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vicio da poesia

Category Archives: Crónicas

Ode anacreôntica de António Diniz da Cruz e Silva

29 Domingo Maio 2016

Posted by viciodapoesia in Crónicas, Poesia Antiga

≈ 2 comentários

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António Diniz da Cruz e Silva, Cole Porter, Ella Fitzgerald, Sandro Botticelli

Botticelli - Primavera pormenor 4 450px

Há uma delicadeza de flor frágil na ode anacreôntica de António Diniz da Cruz e Silva (1731-1799) que hoje transcrevo.

Envolvido no manto diáfano da paisagem primaveril encontra-se um apelo ao amor, vivido em tempo jovem, não vá a vida passar sem que esse ardor juvenil se consuma:

…

Que uma parte da vida

Aos brincos*, e aos amores é devida.

 

*brincos — o mesmo que brincadeiras

Botticelli - Primavera pormenor 3 500px

Corre o poema numa atmosfera de erotismo suave onde toda a natureza mergulha à chegada da primavera, fazendo uso dos amores mitológicos cujo conhecimento ajuda à sua mais profunda inteligência.

Ler este poema faz-me recordar a canção de Cole Porter, Let’s do it (Let’s Fall in Love)(1), na qual o cantor(a) dá a volta pela natureza e pelo mundo para convencer o outro(a) ao amor, enumerando quanto bichos e gentes que o fazem, o amor, evidentemente: Antes que a idade breve / Nos roube os gostos, e o prazer nos leve.

Botticelli - Primavera pormenor 1 500px

 

Ode anacreôntica VI

 

Já vem a primavera

Os prados matizando,

De verde murta e de hera

As selvas coroando;

E as aves entre as flores

Renovam docemente os seus amores.

 

Vénus em companhia

De mil ninfas formosas,

Pela selva sombria

Colhe lírios e rosas,

Com que longos cabelos

Destramente enastrando faz mais belos.

 

Os Risos, a Alegria,

Os Brincos a acompanham,

E sobre a fonte fria

Voando as asas banham;

Que logo sacudindo,

De branco orvalho a Deusa vão cobrindo.

 

Um deles ao parceiro

Dentro nas águas lança,

Que voando ligeiro

Dele a tomar vinganca,

Este de astúcia cheio,

Da branca Deusa foge ao branco seio.

 

Mil em torno adejando

Das ninfas peregrinas,

Sobre elas vão lançando

Em chuvas as boninas,

E as faces um lhe toca,

E o mais descomedido a linda boca.

 

Amor alegre voa

Em repetidos giros;

Ferido o vento soa

Dos amorosos tiros;

Ardem em vivas fráguas

O bosque, o ar, as flores, Ninfas, águas.

 

Zéfiro suspirando

A linda Clóris chama,

Que travessa ocultando

Se vai por entre a rama,

Mas ao vê-lo impaciente

Entre seus braços corre velozmente.

 

Os Faunos namorados

As Mélias vão seguindo,

Que contra seus agrados

Brandas iras fingindo,

Se metem de ardilosas

Da selva pelas matas mais frondosas.

 

A doce liberdade

Do campo afasta ufana

A triste seriedade,

Dos prazeres tirana;

Que leva em companhia

A pesada e cruel melancolia.

 

O campo, pois, Oh Cloe,

Solícitos busquemos

Antes que o tempo voe,

Do tempo nos gozemos

Que uma parte da vida

Aos brincos, e aos amores é devida.

 

Dos álamos frondosos

À sombra reclinados,

Façamos venturosos

Nossos doces cuidados;

Antes que a idade breve

Nos roube os gostos, e o prazer nos leve.

 

Transcrito de Obras de António Diniz da Cruz e Silva vol II, edição de Maria Luísa Malaquias Urbano, Edições Colibri, Lisboa, 2001.

As imagéns que acompanham o artigo são pormenores da pintura Primavera de Sandro Botticelli (1445-1510).

(1) Para leitores que não conheçam a canção, ouçam-na com a inexcedível beleza e gosto da interpretação de Ella Fitzgerald num dos alguns do Cole Porter Songbook.

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Outrora — poema de Giovanni Pascoli

26 Quinta-feira Maio 2016

Posted by viciodapoesia in Crónicas

≈ 5 comentários

HOCKNEY David American Collectors 1968 500pxUm dia ele foi… só uma essência / sem retorno e sem outro igual.

Momentos que se fazem eternidade, felizmente todos na vida os teremos. Cabe-nos guardá-los como tesouros para consolo, não vá a vida acontecer como Giovanni Pascoli (1855-1912) refere no poema Outrora de onde transcrevi os versos de abertura, e que mais à frente refere:

E a vida foi vã aparência / antes e após um dia tal.

 

É-se feliz sem se estar permanente feliz. A procura interior deste equilíbrio pessoal entre ser e estar é a demanda dos nossos dias. O conselho é não deixar escapar a consciência da felicidade quando existiu:

não podes, ideia, não podes / levá-lo contigo, na mão…

 

Eis o poema

 

Outrora

 

Outrora, num tempo distante,

fui eu tão feliz, não agora:

mas quanta doçura no instante

por tanta doçura de outrora!

 

Esse ano! por anos que após

fugiram e que fugirão,

não podes, ideia, não podes

levá-lo contigo, na mão…

 

Um dia ele foi… só uma essência

sem retorno e sem outro igual.

E a vida foi vã aparência

antes e após um dia tal.

 

Um instante… aí tão passageiro,

que menos passou que se diz;

mas tão belo assim, mas tão belo,

e eu nele tão feliz, tão feliz!

 

Tradução de Jorge de Sena

in Poesia do Século XX, antologia, prefácio e notas de Jorge de Sena, Fora do Texto, Coimbra, 1994.

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de David Hockney de 1968.

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Mamografia de mármore — um poema de Inês Lourenço

23 Terça-feira Fev 2016

Posted by viciodapoesia in Crónicas

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Venus de Willendorf 500pxNa poesia de Inês Lourenço (1942) saborear as palavras, qual gourmet da língua, é a outra dimensão que torna alguns poemas irresistíveis, sendo a sua poesia um itinerário amargo pelo nosso tempo, a que uma cultura herdada ajuda a dar coerência e revelar as peculiaridades. Propondo-me noutra ocasião fazer-lhe uma visita mais circunstanciada, transcrevo hoje apenas um poema onde as características que enunciei se revelam.

 

Mamografia de mármore

 

Deliciam-me as palavras

dos relatórios médicos, os nomes cheios

de saber oculto e míticos lugares

como região sacro-lombar ou o tendão de Aquiles.

 

Numa mamografia de rastreio,

a incidência crânio-caudal seria

um bom título para uma tese teológica.

 

Alguns poetas falam disso. Pneumotórax

de Manuel Bandeira ou Electrocardiograma

de Nemésio, para não referir os vermelhos de hemoptise

de Pessanha ou as engomadeiras tísicas

de Cesário.

 

Mas nenhum(a) falou (ou fala)

de mamografia de rastreio. Versos dignos

só os de mamilo róseo desde o tempo

de Safo ou de Penélope. E, de Afrodite

enquanto deusa, só restaram óleos e

mamografias de mármore.

 

Publicado inicialmente em Coisas que Nunca, Lisboa, &etc, 2010.

Transcrito de Inês Lourenço, O Segundo Olhar poemas escolhidos, Companhia das Ilhas, Lages do Pico, 2015.

Nota Iconográfica

Abre o artigo uma fotografia da escultura conhecida como Vénus de Willendorf.

Trata-se de uma peça pré-histórica encontrada na Áustria. Possui 11cm e guarda-se no Museu de História Natural de Viena (Naturhistorisches Museum Wien). Segundo o catálogo do museu a escultura terá 29.500 anos.

Umberto Eco, na sua História da Beleza, escolheu-a para abrir a galeria das representações de Vénus Nua ao longo dos séculos. (A edição portuguesa da obra refere erroneamente que a escultura se encontra no Museu de Arte Antiga de Viena.).

 

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De dragões e outros figurões a O Mostrengo de Fernando Pessoa

28 Segunda-feira Dez 2015

Posted by viciodapoesia in Crónicas

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Camões, Fernando Pessoa

Raphael - S Jorge e o Dragão 600pxPor este tempo de Natal, ao querer comprar uma prenda para uma criança da família, disseram-me da paixão do miúdo por dinossauros e outros monstros. Lembrei-me de quando o meu filho pelos sete/oito anos vivia apaixonado pelos monstros da moda, à época, umas chamadas tartarugas Ninja, e, depois, dinossauros, seguidos de toda uma galeria que lhes sucedeu, e certamente se reproduzirá ad seculum seculorum.

A um adulto como eu, o que chama primeiro a atenção é a estética do feio apanágio das figuras, o que parece deixar os infantes indiferentes. Com efeito, pensando na coisa sem preparação de especialista, concluo que para os miúdos aqueles seres corporizam o assustador do mundo por conhecer e, simultaneamente, nas suas acções, permitem à criança que joga e brinca, viver intensamente actos de coragem e bravura que significam a aprendizagem de vencer o medo e enfrentar o desconhecido que crescer na verdade é.

É ainda com a memória dessa época que recordo o entusiasmo com que o meu filho ouviu ler o poema O Mostrengo de Fernando Pessoa incluído no livro Mensagem. Nele, é também uma figura monstruosa e aparentemente invencível que, enfrentada pela pequenez de um capitão de coragem, é derrotada. Afinal a repetição da história bíblica de David e Golias.

A descrição poética do episódio do Adamastor em Os Lusíadas de Luís de Camões, para onde o poema O Mostrengo remete, é, do ponto de vista da infância, e para lá da dificuldade vocabular, totalmente diferente, ao que julgo. Em Camões, é tão só um relato de terror perante o monstro o que temos, reduzindo, por isso o apelo do episódio do Adamastor para estes jovens aprendizes da vida, pois, ao que suponho, é no desenlace por coragem que a atracção infantil por estes monstros reside.

Deixo-o, leitor, com os poemas.

 

O Mostrengo

 

O mostrengo que está no fim do mar

Na noite de breu ergueu-se a voar;

À roda da nau voou três vezes,

Voou três vezes a chiar,

E disse: «Quem é que ousou entrar

Nas minhas cavernas que não desvendo,

Meus tectos negros do fim do mundo?»

E o homem do leme disse, tremendo:

«El-Rei D. João Segundo!»

 

«De quem são as velas onde me roço?

De quem as quilhas que vejo e ouço?»

Disse o mostrengo, e rodou três vezes,

Três vezes rodou imundo e grosso.

«Quem vem poder o que só eu posso,

Que moro onde nunca ninguém me visse

E escorro os medos do mar sem fundo?»

E o homem do leme tremeu, e disse:

«El-Rei D. João Segundo!»

 

Três vezes do leme as mãos ergueu,

Três vezes ao leme as reprendeu,

E disse no fim de tremer três vezes:

«Aqui ao leme sou mais do que eu:

Sou um povo que quer o mar que é teu;

E mais que o mostrengo, que me a alma teme

E roda nas trevas do fim do mundo,

Manda a vontade, que me ata ao leme,

De El-Rei D. João Segundo!»

 

Fernando Pessoa, in Mensagem

 

Camões, Os Lusíadas, Canto V

 

Estrofes 37- 40

 

 

37

«Porém já cinco Sóis eram passados

Que dali nos partíramos, cortando

Os mares nunca de outrem navegados,

Prosperamente os ventos assoprando,

Quando hüa noute, estando descuidados

Na cortadora proa vigiando,

Hüa nuvem, que os ares escurece,

Sobre nossas cabeças aparece.

 

38

«Tão temerosa vinha e carregada,

Que pôs nos corações um grande medo;

Bramindo, o negro mar de longe brada,

Como se desse em vão nalgum rochedo.

“Ó Potestade (disse) sublimada:

Que ameaço divino ou que segredo

Este clima e este mar nos apresenta,

Que mor cousa parece que tormenta?”

 

39

«Não acabava, quando hüa figura

Se nos mostra no ar, robusta e válida,

De disforme e grandíssima estatura;

O rosto carregado, a barba esquálida,

Os olhos encovados, e a postura

Medonha e má, e a cor terrena e pálida;

Cheios de terra e crespos os cabelos,

A boca negra, os dentes amarelos.

 

40

«Tão grande era de membros, que bem posso

Certificar-te que este era o segundo

De Rodes estranhíssimo Colosso,

Que um dos sete milagres foi do mundo.

Cum tom de voz nos fala, horrendo e grosso,

Que pareceu sair do mar profundo.

Arrepiam-se as carnes e o cabelo,

A mi e a todos, só de ouvi-lo e vê-lo!

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O desfazer dos sonhos e a dança de Mofina Mendes

08 Terça-feira Dez 2015

Posted by viciodapoesia in Crónicas

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Gil Vicente

Henri GISSEY - Luis XIV com Apolo no Ballet de la nuit 1653 480pxChegado a uma idade em que os sonhos se realizaram ou estão desfeitos, salvo seja, dei comigo, no sossego da sauna, a pensar que se voltasse por qualquer processo a viver de novo desde a juventude, o que mais me custaria seria a perda dos sonhos pelo caminho. Provavelmente efeitos do calor excessivo.

Escreveu Antonio Gedeão no poema Pedra Filosofal: Eles não sabem que o sonho / é uma constante da vida / tão concreta é definida / como outra coisa qualquer / … Eles não sabem, nem sonham / que o sonho comanda a vida., e na verdade assim é. Com a expectativa da realização do(s) sonho(s) corre a vida, mesmo quando em cacos alguns ficam pelo caminho, como bem nos faz recordar Mofina Mendes na canção do auto do mesmo nome, escrito por Gil Vicente (c. 1465-1536) em 1534.

A canção é um pouco mais pessimista quando na coda final generaliza, concluindo pelo efémero de qualquer prazer ou bem-estar humano:

 

…

Pastores não me deis guerra;

Que todo o humano deleite,

Como o meu pote d’azeite

Há-de dar consigo em terra

 

 

Eis a história:

Mofina Mendes, guardadora de gado desleixada, depois de ter perdido o gado que guardava, é despedida. Como paga do trabalho recebe um pote de azeite. Com ele à cabeça dança e canta como segue:

 

Vou-me à feira de Trancoso

Logo, nome de Jesu,

E farei dinheiro grosso.

 

Do que este azeite render

Comprarei ovos de pata

Que é a coisa mais barata

Qu’eu de lá posso trazer.

E estes ovos chocarão;

Cada ovo dará um pato,

E cada pato um tostão.

Que passará de um milhão

E meio, a vender barato.

 

Casarei rica e honrada

Por estes ovos de pata.

E o dia em que for casada

Sairei ataviada

Com um brial d’escarlata,

E diante o desposado,

Que me estará namorando:

Virei de dentro bailando

Assim dest’arte bailado

Esta cantiga cantando.

 

Estas coisas diz Mofina Mendes com o pote de azeite à cabeça e andando enlevada no baile, cai-lhe o pote

 

…

 

Vai-se Mofina Mendes, cantando:

 

Por mais que a dita* m’engeite,

Pastores não me deis guerra;

Que todo o humano deleite,

Como o meu pote d’azeite

Há-de dar consigo em terra.

 

* dita — sorte, fado, destino

Modernizei ligeiramente a ortografia da edição de 1572.

Desconheço a fonte de inspiração directa de Gil Vicente para este episódio tomando o certo pelo incerto, mas o mesmo tem origens remotas e foi glosado diversas vezes, nomeadamente, e já depois de Gil Vicente, na fábula de La Fontaine sobre a Leiteira e o pote de leite.

Tanto quanto consegui apurar, a fonte mais antiga com esta ideia será um dos contos de Panchatantra, antiquíssima compilação indiana de apólogos, e mais precisamente o conto 9 do livro 5, cuja história é a seguinte:

Um brâmane pobre vai juntando a farinha que lhe sobra das esmolas num pote de barro pendurado da parede por cima da cama. Quando o pote está cheio começa a sonhar com o que fará depois de vender a farinha. Embarca-lhe a fantasia numa sucessão de bons negócios até ficar rico e casar. A certa altura do devaneio, gesticula, e com a perna dá um pontapé no pote. Este cai, parte-se, e toda a farinha se espalha, perdendo-se no ar, desfazendo assim os sonhos de uma vida melhor.

Aqui fica, pois, a lição sobre a cautela aconselhável aos devaneios, cautela tanto maior quanto a fronteira entre sonho e realidade se dilua no calor excessivo, o que se pode revelar de péssimo conselho.

Nota iconográfica

Abre o artigo um desenho aguarelado mostrando o rei de França Luis XIV (1638-1715) como Apolo, no bailado Balett de la nuit, onde participou ainda jovem (15 anos) em 1653. Encorajado desde muito jovem pelo Cardeal Mazarino a praticar a dança, terá visto o sonho de bailarino desfeito, levado pela obrigação de reinar. Voltas que a vida tece…

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Orfeu B. — Uma grande superfície de emoções e sentimentos

10 Terça-feira Nov 2015

Posted by viciodapoesia in Crónicas, Poetas e Poemas

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Andy Wahrol, Orfeu B.

Andy Wahrol - 100Campbells soup 1962 450px

Orfeu B. numa brilhante alegoria escrita como poema narrativo, leva-nos a percorrer uma grande superfície comercial, não em busca do prosaico do quotidiano material implicado na necessidade de subsistir, mas na procura(?) dos sentimentos e afectos que dão significado à vida.

O comprador/poeta reconhece alguma da oferta por experiência própria, outra por ouvir dizer. E se nesta viagem é parco nas escolhas, conta-nos o que aos outros compradores atrai.

Com ele visitamos uma secção de sentimentos ambivalentes, a secção das nostalgias e saudades, continuamos pela secção dos artigos relacionados com sentimentos liberados pela poesia, e chegamos à confusão na área reservada às emoções fortes seguida da dos sentimentos gerados por amantes, culminando na secção dos orgasmos. Exausto segue o poeta para as caixas de pagamento. Feito o balanço, promete voltar.

É do nosso tempo que se trata e do entendimento moderno do que devem ser as relações nos afectos — um dar e receber — com contabilidade diária de que cada um recebeu convenientemente em relação ao que pagou. Mas é mais: é a alegoria de que os sentimentos pedem ser mercadoria a que o marketing se aplica e a tecnologia intermedeia.

Lido o poema, da sua dolorosa e mansa ironia fica-nos o sabor da impotência perante a avassaladora presença das leis do mercado na vivência afectiva hoje.

 

Uma grande superfície de emoções e sentimento

 

Logo ao entrar armei-me com um modesto cestinho.

Os corredores eram imperiais e prolongavam-se a perder de vista;

sem ter qualquer plano fui navegando à vista

hesitantemente ganhando coragem

e desenvolvendo algum sentido de orientação.

 

Deparei imediatamente com uma concorrida

secção de sentimentos ambivalentes;

nesta pairava uma pesada ansiedade

e as pessoas passavam e serviam-se automaticamente

com o que havia nas prateleiras:

amores deslocados, repulsas mal definidas, ódios gratuitos,

amor ao próximo.

 

Passei então à secção das nostalgias e saudades.

Fui logo às grandes embalagens,

que por meio de letras coloridas indicavam

família distante, Brasil, desertos,

amigos e amigas espalhados pelo mundo fora,

companheiros e companheiras de física, poesia e futebol.

 

Estava verdadeiramente satisfeito e, de seguida, passei à secção

dos artigos relacionados com sentimentos liberados pela poesia,

que estava deserta.

Havia muita escolha e me servi de variadissimos sentimentos;

não havia nada da minha poesia,

mas pudera, está quase toda em minha casa e

em confuso estado.

 

Por contraste, as secções seguintes eram disputadissimas.

Na área reservada às emoções fortes,

a confusão de pessoas e carrinhos era tremenda.

As pessoas serviam-se avidamente de tudo que estava disponível:

havia cenas de pugilato entre respeitáveis senhores,

distintas senhoras a arrancarem-se os cabelos,

todos na obsessiva disputa das embalagens extra grandes

de paixões arrebatadoras, amores eternos, fúrias homicidas.

 

Surpreendido pela situação que me era completamente estranha,

fui arrastado para o meio da confusão,

sem qualquer hipótese dum pacífico retorno à segurança:

fui empurrado, agredido e derrubado,

contudo, no meio daquela azáfama, ainda fui capaz

de, às duras penas, avançar de gatas

e surripiar uma minúscula embalagem

duma paixão arrebatadora por ruivas.

Não tenho, após o seu uso,

qualquer queixa do produto e do seu fabricante.

 

No corredor seguinte, o dos sentimentos gerados por amantes,

à confusão juntavam-se gritos e insultos,

mas, felizmente, prevenido pela experiência anterior,

consegui escapar aos perigos ali presentes,

e até agarrar no ar um pacote de uma amante recatada,

tamanho médio, que voou na confusão.

Tenho-o sem abrir até hoje lá em casa.

 

À secção dos orgasmos não havia como chegar:

a multidão estava imobilizada pela elevadíssima

taxa de ocupação do exíguo espaço,

mas, à distância, pude apreciar a variedade de formas,

cores e tamanhos disponíveis,

embora, curiosamente, me parecesse que os orgasmos cinzentos

e com formas de sólidos de Platão fossem os mais procurados.

 

Finalmente, completamente exausto,

dirigi-me às caixas de pagamento.

Já na fila, uma senhora que estava logo às minhas costas

rosnou ao marido, referido-se a mim:

“Meu Deus! Que homem mais poupado!”

 

Olhando à volta, não havia dúvidas

que, em termos de quantidade, as minhas compras eram ridículas.

Senti-me intimidado e embaraçado com a situação

mas, apesar de tudo,

penso que passarei também eu a fazer as minhas compras

naquela grande superfície:

há uma boa variedade de produtos a preços acessíveis,

o sítio é conveniente é bem localizado

e sempre dá muito jeito haver um amplo espaço de estacionamento.

in Orfeu B., Instituto de Felicidade Teórica (contos e poemas), Edição Alma Azul, Julho 2002.

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Andy Wahrol – 100 latas de sopa Campbell.

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Meio milhão de visitas ao blog

23 Sexta-feira Out 2015

Posted by viciodapoesia in Crónicas, Poesia Antiga

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Nietzsche

Meio milhão visitas ao blogFoi hoje ultrapassado o meio milhão de visitas ao blog na contagem do wordpress.

Aventura pessoal de escrita e escolha iconográfica ao sabor das disponibilidades de tempo e disposição, é gratificante saber que tanta gente, de tantos pontos do mundo encontra no blog algo que lhe interessa ou agrada, percorrendo-o ao sabor de acasos e curiosidade.

Este bloco-notas aberto ao mundo tem sido para mim um lugar de prazer e descanso, ocupação de ócios e reflexão, afinal registo de minudências ao lado das turbações do incerto quotidiano.

Há, de alguma forma, um paradoxo nos nossos dias: por um lado a apologia da competitividade na profissão com a exigência de permanente disponibilidade para atender ao trabalho sob pena de se ficar para trás e ser olhado como incompetente ou falhado, e por outro a profusão de solicitações para o lazer vindas do que Gilles Lipovetsky chama o “capitalismo artístico”. Entre o universo omnipresente do trabalho e a vertigem do consumo “estético” corremos o risco de a certa altura parar, ver como o tempo passou, e com ele a vida.  

É um desafio de todos os dias a escolha entre o trabalho e o ócio, sabendo-se como a vivência dos afectos interfere nestas escolhas. E é aqui que as nossas opções, filosóficas, diria, ganham todo o sentido, fazendo-nos, ou não, caminhar por uma vida feliz.

Entendendo cultura como interiorização reflectida de conhecimento e saber, que lugar deixamos esta ocupar na nossa vida é a pergunta que coloco a quem me lê.

meio milhão visitas ao blog

Termino com um poema de Friedrich Nietzsche (1844-1900) mais tarde incluído em Assim Falava Zaratustra, de onde o transcrevo.

 

Pretendente à verdade? Tu? — escarneciam —

Não! Apenas um poeta!

Um animal, e astuto, rapinante, furtivo,

Que tem de mentir,

Que tem, ciente e voluntariamente, de mentir:

Cobiçando a presa,

Mascarado de várias cores,

Máscara para si próprio,

Para si próprio presa…

Isto, o pretendente à verdade?

Não! Apenas louco! Apenas poeta!

Proferindo só discursos confusos,

Gritando desordenadamente por detrás de máscaras de bobo,

Andando por cima de mentirosas pontes de palavras,

Por cima de arco-íris multicolores,

Entre falsos céus e falsas terras,

Vagueando, pairando por aí…

Apenas louco! Apenas poeta!

 

Tradução de Paulo Osório de Castro.

in Friedrich Nietzsche, Assim Falava Zaratustra, Relogio D’Água Editores, Lisboa, 1998.

 

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Amor de centauros num fragmento de Metamorfoses de Ovídio

31 Segunda-feira Ago 2015

Posted by viciodapoesia in Crónicas

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Ovídio, Rubens

Rubens - Amor de Centauros 500pxOs seres imaginários parcialmente humanos, nas suas acções e comportamentos lendários dão em geral conta do lado bestial da humanidade. Despidos da razão e livres das convenções das sociedades humanas, permitem o retrato dos instintos à solta, sendo com isso a mitologia que os envolve exemplar.

Hoje são os centauros que vêm à conversa através de dois fragmentos de Metamorfoses de Ovídio na que é conhecida como a batalha com os Lápitas, povo da Tessália na Grécia.

Os centauros são seres monstruosos, meio homem, meio cavalo. Têm busto de homem e às vezes, também as pernas, mas a parte posterior do corpo, a partir do busto, é de cavalo e, pelo menos na época classica, têm quatro patas de cavalo e dois braços de homem. Vivem nas montanhas e nas florestas, alimentam-se de carne crua e têm costumes extremamente brutais.

in Pierre Grimal, Dicionário da Mitologia, Difel, Lisboa, 1992.

 

Transcrevo parte do relato da batalha entre centauros e humanos onde à justiça do pretexto se sucedem as atrocidade da luta.

 

Metamorfoses, Livro XII, 210-225

 

…

‘O filho do audaciosa Ixíon desposara Hipodamia, e convidara

os ferozes filhos da Nuvem [os centauros] a participar no banquete, em mesas

dispostas em filas dentro de uma gruta coberta por árvores.

Estavam presentes os chefes da Hemónia, eu próprio lá estive;

e o palácio em festa ressoava com a algazarra confusa da turba.

Eis que cantam Himeneu, o átrio enche-se do fumo das tochas,

avança a noiva rodeada de uma caterva de matronas e moças,

ela de deslumbrante beleza. Afortunado chamámos a Pirítoo

por ter tal esposa. Por pouco não nos enganámos no augúrio.

O caso é que, ó Êurito, ó mais feroz dos ferozes Centauros,

o teu coração se inflama, tanto pelo vinho, como pela visão

da jovem, e reina em ti a embriaguez duplicada pelo desejo.

De imediato, reviradas as mesas e destroçado o banquete,

a recente esposa é levada à força, arrastada pelos cabelos.

Êurito rapta Hipodamia, cada um dos outros a que lhe apraz

ou a que podia: era a imagem de uma cidade conquistada!

…

 

O relato prossegue com a ferocidade da batalha e a bestialidade dos comportamentos até que mais à frente encontramos um casal de centauros capaz dos sentimentos do amor e sacrifício.

Descrição onde a harmonia que a beleza convoca se reparte pelos detalhes da sedução amorosa. Acontece a este amor, pelo decurso da batalha, um pungente desenlace:

 

Metamorfoses, Livro XII, 393-428.

…

‘Nem a tua formosura, Cílaro, te salvaguardou do combate

(se na verdade, admitimos que tal natureza tem formosura).

A barba despontava e era da cor do ouro, e da cor do ouro

os seus cabelos caíam dos ombros até meio das omoplatas;

no rosto, um vigor encantador; a nuca, os ombros, as mãos,

o peito e tudo aquilo que nele humano era, assemelhava-se

às estátuas aplaudidas de um escultor. A sua parte equina era

irrepreensível, não inferior à humana: dá-lhe pescoço e cabeça,

e seria digno de Castor. Tão apropriado à sela é o seu dorso,

tão robusto e musculoso é o peito. É todo negro, mais negro

que negro pez, mas alva é a cauda, e de cor alva as patas.

Muitas da sua raça suspiraram por ele, mas só Hilómene

o arrebatou: fémea mais deslumbrante entre aqueles seres

meio-amimais jamais habitou nas profundezas das florestas.

Foi a única que conquistou Cílaro, com carícias, com amor

e declarações de amor. E procura também arranjar-se, tanto

quanto o corpo o permite: ora alisa os cabelos com o pente,

ora se atavia com grinaldas de rosmaninho, ora de violetas

e de rosas, outras vezes trazendo brancos lírios;

duas vezes ao dia lava o rosto no ribeiro que desliza do cimo

da floresta de Págasas, duas vezes mergulha o corpo no rio.

E, pendentes do ombro ou do flanco esquerdo, não usa peles,

senão as que lhe assentam bem, e de animais seleccionados.

O amor neles era igual. Deambulavam pelas serranias juntos,

juntos entravam nas grutas. Também então entraram juntos

no palácio do Lapita, e juntos enfrentaram a feroz batalha.

 

‘Quem lançou não se sabe, mas eis que um dardo é disparado

da esquerda e crava-se em ti, Cílaro, pouco abaixo onde o peito

sucede ao pescoço. Ao extraírem o dardo, o coração, atingido

por pequena ferida, vai-se esfriando junto com o corpo todo.

De imediato, Hilómene toma nos braços o corpo moribundo,

e, pressionando com a mão, tenta acalmar a ferida, e encosta

os lábios aos lábios dele, e procura travar a alma que foge.

Mas quando o vê morto, com palavras que o clamor impediu

de chegar aos meus ouvidos, deixou-se cair sobre o dardo

que nele estava cravado, e morreu abraçada ao marido.

…

 

Transcrito de Ovídio, Metamorfoses, tradução de Paulo Farmhouse Alberto, Livros Cotovia, Lisboa, 2007.

 

Nota iconográfica

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Rubens (1577-1640).

Se a pintura mitológica de Rubens ressuma erotismo, foi através deste  pequeno quadro da colecção Gulbenkian que passei a olhá-la integrando esta dimensão. Enquanto as telas gigantescas nos esmagam com a sua grandiloquência, nesta pintura, que pelas dimensões permite uma simultânea apreensão de conjunto e a observação do pormenor, o nervoso da pincelada dá conta de forma genial, da excitação que move os centauros na sua corrida, que, supomos, é para a materialização do prazer. A força animal que envolve o prazer erótico humano salta nesta alegoria, onde os centauros macho e fémea incorporam a violência do desejo que urge satisfazer.

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Lembrar a Grécia com Sólon (séc VII-VI a.C.): Seisachtheia e fragmentos poéticos

16 Terça-feira Jun 2015

Posted by viciodapoesia in Crónicas, Poesia Antiga, Poesia Grega

≈ 3 comentários

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carlos mendonça lopes, Sólon

O esforço quotidiano de tentar meter a vida dentro do orçamento, à medida que este encolhe, tem-me deixado pouco tempo para o blog.

Vivem-se tempos em que as finanças parecem sobrepor-se a tudo e a todos. Em notas escritas há anos, que hoje ganham foros de actualidade, dava eu conta de forma sarcástica, do que entretanto se tornou uma tragédia vivida por muitos. Dizia-se neles:

I
Vieram listas de números deitar certezas supérfluas
na multidão descontente.

II
Comunicou o governo através da televisão:
“Sai caríssima ao Tesouro a vida dos cidadãos.”

E de uma forma sentida a seguir anunciou:
“As dívidas podem ser pagas oferecendo a própria vida.”

III
Acorrem em catadupa Ministros aos funerais.
Trazem prémios para os mortos,
sorriem,
entram em êxtase,
e partem com os jornais.

Esta entrega da própria vida para pagar dívidas leva-me hoje a Sólon e à sua Seisachtheia, a postura legislativa em que a dignidade humana foi preservada pondo fim à escravatura por dividas, ou seja, a consequência de um indivíduo se tornar escravo de um seu credor quando impossibilitado de pagar as suas dividas na sociedade ateniense de há 2600 anos.

Nestes dias em que a Grécia é uma preocupação financeira para a Europa, têm-se ouvido e lido os maiores despautérios e as mais inanes tolices a propósito da história grega.

Dizer que a civilização ocidental ancora na Grécia clássica não é sem fundamento. Foi lá que o homem pensou os deuses à sua imagem e semelhança. Foi lá que as formas de governo no respeito pelo homem se inventaram, foi lá que a vida do espírito no diálogo entre iguais se praticou, e onde as artes se desligaram do sagrado para integrar a vida quotidiana, criando a harmonia que consola quem nela vive.
De muitas das criações gregas chegaram-nos apenas fragmentos. As guerras com vizinhos e as invasões encarregaram-se disso mesmo. Depois do apogeu, a Grécia foi frequentemente terra devastada, alvo da inveja de quem não tinha ou não fora capaz de conceber as maravilhas que deram dignidade e significado ao Ser Humano. Pelos museus da Europa recolhem-se fragmentos dessa devastação.

Herdámos também, ainda que hoje pareça largamente esquecido, um ordenamento jurídico a fazer 2600 anos. Foi Sólon o artífice de semelhante quadro legal, sendo a abolição da escravatura por dividas o de maior significado.

O quadro de cobrança da divida grega que hoje se desenha, configura também ele, a submissão de um povo à escravatura sem alternativa, se quiser sobreviver no xadrez das dependências globais que caracterizam o nosso mundo.
Soubessem os dirigentes, que pretendem submeter a Grécia, agir de acordo com as palavras sábias de Sólon:

E o povo melhor os seus chefes seguirá,
se não for nem muito soerguido nem rebaixado.
A ambição gera, pois, a insolência, quando uma grande riqueza segue
os homens que espírito sensato não possuem.
Fragmento F 6 W

Não se pense, no entanto que com Sólon estamos perante a defesa de qualquer política de nivelamento ou igualdade, pois, noutro fragmento, o político defende:

Riquezas desejo possuir, mas adquiri-las injustamente

não pretendo: sempre, a seguir, vem a justiça.

É esta ideia de lisura na prossecução dos negócios de dinheiro com a Grécia que parece estar ausente em toda a história recente. Sólon escreveu isto no seio de um seu poema onde o homem e a sociedade se pensam, o qual a terminar refere:

Quanto à riqueza, limite visível para os homens não há:
os que agora, entre nós, maior copia de meios têm,
açodam-se a dobrar; quem poderá satisfazê-los a todos?
O lucro, aos mortais concederam-no os imortais,
mas dele provém a perdição, e quando Zeus
a envia, em forma de punição, ora um ora outro a recebe.

Termino com a totalidade conhecida do fragmento poético F 13 W, a que pertencem as citações anteriores, conhecido como elegia das musas, para lembrar como a dignidade humana pode caber no seio destes negócios de dinheiro, e existindo a legitimidade da busca de riqueza, a justiça deve estar sempre presente nos meios de a alcançar. O arbítrio dos deuses é insondável e aos homens não cabe saber dos meandros da justiça divina. Apenas a justiça entre os homens importa.

F 13 W

Filhas esplendorosas de Mnemósine e de Zeus Olímpico,
Musas Piérides, atendei a minha prece.
Bens da parte dos deuses bem-aventurados me dai e que junto de todos
os homens de boa fama sempre goze;
ser, assim, doce aos amigos e aos inimigo amargo,
àqueles respeitável e a estes temível parecer.
Riquezas desejo possuir, mas adquiri-las injustamente
não pretendo: sempre, a seguir, vem a justiça.
A fortuna que os deuses dão fica ao lado do homem,
firme, desde os alicerces à cumeeira.
Porém, a que os homens honram, com insolência, a ordem devida
não segue, mas, levada por injustas acções,
contrafeita vem atrás e, lesta, se lhe junta a perdição.
Pequeno o seu começo é, como o fogo,
primeiro sem valor, mas em aflição acaba,
já que, para os mortais, as obras da insolência não perduram.
Zeus, porém, supervisiona o fim de tudo e, num repente,,
— tal como logo as nuvens dispersa o vento
primaveril, que ao mar escumoso e estéril
as profundezas revolve e pela terra produtora de trigo
destrói as belas lavouras, até que a mansão escarpada dos deuses atinge,
no céu, e o éter limpo de novo deixa contemplar;
rebrilha sobre a terra pingue o sol vigoroso
e belo: então, nuvem alguma se consegue ainda avistar —
assim avança o castigo de Zeus. Não é a cada falta,
como um homem mortal, que se gera a sua ira,
mas, em todo o tempo, não lhe escapa quem culposo
coração possui e sempre, no fim se revela.
Porém um logo expia a culpa. outro mais tarde; quem a evitar
na sua pessoa, sem que golpe da moira dos deuses o alcance,
sempre acabará por chegar. Inocentes, as faltas pagarão
os seus filhos ou os filhos destes, mais tarde.
Nós, os mortais, tanto o nobre como o vilão, temos este pensar:
célere corre a fama que cada um de si possui,
antes de padecer; é então que se lamenta. Mas, até essa altura,
boquiabertos, em vãs esperanças nos deleitamos.
Aquele a quem penosas enfermidades oprimem,
considera somente que vai ficar são;
outro, embora covarde, pessoa valente julga ser
e boa figura pensa o desengraçado possuir;
e se alguém é pobre, ao jugo da miséria forçado,
conseguir grandes riquezas sempre espera.
Cada um se açoda por seu lado: um pelo mar piscoso erra,
em barcos, na ânsia de lucro para casa trazer:
ventos o arrastam, terríveis,
e em poupar a vida nada cura;
outro, retalhando a terra rica em árvores, todo o ano
serve e dos recurvos arados se ocupa;
outro, das obras de Atena e do industrioso Hefestos
conhecedor, com as mãos ganha a vida;
outro é nos dons das Musas Olímpicas versado
e da adorável sabedoria a medida conhece;
a outro, fê-lo adivinho o senhor que fere ao longe, Apolo,
conhece o mal que, distante, sobre o homem avança,
ele a quem os deuses assistem: mas o destino — sempre —
nem o áugure o pode parar nem os sacrifícios.
Outros, que de Péon rico em remédios oficio exercem,
são médicos, mas também eles não atingem o fim.
Muitas vezes, da pequena dor se gera uma grande agonia
que ninguém consegue aliviar aplicando remédios benfazejos;
e ao que lastimosas doenças remoem e terríveis,
tocam-lhe com as mãos e logo fica saudável.
Assim o Destino aos mortais traz o mal e o bem,
inevitáveis são as dádivas dos deuses imortais.
Em todos os trabalhos existe perigo e ninguém sabe
onde conduzirá o projecto iniciado.
Mas o que bem tenta agir, sem contar,
em grande e penosa perdição cai;
e ao que mal actua, o deus em tudo lhe concede
bom sucesso, libertação da sua imprevidência.
Quanto à riqueza, limite visível para os homens não há:
os que agora, entre nós, maior copia de meios têm,
açodam-se a dobrar; quem poderá satisfazê-los a todos?
O lucro, aos mortais concederam-no os imortais,
mas dele provém a perdição, e quando Zeus
a envia, em forma de punição, ora um ora outro a recebe.

A legislação de Sólon terá sido publicada em 594/3 a.C. segundo a maior parte dos estudiosos.
A tradução dos fragmentos poéticos que vos deixo é da autoria de Delfim Ferreira Leão e encontra-se no seu livro Sólon Ética e Política com mais fragmentos poéticos de Sólon traduzidos e comentados. O livro foi publicado pela FCG, Lisboa 2001.

Acompanham o artigo imagens de esculturas gregas contemporâneas de Sólon.

Nota final

Este artigo foi anteriormente publicado no blog (5 Maio 2012). Como não perdeu um grão de actualidade, trago-o de novo à luz, ao encontro dos novos leitores que o blog entretanto ganhou.

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Uma vida sem livros?

23 Quinta-feira Abr 2015

Posted by viciodapoesia in Crónicas

≈ 2 comentários

Arcimboldo - O homem dos livrosNão sei como seria uma vida sem livros. O saber escrito que os livros guardam é uma dádiva apenas conhecida dos poucos que lêem, e para esses esta conversa é desnecessária.

Numa terrível história de Ray Bradbury filmada há anos por François Truffaut, Fahrenheit 451, um regime tinha proibido os livros, e todos os que fossem encontrados seriam queimados (daí o título da história pois 451 é a temperatura em graus Fahrenheit a que arde o papel). As pessoas para quem a vida sem livros não tinha sentido, fugiram para uma floresta e aí cada um encarregou-se de decorar por inteiro um livro, e assim assegurar a sua transmissão.

Muita gente vive bem sem livros, não é essa a questão. A vida faz-se da experiência de a viver e não de ler a sua ficção. Mas como vivemos tão mais felizes quando acrescentamos ao comezinho dos nossos dias a imensidão dos relatos sobre mundos que de outra forma nunca suspeitaríamos a existência. Há uma alegria interior na leitura que nos empolga, dificilmente comparável com outras experiências. Mas há mais. Nem sempre a vida nos confronta com o bem e o mal na forma decisiva que uma história ficcionada pode fazer. E há os valores. Por exemplo, aprender a verticalidade, a honradez no trato com os outros, valores hoje pouco prezados e de difícil apreensão no quotidiano, e esses, a par de outros, vamos encontrá-los e entender a sua importância em obras de ficção. Tantos outros aspectos podia trazer à conversa. Milan Kundera, num ensaio em defesa do romance, evidencia quanto a invenção do romance como o conhecemos desde o século XIX permitiu ao leitor, no espaço de algumas horas, percorrer anos de vida em ambientes geográficos e sociais que lhe são completamente estranhos no seu que fazer quotidiano, e assim apreender do mundo bastante mais que o horizonte da sua janela.

Foi com Pinóquio em versão ilustrada recebido de oferta aos cinco anos, ao que me recordo, o desvendar do mundo encantado dos livros. Sucederam-se as histórias infantis trazidas de empréstimo da biblioteca itinerante Gulbenkian, no vai-vem semanal das quartas-feiras, até às empolgantes aventuras dos 5. Depois, embarcado nestas aventuras que acrescentavam outras vidas ao meu mundo, vieram os mosqueteiros do Sr. Dumas, as aventuras escocesas e outras de Stevenson, as terríveis lutas narradas por Walter Scott, até que pelos quatorze anos entrei na literatura adulta de As Vinhas da Ira, O Vermelho e o Negro, e O Idiota de Dostoievsky. Foi a partir daí um sem fim de descobertas que também me fizeram quem sou. É sem regresso: quando se ganha o gosto de ler faz falta como pão para a boca. Por isso escrevi a abrir — Não sei como seria uma vida sem livros.

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