas.
Tinha para mim que acariciar seios cuja beleza acrescida decorria de cirurgia plástica, arrefeceria o prazer desde que o facto fosse conhecido. A experiência mostrou-me que perante uma intervenção bem feita o prazer explode intacto ao tacto destas maravilhas.
Nasce dentro das mãos este desejo / De toda te palpar e possuir:
Não será difícil imaginar que a bela de quem o poema fala poderia semelhar-se a alguma das belas do século XV cujos retratos há dias aqui deixei, qual seja por exemplo a bela Simonetta Vespucci pintada por Pietro di Cosimo cerca de 1520, ou a Fornarina, causa inventada da morte precoce de Rafael e que pela mesma época este pintou:
A tradução do poema é de David Mourão-Ferreira e foi publicada em Vozes da Poesia Europeia – II (Colóquio Letras nº 164). Os conhecedores da língua francesa encontram no final do post o poema em francês moderno com os dois versos (29 e 30) que David Mourão-Ferreira não traduziu:
[29]Tétin qui t’enfles, et repousses / [30] Ton gorgias de deux bons pouces
O poema chama-se em francês Le blason du beau tétin. O “blason”, género poético sem equivalente preciso em português, que eu saiba, é um curto poema celebrando uma parte do corpo feminino, constituindo-se essa parte como brasão ou emblema (blason) digno de ser cantado. Conhecido na poesia francesa em meados do século XV, ressurgiu e fez moda pela pena do nosso poeta de hoje Clément Marot (1497 – 1544). Este “blason” da bela teta foi estendido por outros poetas em imitação e emulação de Marot, nos anos que se seguiram ao seu aparecimento (1535), ao elogio de outras partes do corpo feminino das belas amadas dos poetas que as cantaram.
Depois de largo silêncio, vamos encontrá-lo de novo no século XX em poemas de Paul Eluard e André Breton, nomeadamente. Mas é um poema de Georges Brassens (1921-1981) , Le blason, que me atrai. Sendo uma elegia à “merveillette fente” como lhe chamou Pierre de Ronsard (1524-1585), de caminho vitupera a língua francesa pela homonimía de possuir para tal amiga do homem o mesmo termo que para idiota [con]. Infelizmente não conheço tradução portuguesa desta poema de Brassens, cantado pelo poeta no disco Mourir pour des idées (1962). Deixo-vos, pois, o poema e a interpretação do grande Brassens a cuja poesia e música espero regressar.
LE BLASON
Ayant avec lui toujours fait bon ménage, J’eusse aimé célébrer, sans être inconvenant, Tendre corps féminin, ton plus bel apanage, Que tous ceux qui l’ont vu disent hallucinant.
Ç’eût été mon ultime chant, mon chant du cygne Mon dernier billet doux, mon message d’adieu. Or, malheureusement, les mots qui le désignent Le disputent à l’exécrable, à l’odieux.
C’est la grande pitié de la langue française, C’est son talon d’Achille et c’est son déshonneur, De n’offrir que des mots entachés de bassesse À cet incomparable instrument de bonheur.
Alors que tant de fleurs ont des noms poétiques, Tendre corps féminin, c’est fort malencontreux Que ta fleur la plus douce et la plus érotique Et la plus enivrante en ait un si scabreux.
Mais le pire de tous est un petit vocable De trois lettres, pas plus, familier, coutumier, Il est inexplicable, il est irrévocable, Honte à celui-là qui l’employa le premier.
Honte à celui-là qui, par dépit, par gageure, Dota du même terme, en son fiel venimeux, Ce grand ami de l’homme et la cinglante injure, Celui-là, c’est probable, en était un fameux.
Misogyne à coup sûr, asexué sans doute, Au charme de Vénus absolument rétif, Était ce bougre qui, toute honte bu’, toute, Fit ce rapprochement, d’ailleurs intempestif.
La malepeste soit de cette homonymie! C’est injuste, madame, et c’est désobligeant Que ce morceau de roi de votre anatomie Porte le même nom qu’une foule de gens.
Fasse le ciel qu’un jour, dans un trait de génie, Un poète inspiré, que Pégase soutient, Donne, effaçant d’un coup des siècles d’avanie, À cette vrai’ merveille un joli nom chrétien.
En attendant, madame, il semblerait dommage, Et vos adorateurs en seraient tous peinés, D’aller perdre de vu’ que, pour lui rendre hommage, Il est d’autres moyens et que je les connais,
O afastamento, a distância de quem nos é querido, têm nas imagens poéticas em torno dos olhos alguns dos mais belos poemas de sempre da poesia portuguesa. Um deles é este Cantiga, partindo-se, publicado por Garcia de Resende no seu Cancioneiro Geral, e atribuído a Jorge Roiz de Castelo-Branco (14??-1515), que agora acrescento ao meu cânone pessoal.
Cantiga, partindo-se
Senhora, partem tão tristes
meus olhos por vós, meu bem,
que nunca tão tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.
Tão tristes, tão saüdosos,
tão doentes da partida,
tão cansados, tão chorosos,
da morte mais desejosos
cem mil vezes que da vida,
partem tão tristes os tristes,
tão fora de esperar bem,
que nunca tão tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.
Jorge Roiz de Castelo-Branco (14??-1515)
Transcrevi a versão de José Régio em português moderno publicada em as mais belas poesias do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, 1962, publicada por Realizações Artis.
E agora, com música de Alain Oulman, o poema na voz sublime de Amália
Alguma poesia de Louis Aragon (1897-1982) foi musicada e cantada por Jean Ferrat (1930-2010) tendo com isso chegado ao coração de muitos de nós. São canções onde a mulher e o amor irrompem, eivadas da nostalgia dos tempos felizes a maior parte das vezes.
O poeta, resultado de um percurso politico polémico e de uma personalidade incapaz de gerar consensos, continua ainda hoje fora da atenção dos amantes da poesia, pelo menos entre nós.
Servem-nos as canções para um aproximar de uma poesia com uma verdade no sentimento que julgaríamos inacessível à personalidade pública e politica cuja imagem nos chegou.
lamentavelmente não conheço traduções portuguesas dos poemas pelo que segui-los fica ao alcance dos conhecedores de francês. Aos outros restam as belíssimas interpretações de Jean Ferrat, de onde o conteúdo poético pode ser inferido usando a sensibilidade.
Nous dormirons ensemble
Que ce soit dimanche ou lundi
Soir ou matin, minuit, midi
Dans l’enfer ou le paradis
Les amours aux amours ressemblent
C’était hier que je t’ai dit
Nous dormirons ensemble
C’était hier et c’est demain
Je n’ai plus que toi de chemin
J’ai mis mon coeur entre tes mains
Avec le tien comme il va l’amble
Tout ce qu’il a de temps humain
Nous dormirons ensemble
Mon amour, ce qui fut sera
Le ciel est sur nous comme un drap
J’ai refermé sur toi mes bras
Et tant je t’aime que j’en tremble
Aussi longtemps que tu voudras
Nous dormirons ensemble
Segue-se o poema feito canção por Jean Ferrat e cantado por este.
Acrescento HEUREUX CELUI QUI MEURT D’AIMER
O mon jardin d’eau fraîche et d’ombre
Ma danse d’être mon coeur sombre
Mon ciel des étoiles sans nombre
Ma barque au loin douce à ramer
Heureux celui qui devient sourd
Au chant s’il n’est de son amour
Aveugle au jour d’après son jour
Ses yeux sur toi seule fermés
Heureux celui qui meurt d’aimer
Heureux celui qui meurt d’aimer
D’aimer si fort ses lèvres closes
Qu’il n’ait besoin de nulle chose
Hormis le souvenir des roses
A jamais de toi parfumées
Celui qui meurt même à douleur
A qui sans toi le monde est leurre
Et n’en retient que tes couleurs
Il lui suffit qu’il t’ait nommée
Heureux celui qui meurt d’aimer
Heureux celui qui meurt d’aimer
Mon enfant dit-il ma chère âme
Le temps de te connaître ô femme
L’éternité n’est qu’une pâme
Au feu dont je suis consumé
Il a dit ô femme et qu’il taise
Le nom qui ressemble à la braise
A la bouche rouge à la fraise
A jamais dans ses dents formée
Heureux celui qui meurt d’aimer
Heureux celui qui meurt d’aimer
Il a dit ô femme et s’achève
Ainsi la vie, ainsi le rêve
Et soit sur la place de grève
Ou dans le lit accoutumé
Jeunes amants vous dont c’est l’âge
Entre la ronde et le voyage
Fou s’épargnant qui se croit sage
Criez à qui vous veut blâmer
Heureux celui qui meurt d’aimer
Heureux celui qui meurt d’aimer
Eis a interpretação de Jean Ferrat, com musica de sua autoria.
Termino com C’EST SI PEU DIRE QUE JE T’AIME
Comme une étoffe déchirée
On vit ensemble séparés
Dans mes bras je te tiens absente
Et la blessure de durer
Faut-il si profond qu’on la sente
Quand le ciel nous est mesure
C’est si peu dire que je t’aime
Cette existence est un adieu
Et tous les deux nous n’avons d’yeux
Que pour la lumière qui baisse
Chausser des bottes de sept lieues
En se disant que rien ne presse
Voilà ce que c’est qu’être vieux
C’est si peu dire que je t’aime
C’est comme si jamais jamais
Je n’avais dit que je t’aimais
Si je craignais que me surprenne
La nuit sur ma gorge qui met
Ses doigts gantés de souveraine
Quand plus jamais ce n’est le mai
C’est si peu dire que je t’aime
Lorsque les choses plus ne sont
Qu’un souvenir de leur frisson
Un écho des musiques mortes
Demeure la douleur du son
Qui plus s’éteint plus devient forte
C’est peu des mots pour la chanson
C’est si peu dire que je t’aime
Et je n’aurai dit que je t’aime
e de novo a musica e interpretação de Jean Ferrat.
Nota
A pintura que ilustra o artigo é de Picasso e chama-se A alegria de viver, tendo sido pintada em 1946.
Lia este poema e pensava que tive a ventura de viver a adolescência e juventude num tempo em que a poesia como meio de sedução e convite ao amor estava fora de moda. O poema foi composto por A. X. R. Cordeiro (1819 – 1896) tinha o poeta 19 anos e estudava na Universidade de Coimbra. Foi publicado em O Trovador. e é o convite possível ao sexo naquele meado do século XIX, onde as convenções de sociedade eram espartilho para o amor.
Na verdade nos meus vinte anos e mesmo antes, era tudo muito mais fácil. Pensar em compor loas aos olhos da menina ou às sedutoras formas escondidas sob as sete saias da moda extinguiria, no burilar do verso, qualquer fogo em que o corpo ardesse. O recurso à prostituição como iniciação sexual era história passada e remota, de, pelo menos, o tempo dos pais. As formas e profundidade dos relacionamentos davam conta da liberdade de costumes que se insinuava nas nossas vidas, apesar de numa forma mais lenta que nas vizinhas sociedades ocidentais.
A música anglo-americana de final nos anos sessenta e década de setenta reflectiu isso mesmo. Os temas e as abordagens cobrem virtualmente as situações vividas por cada um de nós. Não é hoje que vos conto detalhes pessoais destes tempos mas recordo dos Rolling Stones, Let’s spend the night together, cuja letra é paradigmática do tempo que refiro.
Let’s spend the night together
My, My, My, My Don’t you worry ‘bout what’s on your mind (Oh my) I’m in no hurry I can take my time (Oh my) I’m going red and my tongue’s getting tied (tongues’s getting tied) I’m off my head and my mouth’s getting dry. I’m high, But I try, try, try (Oh my) Let’s spend the night together Now I need you more than ever Let’s spend the night together now
I feel so strong that I can’t disguise (oh my) Let’s spend the night together But I just can’t apologize (oh no) Let’s spend the night together Don’t hang me up and don’t let me down (don’t let me down) We could have fun just groovin’ around around and around Oh my, my Let’s spend the night together Now I need you more than ever Let’s spend the night together
Let’s spend the night together Now I need you more than ever
You know I’m smiling baby You need some guiding baby I’m just deciding baby; now- I need you more than ever Let’s spend the night together Let’s spend the night together now
This doesn’t happen to me ev’ryday (oh my) Let’s spend the night together No excuses offered anyway (oh my) Let’s spend the night together I’ll satisfy your every need (every need) And I now know you will satisfy me Oh my, my, my, my, my Let’s spend the night together Now I need you more than ever Let’s spend the night together now
Toda a gente parece saber tudo sobre Van Gogh(1853-1890) pelo que me escuso à redundância.
A pintura de Van Gogh foi a primeira pintura que conheci, dentre os incontornáveis génios que povoaram a humanidade, aí por meados dos anos sessenta, e gostei dela desde o primeiro olhar. Encontrei-a através de uns folhetos publicados no Brasil e distribuídos em Portugal, e que fizeram uma colecção, Génios da Pintura chamada. O fascículo sobre Van Gogh abria a colecção, se bem recordo.
Não têm sido muitas as oportunidades de ver a pintura de Van Gogh, e tantas pinturas há que apenas conheço de fotografia. Não é o mesmo. O impacto da escala, sobretudo, mas também o da textura, são cruciais para a emoção de ver. Com as fotos fica apenas a impressão primeira e o apetite para o real. Possam estas fotos abrir esse apetite a alguém.
Estas são apenas alguma imagens de pinturas, porventura menos conhecidas, aqui deixadas para alegrar alguém querido e está longe. Permito-me apenas referir quanto a constância da paleta cromática faz prodígios de um quadro para outro em que é usada, variando da tristeza à alegria e da turbulencia à quietação, apenas graças à força do desenho conjugado com a aplicação do colorido e à variação da textura na aplicação da tinta.
Acrescento uma canção da minha juventude, Vincent, de Don McLean, escrita em memória de Van Gogh e façamos assim uma visita ao baú. À data da publicação, era moda entre as raparigas, o uso de calções curtos e justos, chamados Hot Pants. Nas festas de sábado à tarde, dançar esta Vincent, agarrado como era de norma, fazendo descer as mãos ao longo das costas até às redondas saliências modeladas pelos calções era uma antevisão adolescente de paraiso.
Vamos então à canção escrita e interpretada por Don McLean
Há dias, numa prenda de anos antecipada, bebemos um vinho tinto reserva de 2007 da Quinta do Noval, uma daquelas pérolas que fazem alguns vinhos do Douro sem paralelo.
Embora goste de beber, não gosto de me embriagar, o que na minha vida poderá ter acontecido duas ou três vezes. Ao começar da cabeça à roda, paro.
O vinho, presença e invenção das culturas mediterrânicas, que se estendem até à Pérsia, na definição de região mediterrânica de Orlando Ribeiro, mestre geógrafo nunca demais lembrado, o vinho, dizia eu, de invenção dos países onde as manifestações de cultura mais antigas se mostram, foi aqui, sempre, artigo de luxo e bebê-lo sinal de privilégio. É Orlando Ribeiro quem no-lo ensina:
O vinho é, tradicionalmente, um produto de qualidade, fino, variado e diverso como tudo o que é bom. Precisamente por não ser indispensável entre os artigos de consumo é que o vinho constitui produto requintado de uma grande civilização. (in Mediterrâneo, Ambiente e Tradição, pág. 97, ed.FCG, 1987).
A poesia, refinado eco cultural e social do homem, tem alguns tesouros em torno do vinho, sendo entre os mais divulgados, talvez, os que surgem nos Robaiyyat(*) de Omar Jayyam, poeta persa que terá vivido nos séc XI-XII:
Agora que a juventude vivo
beberei vinho, pois bebê-lo me compraz;
não mo deiteis em cara; apesar de amargo, é bom
amargo ele deve ser, pois amarga me é a vida.
ou este:
Um antigo mestre encontrei na taberna
pedi-lhe notícias dos que já se foram;
disse-me: bebe vinho; muitos como nós
se foram e nenhum jamais regressou.
Outros há, e um cancioneiro exaustivo do vinho está por fazer.
É a propósito de beber vinho que trago um poema medieval, arqui-conhecido na forma cantada, evidenciando outra poesia medieval que não a de Francisco de Assis aqui deixada antes.
Dá ele conta de variados sem-pretexto necessários para beber. De caminho fala-nos da variegada paisagem humana que povoa aquele universo.
O poema, In Taberna quando sumus, escrito em latim medieval, integra uma colecção de canções descobertas na abadia beneditina de Beuren, no coração dos Alpes bávaros, no inicio do século XIX, das quais Carl Orff (1895-1982) retirou algumas e re-musicou de forma original, em 1953, criando uma das peças do repertório clássico mais conhecidas e populares: Carmina Burana.
A colecção terá sido redigida no final do século XIII, dando forma escrita a um património que circulava de boca em boca desde o século XII. Os estudos recentes do manuscrito terão permitido a atribuição de autoria em alguns poemas.
Trata-se da mais importante fonte da poesia em latim do século XII. Colecção heterogénea onde coexistem dramas litúrgicos, poemas morais, poemas de amor, canções de beber e convites ao jogo, enfim toda a panóplia da vida da época.
Esta In Taberna quando sumus pertencerá ao grupo das canções de goliardos e de clérigos vagantes, gente que deambulava de terra em terra fazendo pela vida e por gozar dela. É um pouco a vida de que Francisco de Assis desistiu para se entregar aos votos de pobreza e propagação da fé.
Deixo-vos com uma interpretação da peça e o texto da versão latina cantada. Acrescento a preciosa versão que do poema fez Jorge de Sena e publicou em Poesia de 26 Séculos.
CARMINA BURANA – In Taberna quando sumus
In taberna quando sumus
In taberna quando sumus,
Non curamus quid sit humus,
Sed ad ludum properamus,
Cui semper insudamus. Quid agatur in taberna,
Ubi nummus est pincerna,
Hoc est opus ut queratur,
Sic quid loquar, audiatur.
Quidam ludunt, quidam bibunt,
Quidam indiscrete vivunt,
Sed in ludo qui morantur,
Ex his quidam denudantur,
Quidam ibi vestiuntur,
Quidam saccis induuntur.
Ibi nullus timet mortem,
Sed pro Baccho mittunt sortem:
Primo pro nummata vini,
Ex hac bibunt libertini;
Semel bibunt pro captivis,
Post hec bibunt ter pro vivis,
Quater pro Christianis cunctis,
Quinquies pro fidelibus defunctis,
Sexies pro sororibus vanis,
Septies pro militibus silvanis.
Octies pro fratribus perversis,
Nonies pro monachis dispersis,
Decis pro navigantibus,
Undecies pro discordantibus,
Duodecies pro penitentibus,
Tredecies pro iter agentibus.
Tam pro papa quam pro rege
Bibunt omnes sine lege.
Parum sexcente nummate
Durant, cum immoderate
Bidunt omnes sine meta,
Quamvis bibant mente leta;
Sic nos rodunt omnes gentes,
Et sic erimus egentes.
Qui nos rodunt confundantur
Et cum iustis non scribantur, Io!
E agora a versão de Jorge de Sena em português
Dos Carmina Burana, In Taberna…
Na taberna quando estamos,
De mais nada nós curamos,
Que do jogo que jogamos,
Mais do vinho que bebemos,
Quando juntos na taberna,
Numa confusão superna
Que fazemos nós por lá?
Não sabeis? Pois ouvi cá.
Nós jogamos, nós bebemos,
A tudo nos atrevemos.
O que ao jogo mais se esbalda
Perde as bragas, perde a fralda,
E num saco esconde o couro,
Pois que um outro conta o ouro.
E a morte não val’um caco
Pra quem só joga por Baco.
Nossa primeira jogada
É por quem paga a rodada.
Depois se bebe aos cativos,
E a seguir aos que estão vivos,
Quarta roda, aos cristãos juntos.
Quinta roda, aos fieis defuntos.
Sexta, às putas nossas manas,
E sete às bruxas silvanas.
Oito, aos manos invertidos.
Nove, aos frades foragidos,
Dez, se bebe aos navegantes,
Onze, é para os litigantes,
E doze, dos suplicantes,
E treze, pelos viandantes.
Pelo Papa e pelo Rei
Bebemos então sem lei.
Bebem patroa e patrão,
Bebem padre e capitão,
Bebe o amado e bebe a amada,
Bebem criado e criada,
Bebe o quente e o piça fria,
Bebe o da noite e o do dia,
Bebe o firme, bebe o vago,
Bebe o burro e bebe o mago.
Bebe o pobre e bebei rico,
Bebe o pico-serenico,
Bebe o infante, bebe o cão,
Bebem cónego e deão,
Bebe a freira e bebe o frade,
Bebe a besta, bebe a madre,
Bebem todos do barril,
Bebem cento, bebem mil.
Nenhuma pipa se aguenta
Com esta gente sedenta,
Quando bebe sem medida
Quem de beber faz a vida.
E quem de nós se fiou,
Sem cheta s’arrebentou.
E quem de nós prejulgava,
Se quiser, que vá à fava.
Bebamos, pois, bebamos, à felicidade dos dias por vir.
Por esta época, e ainda era mesquita a igreja de Santa Maria em Tavira, nasceu na cidade ABÛ ‘UTHMÂN sobre cuja poesia já escrevi, e para onde vos remeto, dando de novo conta deste círculo infindável que a poesia é:
(*) Robaiyyat é o plural de Robai, estrofe de quatro versos dodecassilabos em que rimam o primeiro e o segundo e o quarto, ficando livre o terceiro. Significa canto ou copla.
As traduções de Robaiyyat incluídas foram feitas a partir de versões castelhanas traduzidas directamente do farsi. Em Poesia de 26 Séculos tem Jorge de Sena algumas belas versões de Robaiyyat de Omar Jayyam.
As gravações de Carmina Burana de Carl Orff são às dezenas. Embora conheça algumas, a minha preferência vai para a que aqui deixei em fragmento, provavelmente por razões sentimentais. Foi a primeira que conheci e trouxe-a da Polónia nos idos de 70, daquela viagem que já aqui contei em Uma Aventura Polaca. A gravação Supraphon com solistas, coro e a orquetra de Praga, tem direcção do maestro Václav Smetácek, e contem as três cantatas cénicas de Carl Orff, TRIONFI, onde se inclui CARMINA BURANA juntamente com CATULLI CARMINA e TRIONFO DI AFRODITE.