Etiquetas
Orfeu B. numa brilhante alegoria escrita como poema narrativo, leva-nos a percorrer uma grande superfície comercial, não em busca do prosaico do quotidiano material implicado na necessidade de subsistir, mas na procura(?) dos sentimentos e afectos que dão significado à vida.
O comprador/poeta reconhece alguma da oferta por experiência própria, outra por ouvir dizer. E se nesta viagem é parco nas escolhas, conta-nos o que aos outros compradores atrai.
Com ele visitamos uma secção de sentimentos ambivalentes, a secção das nostalgias e saudades, continuamos pela secção dos artigos relacionados com sentimentos liberados pela poesia, e chegamos à confusão na área reservada às emoções fortes seguida da dos sentimentos gerados por amantes, culminando na secção dos orgasmos. Exausto segue o poeta para as caixas de pagamento. Feito o balanço, promete voltar.
É do nosso tempo que se trata e do entendimento moderno do que devem ser as relações nos afectos — um dar e receber — com contabilidade diária de que cada um recebeu convenientemente em relação ao que pagou. Mas é mais: é a alegoria de que os sentimentos pedem ser mercadoria a que o marketing se aplica e a tecnologia intermedeia.
Lido o poema, da sua dolorosa e mansa ironia fica-nos o sabor da impotência perante a avassaladora presença das leis do mercado na vivência afectiva hoje.
Uma grande superfície de emoções e sentimento
Logo ao entrar armei-me com um modesto cestinho.
Os corredores eram imperiais e prolongavam-se a perder de vista;
sem ter qualquer plano fui navegando à vista
hesitantemente ganhando coragem
e desenvolvendo algum sentido de orientação.
Deparei imediatamente com uma concorrida
secção de sentimentos ambivalentes;
nesta pairava uma pesada ansiedade
e as pessoas passavam e serviam-se automaticamente
com o que havia nas prateleiras:
amores deslocados, repulsas mal definidas, ódios gratuitos,
amor ao próximo.
Passei então à secção das nostalgias e saudades.
Fui logo às grandes embalagens,
que por meio de letras coloridas indicavam
família distante, Brasil, desertos,
amigos e amigas espalhados pelo mundo fora,
companheiros e companheiras de física, poesia e futebol.
Estava verdadeiramente satisfeito e, de seguida, passei à secção
dos artigos relacionados com sentimentos liberados pela poesia,
que estava deserta.
Havia muita escolha e me servi de variadissimos sentimentos;
não havia nada da minha poesia,
mas pudera, está quase toda em minha casa e
em confuso estado.
Por contraste, as secções seguintes eram disputadissimas.
Na área reservada às emoções fortes,
a confusão de pessoas e carrinhos era tremenda.
As pessoas serviam-se avidamente de tudo que estava disponível:
havia cenas de pugilato entre respeitáveis senhores,
distintas senhoras a arrancarem-se os cabelos,
todos na obsessiva disputa das embalagens extra grandes
de paixões arrebatadoras, amores eternos, fúrias homicidas.
Surpreendido pela situação que me era completamente estranha,
fui arrastado para o meio da confusão,
sem qualquer hipótese dum pacífico retorno à segurança:
fui empurrado, agredido e derrubado,
contudo, no meio daquela azáfama, ainda fui capaz
de, às duras penas, avançar de gatas
e surripiar uma minúscula embalagem
duma paixão arrebatadora por ruivas.
Não tenho, após o seu uso,
qualquer queixa do produto e do seu fabricante.
No corredor seguinte, o dos sentimentos gerados por amantes,
à confusão juntavam-se gritos e insultos,
mas, felizmente, prevenido pela experiência anterior,
consegui escapar aos perigos ali presentes,
e até agarrar no ar um pacote de uma amante recatada,
tamanho médio, que voou na confusão.
Tenho-o sem abrir até hoje lá em casa.
À secção dos orgasmos não havia como chegar:
a multidão estava imobilizada pela elevadíssima
taxa de ocupação do exíguo espaço,
mas, à distância, pude apreciar a variedade de formas,
cores e tamanhos disponíveis,
embora, curiosamente, me parecesse que os orgasmos cinzentos
e com formas de sólidos de Platão fossem os mais procurados.
Finalmente, completamente exausto,
dirigi-me às caixas de pagamento.
Já na fila, uma senhora que estava logo às minhas costas
rosnou ao marido, referido-se a mim:
“Meu Deus! Que homem mais poupado!”
Olhando à volta, não havia dúvidas
que, em termos de quantidade, as minhas compras eram ridículas.
Senti-me intimidado e embaraçado com a situação
mas, apesar de tudo,
penso que passarei também eu a fazer as minhas compras
naquela grande superfície:
há uma boa variedade de produtos a preços acessíveis,
o sítio é conveniente é bem localizado
e sempre dá muito jeito haver um amplo espaço de estacionamento.
in Orfeu B., Instituto de Felicidade Teórica (contos e poemas), Edição Alma Azul, Julho 2002.
Abre o artigo a imagem de uma pintura de Andy Wahrol – 100 latas de sopa Campbell.