Há uma delicadeza de flor frágil na ode anacreôntica de António Diniz da Cruz e Silva (1731-1799) que hoje transcrevo.
Envolvido no manto diáfano da paisagem primaveril encontra-se um apelo ao amor, vivido em tempo jovem, não vá a vida passar sem que esse ardor juvenil se consuma:
…
Que uma parte da vida
Aos brincos*, e aos amores é devida.
*brincos — o mesmo que brincadeiras
Corre o poema numa atmosfera de erotismo suave onde toda a natureza mergulha à chegada da primavera, fazendo uso dos amores mitológicos cujo conhecimento ajuda à sua mais profunda inteligência.
Ler este poema faz-me recordar a canção de Cole Porter, Let’s do it (Let’s Fall in Love)(1), na qual o cantor(a) dá a volta pela natureza e pelo mundo para convencer o outro(a) ao amor, enumerando quanto bichos e gentes que o fazem, o amor, evidentemente: Antes que a idade breve / Nos roube os gostos, e o prazer nos leve.
Ode anacreôntica VI
Já vem a primavera
Os prados matizando,
De verde murta e de hera
As selvas coroando;
E as aves entre as flores
Renovam docemente os seus amores.
Vénus em companhia
De mil ninfas formosas,
Pela selva sombria
Colhe lírios e rosas,
Com que longos cabelos
Destramente enastrando faz mais belos.
Os Risos, a Alegria,
Os Brincos a acompanham,
E sobre a fonte fria
Voando as asas banham;
Que logo sacudindo,
De branco orvalho a Deusa vão cobrindo.
Um deles ao parceiro
Dentro nas águas lança,
Que voando ligeiro
Dele a tomar vinganca,
Este de astúcia cheio,
Da branca Deusa foge ao branco seio.
Mil em torno adejando
Das ninfas peregrinas,
Sobre elas vão lançando
Em chuvas as boninas,
E as faces um lhe toca,
E o mais descomedido a linda boca.
Amor alegre voa
Em repetidos giros;
Ferido o vento soa
Dos amorosos tiros;
Ardem em vivas fráguas
O bosque, o ar, as flores, Ninfas, águas.
Zéfiro suspirando
A linda Clóris chama,
Que travessa ocultando
Se vai por entre a rama,
Mas ao vê-lo impaciente
Entre seus braços corre velozmente.
Os Faunos namorados
As Mélias vão seguindo,
Que contra seus agrados
Brandas iras fingindo,
Se metem de ardilosas
Da selva pelas matas mais frondosas.
A doce liberdade
Do campo afasta ufana
A triste seriedade,
Dos prazeres tirana;
Que leva em companhia
A pesada e cruel melancolia.
O campo, pois, Oh Cloe,
Solícitos busquemos
Antes que o tempo voe,
Do tempo nos gozemos
Que uma parte da vida
Aos brincos, e aos amores é devida.
Dos álamos frondosos
À sombra reclinados,
Façamos venturosos
Nossos doces cuidados;
Antes que a idade breve
Nos roube os gostos, e o prazer nos leve.
Transcrito de Obras de António Diniz da Cruz e Silva vol II, edição de Maria Luísa Malaquias Urbano, Edições Colibri, Lisboa, 2001.
As imagéns que acompanham o artigo são pormenores da pintura Primavera de Sandro Botticelli (1445-1510).
(1) Para leitores que não conheçam a canção, ouçam-na com a inexcedível beleza e gosto da interpretação de Ella Fitzgerald num dos alguns do Cole Porter Songbook.
Obrigado!
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Magnífico,,,,
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