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Andy Wahrol - 100Campbells soup 1962 450px

Orfeu B. numa brilhante alegoria escrita como poema narrativo, leva-nos a percorrer uma grande superfície comercial, não em busca do prosaico do quotidiano material implicado na necessidade de subsistir, mas na procura(?) dos sentimentos e afectos que dão significado à vida.

O comprador/poeta reconhece alguma da oferta por experiência própria, outra por ouvir dizer. E se nesta viagem é parco nas escolhas, conta-nos o que aos outros compradores atrai.

Com ele visitamos uma secção de sentimentos ambivalentes, a secção das nostalgias e saudades, continuamos pela secção dos artigos relacionados com sentimentos liberados pela poesia, e chegamos à confusão na área reservada às emoções fortes seguida da dos sentimentos gerados por amantes, culminando na secção dos orgasmos. Exausto segue o poeta para as caixas de pagamento. Feito o balanço, promete voltar.

É do nosso tempo que se trata e do entendimento moderno do que devem ser as relações nos afectos — um dar e receber — com contabilidade diária de que cada um recebeu convenientemente em relação ao que pagou. Mas é mais: é a alegoria de que os sentimentos pedem ser mercadoria a que o marketing se aplica e a tecnologia intermedeia.

Lido o poema, da sua dolorosa e mansa ironia fica-nos o sabor da impotência perante a avassaladora presença das leis do mercado na vivência afectiva hoje.

 

Uma grande superfície de emoções e sentimento

 

Logo ao entrar armei-me com um modesto cestinho.

Os corredores eram imperiais e prolongavam-se a perder de vista;

sem ter qualquer plano fui navegando à vista

hesitantemente ganhando coragem

e desenvolvendo algum sentido de orientação.

 

Deparei imediatamente com uma concorrida

secção de sentimentos ambivalentes;

nesta pairava uma pesada ansiedade

e as pessoas passavam e serviam-se automaticamente

com o que havia nas prateleiras:

amores deslocados, repulsas mal definidas, ódios gratuitos,

amor ao próximo.

 

Passei então à secção das nostalgias e saudades.

Fui logo às grandes embalagens,

que por meio de letras coloridas indicavam

família distante, Brasil, desertos,

amigos e amigas espalhados pelo mundo fora,

companheiros e companheiras de física, poesia e futebol.

 

Estava verdadeiramente satisfeito e, de seguida, passei à secção

dos artigos relacionados com sentimentos liberados pela poesia,

que estava deserta.

Havia muita escolha e me servi de variadissimos sentimentos;

não havia nada da minha poesia,

mas pudera, está quase toda em minha casa e

em confuso estado.

 

Por contraste, as secções seguintes eram disputadissimas.

Na área reservada às emoções fortes,

a confusão de pessoas e carrinhos era tremenda.

As pessoas serviam-se avidamente de tudo que estava disponível:

havia cenas de pugilato entre respeitáveis senhores,

distintas senhoras a arrancarem-se os cabelos,

todos na obsessiva disputa das embalagens extra grandes

de paixões arrebatadoras, amores eternos, fúrias homicidas.

 

Surpreendido pela situação que me era completamente estranha,

fui arrastado para o meio da confusão,

sem qualquer hipótese dum pacífico retorno à segurança:

fui empurrado, agredido e derrubado,

contudo, no meio daquela azáfama, ainda fui capaz

de, às duras penas, avançar de gatas

e surripiar uma minúscula embalagem

duma paixão arrebatadora por ruivas.

Não tenho, após o seu uso,

qualquer queixa do produto e do seu fabricante.

 

No corredor seguinte, o dos sentimentos gerados por amantes,

à confusão juntavam-se gritos e insultos,

mas, felizmente, prevenido pela experiência anterior,

consegui escapar aos perigos ali presentes,

e até agarrar no ar um pacote de uma amante recatada,

tamanho médio, que voou na confusão.

Tenho-o sem abrir até hoje lá em casa.

 

À secção dos orgasmos não havia como chegar:

a multidão estava imobilizada pela elevadíssima

taxa de ocupação do exíguo espaço,

mas, à distância, pude apreciar a variedade de formas,

cores e tamanhos disponíveis,

embora, curiosamente, me parecesse que os orgasmos cinzentos

e com formas de sólidos de Platão fossem os mais procurados.

 

Finalmente, completamente exausto,

dirigi-me às caixas de pagamento.

Já na fila, uma senhora que estava logo às minhas costas

rosnou ao marido, referido-se a mim:

“Meu Deus! Que homem mais poupado!”

 

Olhando à volta, não havia dúvidas

que, em termos de quantidade, as minhas compras eram ridículas.

Senti-me intimidado e embaraçado com a situação

mas, apesar de tudo,

penso que passarei também eu a fazer as minhas compras

naquela grande superfície:

há uma boa variedade de produtos a preços acessíveis,

o sítio é conveniente é bem localizado

e sempre dá muito jeito haver um amplo espaço de estacionamento.

in Orfeu B., Instituto de Felicidade Teórica (contos e poemas), Edição Alma Azul, Julho 2002.

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Andy Wahrol – 100 latas de sopa Campbell.