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D Elvira e D Ramiro — poema de José Maria de Almeida Teixeira de Queirós

01 Sexta-feira Set 2017

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga

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José Maria de Almeida Teixeira de Queirós

É talvez surpresa para alguns leitores saber que o pai de Eça de Queirós, José Maria de Almeida Teixeira de Queirós (1820-1901), quando jovem poetou. Da meia dúzia de poemas que dele encontrei, todos merecem o esquecimento a que estão votados. Abro uma excepção para este D. Elvira e D. Ramiro pela fluência narrativa e correcção métrica das quadras, as quais são acompanhadas de uma rima abcb não repetitiva e variada.

O assunto do poema D Elvira e D Ramiro faz parte do grupo de histórias da época da formação da nacionalidade uma vez e outra repetidas e que, contadas em ritmo de balada, fizeram as delícias de leitores na primeira metade do século XIX. Foram um assunto privilegiado pelos poetas românticos que por volta dos anos 40 do século XIX deram vida aos heróis medievais e suas aventuras.

Em D Elvira e D Ramiro encontramos uma história de amor e separação por razões de dever, rematada numa parte pela fidelidade na distância, e na outra pelo esquecimento que a distância induz, conduzindo ao encontro de novos amores. É uma história intemporal, aqui contada com contida emoção.

 

D Elvira e D Ramiro

I
Nobre donzel D. Ramiro
Herói, formoso, infanção,
Partira de longes terras
Sobre um valente Alazão.

Ía por longas veredas,
Longa viseira calada,
Pousado o braço valente
Na aguda, pendente espada.

Seus longos cabelos loiros
Cobria um elmo doirado;
Embraçava largo escudo,
D’aço mui fino temp’rado.

Sobre a coiraça de bronze
Um peito d’aço vestia,
Onde tinha em campo d’oiro
Letreiro que assim dizia:

Se é meu corpo agigantado,
É-lhe igual minha ternura.
Minha lança espada e vida
Voto a Deus e à formosura.

Pelo silêncio da noite
Sem descansar caminhou;
Pelo alvor da madrugada
Num Paço d’armas entrou.

 

II
Estava a liça adornada
De jovens mantenedores,
Que defendiam, donosos,
O seu Deus e os seus amores.

Arautos dentro do circo,
Sem armas de cavaleiro,
Gritavam de espaço a espaço
Depois do tanger guerreiro:

Amor às Damas formosas!
Honra e glória aos Infanções!
Respeito eterno aos valentes,
Morte honrosa aos campeões!

Gentis, formosas donzelas,
De ricas jóias ornadas,
Estavam vendo o torneio
N’altos palanques sentadas.

Qual delas será na justa
Bela princesa d’amor?
Qual dará ao mais valente
O prémio de seu valor?

Oh! que a todas se avantaja
Dona Elvira em gentileza!
Que encantos de formosura
Herdara da natureza!

Seus longos, loiros cabelos
Nos largos ombros caíam;
No gentil nevado peito
Castos pomos encobriam.

Um só volver de seus olhos
Acendeu vivas paixões!
Oh! — que era alfim Dona Elvira
Conjunto de perfeições!

Ao ver-se entrar D. Ramiro
Airosamente montado,
A lança posta no recto,
Brônzeo elmo derrubado,

Manter-se sobre os estribos
Com tal garbo e gentileza,
Causou a todos na liça
Estranha e geral surpresa.

Tocou com a ponta da lança
Um brônzeo escudo doirado,
Сom força tanta que ouviu-se
Um rouco som prolongado.

Quer que um dos dois neste encontro
Dê mostras de galhardia,
Quer combate a todo o transe,
Sem armas de cortesia.

Deram d’esporas, partiram
E a terra fogo feriu;
Com força tal se encontraram,
Que nenhum dos dois se viu,

As lanças feitas em rachas
Ao fogo aéreo subiram:
Que pouco depois em brazas
Dentro da liça cairam.

Meteram mãos às espadas,
Travaram briga de morte.
Ao infanção Dom Ramiro
Foi entâo propícia a sorte.

Nenhum dos mais cavaleiros
Resistiu ao seu valor,
Foi alfim neste torneio
Dom Ramiro o vencedor.

Correu em roda da liça
Airosamente na sela:
la escolher pra princesa
Desta justa uma donzela.

Uma corava sorrindo,
Outra afectava vaidade;
Esta mostrava-lhe o rosto
No verdor da mocidade;

Aquela que não podia
Mostrar garbo e gentileza,
Chorava como saudosa
Da já passada beleza.

Loucas vaidades do mundo!
Encantos da formosura!
Tudo se acaba com o tempo!
Tudo é pó na sepultura!

Parou alfim D. Ramiro,
Baixando a lança famosa,
E proclamou D. Elvira
Das belas a mais formosa.

 

III
Num velho antigo castelo
Passeava um trovador:
Era o donzel D. Ramiro
Do torneio o vencedor.

Trovas d’amor o infanção
Cantava em doce harmonia:
Fé, constância, a D. Elvira,
E eterno amor prometia.

De repente além das serras,
Que ainda ninguém povoou,
Entre o silêncio da noite
Guerreira tuba soou.

Na alta torre do castelo
A meia noite já deu:
Ave, que a morte adivinha,
As negras asas bateu.

Logo depois um tropel
Junto ao castelo parou;
E roucamente de novo
A brônzea tuba soou.

Eram alguns cavaleiros
De ricas armas ornados;
Montavam fortes ginetes
Ricamente acobertados.

Caminhavam para o Oriente
Para as guerras da santidade
Vinham buscar D. Ramiro
Como herói da cristandade.

Soara a tuba guerreira,
O sinal para a partida.
Quanto custa a D. Ramiro
Este adeus na despedida.

Alfim do velho castelo
Vestido d’armas saiu:
Montou no forte alazão,
Para a Palestina partiu.

 

IV
Passavam já largos anos;
D. Ramiro não voltava.
Dona Elvira a malfadada
Chorando a vida passava.

Contava as horas por anos,
Entre angústias suspirando:
Saudades raiavam-lhe a alma;
Passava a vida penando.

Um lenitivo sequer
Nâo tinha nesta amargura:
É só remédio à dor
Bonança da sepultura.

Vindo uma noite um mendigo
No castelo a pernoitar,
Cativou-a a maviosa
Toada do seu cantar.

As conchas da sua murça
O seu comprido bordão,
Fizeram crer-lhe que ele era
Um peregrino cristão.

Mendigo, diz Dona Elvira,
Que vindes lá do oriente,
Dai novas de D. Ramiro
Desse guerreiro valente.

— Esse guerreiro de Cristo,
O peregrino tornou,
A uma donzela formosa
Coração e alma entregou.

Agora na Palestina
Vive contente com ela:
Que não há cá no ocidente
Dama tão linda e tão bela.

Disse o triste, e após instantes
Do castelo se ausentou;
Dura sentença de morte,
Nesta resposta agoirou!

Resposta tâo inocente
Com tanta força feriu
O peito de Dona Elvira,
Que desmaiada caiu.

Desde então sempre o seu rosto
Cobriu tristeza sombria:
As horas passou chorando;
Nunca mais teve alegria.

Entre tormentos da vida
Amargos anos passou,
Té que alfim na flor da idade
Entre angústias se finou.

 

Poema publicado pela primeira vez na Chronica litteraria da nova academia dramatica 1840  no nº6 de 4 de Abril 1840.

Abre o artigo um pormenor de uma iluminura medieval.

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Um Devoto de Baccho — Anónimo do século XIX

30 Quarta-feira Ago 2017

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga

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David Teniers o Jovem

O consumo do vinho é desde tempos ancestrais companhia para ocasiões festivas, conduzindo sem dificuldade da euforia à embriaguês ligeira, e motivo de celebração poética  desde a longínqua China à Europa.

A dependência do álcool e os comportamentos a ela associados são muito menos frequentes na poesia, e encontram-se na poesia portuguesa quando esta adoptou um ponto de vista realista, acompanhado de um julgamento moral, por finais do século XIX. É dessa época o poema anónimo que no final transcrevo.

No poema lemos, não a alegria eufórica de uma embriaguês pontual, mas o recurso ao vinho como forma de evasão à dureza do quotidiano:

…

Com uma garrafa do fino,

Faço frente ao meu destino,

E o mundo… deixo-o correr!…

…

 

Surge depois a descolagem da responsabilidade pessoal induzida por uma total dependência do álcool:

…

E eu… no chão, mesmo, deitado,

Durmo… e não me dá cuidado

O que vai… nem e que veml…

 

Narrado na primeira pessoa, se por um lado é a ligeireza eufórica da embriaguês que no seu ritmo a linguagem do poema reflecte, por outro, no desenvolvimento narrativo  do poema passamos das dificuldades da vida à forma como o vinho as dilui: Sofri muito… mas embora… / Graças ao bom vinho, agora / Já p’ra mim não há paixões! / …, fazendo parecer que estas desaparecem. E à medida que a alcoolização se consolida lemos a entrega total à depêndencia:

…

Dinheiro… tendo-o p’ra vinho,

Tenho tudo… e sou feliz!

Nunca mais me vi faminto!

…

 

O julgamento moral do homem surge quando o poeta refere a situação familiar do protagonista e o seu alheamento em relação à responsabilidade da sua causa, no que foi um estereótipo à época, provavelmente ancorado numa realidade frequente:

 

Quando a mulher se consome,

Vendo os filhos a chorar…

Coitados… porque têm fome,

E não há pão p’ra lhes dar;

Eu bebo… e, depois de quente,

Vejo-me alegre e contente,

Julgo que tudo vai bem!

…

 

 

 

Poema

 

Um Devoto de Baccho

 

Oh vinho!… Licor famoso!

A ventura devo-a a ti!

Quanto hoje no mundo gozo,

Quanto outrora padeci!

Na mais afanosa lida,

Creio, só, que, em toda a vida,

Nunca tive indigestões!…

Fomes… sedes… chuvas… frios…

Tudo atacava os meus brios,

E andei sempre aos trambolhões!

Sofri muito… mas embora…

Graças ao bom vinho, agora

Já p’ra mim não há paixões!

 

Já não sou pobre e mesquinho…

– Do meu rosto a cor o diz –

Dinheiro… tendo-o p’ra vinho,

Tenho tudo… e sou feliz!

Nunca mais me vi faminto!

Chuva… se cai… não a sinto…

Nem tornei a arrefecer!

Sem chorar a minha sorte,

Contra os revezes sou forte,

Nenhum me pode abater!

Com uma garrafa do fino,

Faço frente ao meu destino,

E o mundo… deixo-o correr!…

 

Quando a mulher se consome,

Vendo os filhos a chorar…

Coitados… porque têm fome,

E não há pão p’ra lhes dar;

Eu bebo… e, depois de quente,

Vejo-me alegre e contente,

Julgo que tudo vai bem!

Dizem que o dinheiro é raro,

Que o milho corre tão caro,

Que lhe não chega ninguém…

E eu… no chão, mesmo, deitado,

Durmo… e não me dá cuidado

O que vai… nem e que veml…

 

Transcrito de uma Folha Volante sem data nem autor, presumivelmente de final do séc XIX, atendendo à ortografia.

Transcrição com ortografia modernizada.

Abre o artigo a imagem de um detalhe de uma pintura de David Teniers o Jovem (1610-1690) – Três fumadores e bebedores no interior de uma taberna de meados do século XVII.

 

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Em torno ao Livro de Rute

28 Segunda-feira Ago 2017

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Poesia Antiga

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Biblia, Else Lasker-Schüler, Gabriela Mistral, Livro de Rute, Poussin

Não sou conhecedor da Bíblia e muito menos um seu exegeta. Passeio por lá a espaços como por um livro de sabedoria. Paro muitas vezes no Livro de Rute, a história de uma mulher, ou antes uma história da mulher.

No Livro de Rute conta-se a história de Rute, estrangeira, viúva em terra do marido que morreu. Fez-se à vida, encontrou os homens, encontrou o homem a quem se entregou, e de quem recebeu o que procurava. É essa a história no seu essencial. Sendo embora uma história com valores, o bem e o mal surgem um pouco esbatidos, e quando o questionamento se coloca, são muitas as perguntas embaraçosas para a moral dos nossos dias.

Calo-me agora e deixo-vos com o que aconteceu, numa versão poética da sua parte final :

Agora não se diga mais entre nós “deixa-me”,
e nenhum dos nossos corações se afaste.
Eu irei para onde fores
e da tua morada faço também a minha.
Os teus irmãos e companheiros hoje recebo como meus,
o Deus da tua juventude, eu o amo profundamente.
E quando por fim a morte nos visitar
quero morrer na terra em que morreres
e ser sepultada perto de ti

O Senhor sabe: a vida me tratará com tristes rigores
se outra coisa que não a morte
esconda de meus olhos a graça do teu rosto
tão amado.
Tradução de José Tolentino de Almeida

O de Rute, é um destino de controvérsia há séculos, tal como contado neste livro de exemplos.

A peculiar forma como o casamento aqui é tratado, exigindo piruetas de interpretação para a fazer caber na indissolubilidade dos laços conjugais prosseguido pela igreja católica, não ajudou à sua leitura pacífica nas sociedades que a seguem, como a nossa.

Conta para a peculiaridade do Livro de Rute o exemplo de maternidade protagonizada pela sogra de Rute, Naomi, que a acolhe quando viúva, a aconselha sobre os homens, e mais tarde recebe como de sua família o filho de Rute e do novo marido, Boaz.

Temos em Rute o exemplo de uma Mulher que não se resigna à crueldade do destino, faz-se à vida e encontra de novo o homem com quem seguirá o resto do caminho.

Esta é uma história de integração social depois de ser uma história de integração familiar. A estrangeira, além do mais já “maculada” por um casamento, integra-se num clã onde é respeitada como igual. Como estamos afastados de praticas hindus em que a viúva era condenada a morrer com o marido na pira funerária.

É esta inclusão espelho de igual dignidade entre humanos. O caminho para integrar na nossa vida a dignidade humana tem sido longo, e o mais preocupante é não ser um valor adquirido pela humanidade, essa dignidade. A barbárie, a ganância, espreitam na esquina de qualquer distracção.

Esta simbólica mulher, Rute, tocou a imaginação poética de alguns e aqui vos deixo, primeiro um poema de Gabriela Mistral (1889-1957), no original em espanhol, onde se relata o encontro de Rute no caminho para a sua nova vida.

Ruth

I
Ruth moabita a espigar va a las eras,
aunque no tiene ni un campo mezquino.
Piensa que es Dios dueño de las praderas
y que ella espiga en un predio divino.

El sol caldeo su espalda acuchilla,
baña terrible su dorso inclinado;
arde de fiebre su leve mejilla,
y la fatiga le rinde el costado.

Booz se ha sentado en la parva abundosa.
El trigal es una onda infinita,
desde la sierra hasta donde él reposa,

que la abundancia ha cegado el camino…
Y en la onda de oro la Ruth moabita
viene, espigando, a encontrar su destino.

II
Booz miró a Ruth, y a los recolectores.
Dijo: “Dejad que recoja confiada”…
Y sonriendo los espigadores,
viendo del viejo la absorta Mirada…

Eran sus barbas dos sendas de flores,
su ojo dulzura, reposo el semblante;
su voz pasaba de alcor en alcores,
pero podía dormir a un infante…

Ruth lo miró de la planta a la frente,
y fue sus ojos saciados bajando,
como el que bebe en inmensa corriente…

Al regressar a la aldea, los mozos
que ella encontró la miraron temblando.
Pero en su sueño Booz fue su esposo…

III
Y aquella noche el patriarca en la era
viendo los astros que laten de anhelo,
recordó aquello que a Abraham prometiera
Jeová: más hijos que estrellas dio al cielo.

Y suspiró por su lecho baldío,
rezó llorando, e hizo sitio en la almohada
para la que, como baja el rocío,
hacia él vendría en la noche callada.

Ruth vio en los astros los ojos con llanto
de Booz llamándola, y estremecida,
dejó su lecho, y se fue por el campo…

Dormía el justo, hecho paz e belleza.
Ruth, más callada que espiga vencida,
puso en el pecho de Booz su cabeza.

Segue-se, para terminar, uma das baladas hebraicas de Else Lasker-Schüler (1869-1945) sobre Rute,3, em tradução de João Barrento.

Rute

E tu vens procurar-me às sebes
Oiço o soluçar dos teus passos
E os meus olhos são pesadas gotas escuras.

Na minha alma nascem as flores doces
Do teu olhar e ele enche-se
Quando os meus olhos se exilam para o sono.

Na minha terra,
Junto ao poço está um anjo:
Canta a canção do meu amor,
Canta a canção de Rute.

Estes poemas, ainda que muito belos, não esgotam de forma alguma os quatro capítulos do Livro de Rute, que integra o Antigo Testamento, e é, todo ele, um poema a justificar visita recorrente.

Para os leitores com curiosidade pela leitura do Livro de Rute, sugiro que procurem uma edição da Biblia, em tradução directa do hebraico, em detrimento da versão traduzida a partir da Vulgata Latina, e muito menos uma comentada versão por quaisquer padres da Igreja.

Nota Final

Este artigo foi inicialmente publicado aqui no blog em 23 de Outubro de 2012 e agora trazido outra vez ao encontro de novos leitores,

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Comigo me desavim… e mais poesia de Francisco Sá de Miranda

25 Sexta-feira Ago 2017

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga

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Francisco Sá de Miranda, Perugino

Francisco Sá de Miranda (1481-1558) gozou em vida do apreço dos contemporâneos simultaneamente como homem e como poeta. Frequentemente voz austera contra os desmandos dos poderosos do mundo, e as suas sátiras em forma de carta com destinatário são o testemunho eloquente, foi, para a poesia que hoje nos toca, um penetrante observador das complexidades do eu no que aos afectos respeita. É famoso e permanece na memória de quem o leu, o verso:

Comigo me desavim
…

 

Tomara muitos poetas deixar para as gerações tão só um verso desta penetração reflexiva na economia da sua expressão, dando conta dos conflitos que tão frequentemente nos assaltam.

Faço agora uma curta visita a esta poesia. Com o propósito de aclarar algumas expressões antigas ou o sentido de algum verso, acompanho os poemas de uma que outra nota.

Sá de Miranda foi o introdutor em Portugal da forma poética soneto, depois duma demorada viagem por Itália com cuja produção se familiarizou.
Comecemos, pois, esta viagem com aquele que será, porventura, o seu soneto mais conhecido, e obra-prima da poesia portuguesa, O sol é grande, caem co’ a calma as aves.
Reflexão densa sobre as mudanças da vida tal como as mudanças do tempo. Só que, com estas, pelo seu carácter cíclico tudo se renova, mas na vida o envelhecimento é sem retorno.

 

Soneto

O sol é grande(1), caem co’ a calma(2) as aves
Do tempo em tal sazão(3) que soi(4) ser fria:
Esta água, que d’alto cai(5), acordar-me-ia
Do sono não, mas de cuidados graves.

Ó coisas todas vãs, todas mudaves
Qual é o coração que em vós confia?
Passando um dia vai, passa outro dia,
Incertos todos mais, que ao vento as naves!(6)

Eu vi já por aqui sombras e flores,
Vi águas e vi fontes e vi verdura,
As aves vi cantar todas d’amores.

Mudo e seco é já tudo e de mistura:
Também fazendo m’eu fui doutras cores(7)
E tudo o mais renova, isto é sem cura.

(1) Era Outono e a temperatura elevada
(2) Calor
(3) Estação do ano
(4) Costuma
(5) Perto de casa de Sá de Miranda existia uma cascata
(6) Como ao vento os navios
(7) Constata o próprio envelhecimento

 

Este soneto é a provável fonte de inspiração directa do famoso soneto de Camões: Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, …

Seguem-se, para concluir a visita, trovas à maneira antiga, ou seja à maneira da poesia recolhida no Cancioneiro de Garcia de Resende.

Comecemos com uma comovente reflexão sobre as saudades de quem se ama: Todos estes campos cheios / são de saudade e pesar, /.
Quando a distância, por maior que seja não permite esquecer, — até quão longe se estende / o vosso poder em mim! — não há beleza em redor que se sobreponha à tristeza desse afastamento.
Estas reflexões vivem na Cantiga feita nos grandes campos de Roma a seguir transcrita:

 

Cantiga feita nos grandes campos de Roma

Por estes campos sem fim,
onde a vista assim se estende,
que verei, triste de mim,
pois ver-vos se me defende (1)?

Todos estes campos cheios
são de saudade e pesar,
que vem para me matar
debaixo de céus alheios.
Em terra estranha e em ar,
mal sem meio e mal sem fim,
dor que ninguém não entende,
até quão longe se estende
o vosso poder em mim!

(1) se me defende – me é proibido

 

Na segunda trova reflecte o poeta sobre a vida despreocupada e as suas consequências: Tornou-se-me tudo em vento, / após tormento e tormento, / que eu passei cuidando em al(1);
Nela realça, com elegante concisão, como as suas consequências chegam bem antes da interiorização das más escolhas: enfim veo cedo o mal / e tarde o conhecimento.
Mas tem mais o poema: depois de olhar para si, o poeta olha em redor e diz: Vejo vir males maiores. / O tempo a que sou chegado!

 

**
Tornou-se-me tudo em vento,
após tormento e tormento,
que eu passei cuidando em al(1);
enfim veo cedo o mal
e tarde o conhecimento.
Eu assi desenganado,
Vejo vir males maiores.
O tempo a que sou chegado!
— que posso doer às dores,
e dar cuidado ao cuidado!

(1) outra coisa

 

Nesta outra trova, o poeta, desiludido do mundo e entregue à dor pessoal, contas feitas com a vida, apenas espera a morte: Em vão cá e lá cansei, / tudo me é tomado já; / agora descansarei, / ou me este mal matará; / se não… eu me matarei.

 

***
Mal, de que me eu contentei,
contas, rematadas já,
agora descansarei,
esta dor me matará;
se não… eu me matarei.

Nas cousas que não é meo (1)
é escusado cansar mais,
ir de receo em receo
e de sinais em sinais.
Em vão cá e lá cansei,
tudo me é tomado já;
agora descansarei,
ou me este mal matará;
se não… eu me matarei.

(1) Nas cousas que não podemos ultrapassar.

 

E finalmente a reflexão intemporal da luta consigo próprio e com a vida, obrigando a viver com as consequências das escolhas que pela vida fora se fazem.

 

****
Comigo me desavim,
sou posto em todo perigo;
não posso viver comigo
nem posso fugir de mim.

Com dor, da gente fugia,
antes que esta assi crecesse;
agora já fugiria
de mim, se de mim pudesse.
Que meo(1) espero ou que fim
do vão trabalho que sigo,
pois que trago a mim comigo,
tamanho imigo (2) de mim?

(1) mais
(2) inimigo

 

Abre o artigo um fragmento de uma pintura de Pietro Perugino (1450-1523), O combate entre amor e castidade.

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Odor di femina — soneto de Gonçalves Crespo

20 Domingo Ago 2017

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga

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Gonçalves Crespo, Hans Baldung

Apenas aos curiosos são concedidas as alegrias do inesperado. Mas cuidado! Como é sabido, a curiosidade pode matar. Era de alguma forma o que estava na essência do romance de Umberto Eco, O Nome da Rosa: folhear o livro proibido envenena o corpo, além da alma.

O romantismo deu-nos uma imagem da idade média que a custo desde a segunda metade do século XX os historiadores têm tentado desmistificar. Uma dessa as imagens teve a ver com a forma como a mulher era olhada e integrada na sociedade: Evas que levavam o homem ao pecado e o condenavam ao inferno pela eternidade.

Na verdade, livros e interditos têm uma história entrelaçada, e no seu exagero lapidar, o soneto de Gonçalves Crespo (1846-1883) que à frente transcrevo, Odor di femina, dá disso mesmo conta. Através de um livro, não do seu texto mas do seu conteúdo, o poema ironiza sobre o fantasma diabólico da mulher, embora sem remeter directamente para a idade média, mas fazendo do protagonista do soneto, um frade, santo homem, e por isso mesmo educado nessa visão da mulher como transmissora de pecado mortal até ao último cabelo.
Simultaneamente, o título do poema remete o conhecedor para uma famosa fala de D. Giovanni no primeiro acto da ópera de Mozart do mesmo nome. E aqui temos, na sua multiplicidade de leituras, a memória do galã sedutor a quem nenhuma mulher escapa, e nada faria morrer a não ser a sua recusa ao arrependimento por matar, sem escrúpulos, alguém que se intrometeu na sua conquista feminil. Mas essa é história que outro dia virá. Agora deixo-vos com o fatal destino do santo frade apanhado na armadilha dos livros.

 

Odor di femina

Era austero e sisudo; não havia
Frade mais exemplar nesse convento;
No seu cavado rosto macilento
Um poema de lágrimas se lia.

Uma vez que na extensa livraria
Folheava o triste um livro pardacento,
Viram-no desmaiar, cair do assento,
Convulso e torvo sobre a lagea fria.

De que morrera o venerando frade?
Em vão busco as origens da verdade,
Ninguém ma disse, explique-a quem puder.

Conste que um bibliófilo comprara
O livro estranho, e que ao abri-lo achara
Uns dourados cabelos de mulher…

 

in Obras Completas, Tavares Cardoso & Irmão Editores, Lisboa, 1897.

 

Nota final

O soneto integra a escolha de Fidelino de Figueiredo, Os Melhores Sonetos da Língua Portuguesa desde Sá de Miranda, ed 1907.

Abre o artigo um fragmento de uma pintura de Hans Baldung (1480-1545), As sete idades da mulher.
Com efeito, nunca saberemos se seria nova, velha, ou de meia idade, a possuidora do cabelo que matou o desprevenido frade. Por outro lado, sabemos que a D. Giovanni, a idade das mulheres, para o interessarem, nunca foi relevante…

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Camilo e os amigos

16 Quarta-feira Ago 2017

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga

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Aristóteles, Camilo Castelo-Branco, Goya

A amizade é coisa séria, que em tempos de Facebook tanta gente trata com volubilidade, mas é no vai-vem da vida que a sua verdadeira qualidade se vê:

 

Amigos cento e dez, e talvez mais,
Eu já contei. Vaidades que eu sentia!
Pensei que sobre a terra não havia
Mais ditoso mortal entre os mortais.
…
Um dia adoeci profundamente.
Ceguei. Dos cento e dez houve um somente
Que não desfez os laços quase rotos.
…

 

Isto escreveu Camilo Castelo-Branco no soneto que à frente transcrevo.

 

 

Já antes trouxe ao blog uma curta reflexão de Aristóteles (384 a.C.-322a.C.) sobre a amizade, que em parte aqui retomo:

…
Os que têm a amizade com base na utilidade gostam uns dos outros pelo bem que os outros lhes fazem; os que têm uma amizade com base no prazer, gostam uns dos outros pelo próprio prazer que lhes dá.
…

 

Estas formas de amizade são, portanto, meramente acidentais. E são, sobretudo, as formas que frequentemente a amizade reflecte. Há, no entanto, relações de amizade bem mais profundas, sobre as quais Aristóteles reflecte na sua Ética a Nicómaco, as quais frequentemente surgem nos romance com o tempo qualificados de juvenis, e por vezes vemos plasmadas no cinema, ainda que na nossa vida pessoal delas não tenhamos a experiência.

No outro dia, de passagem, referi como em minha opinião Howard Hawks filmou a amizade como ninguém. No anterior artigo com Aristóteles, foram outros os filmes onde de amizade se tratava, o pretexto da reflexão. Hoje é um soneto irónico e amargo de Camilo Castelo-Branco (1825-1890) que reflecte sobre este sentimento precioso.

 

No soneto, a abrir, o poeta embala-se na multidão de amigos que tem, e em como tal facto o faz feliz. Segue-se a evidência de algum cansaço decorrente das exigências de alimentar tal fluxo de amizades (e como isto espelha tanto do comportamento de hoje em relação aos amigos do Facebook, e a quase obrigação de comentar frequentes inanidades). Infelizmente, ao autor aconteceu a tragédia que põe à prova as amizades verdadeiras. E de tantos amigos glorificados, apenas restou um, como o soneto refere em amarga e irónica conclusão.

 

 

Os Meus Amigos

Amigos cento e dez, e talvez mais,
Eu já contei. Vaidades que eu sentia!
Pensei que sobre a terra não havia
Mais ditoso mortal entre os mortais.
 
Amigos cento e dez, tão serviçais,
Tão zelosos das leis da cortesia,
Que eu, já farto de os ver, me escapulia
Às suas curvaturas vertebrais.
 
Um dia adoeci profundamente.
Ceguei. Dos cento e dez houve um somente
Que não desfez os laços quase rotos.

— Que vamos nós (diziam) lá fazer?
Se ele está cego, não nos pode ver…
Que cento e nove impávidos marotos!

 

 

Para o Luis que além do mais, me ajudou a localizar a publicação original do soneto.

 

 

Notícia bibliográfica

 

O soneto, inédito à data da morte de Camilo (1 de Junho de 1890), teve publicação póstuma nesse ano, na Revista Illustrada, (vol I, ano 1890, nº 11 de 15 Setembro, pág. 123).
A revista, quinzenal, iniciou publicação em Abril de 1890.
Informação do Camilianista Henrique Marques, Camilliana, ed. 1894.

 

 

Abre o artigo a imagem de um pormenor da pintura de Goya (1746-1828), A merenda à beira do Manzanares.

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Dois vilancetes e uma sentença de D. Francisco de Portugal

14 Segunda-feira Ago 2017

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga

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D. Francisco de Portugal, Irmãos Limbourg

Falar de amor e desejo, publicamente, através da poesia, no século XVI, tem as suas exigências de convenção, ainda que, sem grande subtileza espreite o eterno da atracção homem/mulher.
Vem isto a propósito de um vilancete de D. Francisco de Portugal ( 14??-1549), 1º Conde de Vimioso, que a seguir transcrevo. Nele o poeta recusa ousar o desejo que supostamente ofenderia o pudor da amada. A seguir diz-nos o poeta quanto esse desejo o incendeia, pois mesmo quando, por não o satisfazer, chama a morte como remédio, o desejo não parte, e permanece.

 

Vilancete

Meu amor, tanto vos amo,
Que meu desejo não ousa
Desejar nenhuma cousa

Porque se a desejasse
Logo a esperaria
E se a eu esperasse
Sei que vos anojaria.
Mil vezes a morte chamo
E meu desejo não ousa
Desejar-me outra cousa.

 

Agora, é a dor da ausência da amada o que o poeta sofre neste outro vilancete  de elegante versificação:

 

Vilancete

Meu bem sem vos ver
se vivo um dia
viver nam queria.

Caland’e sofrendo
meu mal sem medida,
mil mortes na vida
sinto não vos vendo.
E pois que vivendo
moiro todavia,
viver nam queria.

 

São poemas ao gosto de uma época que, na simplicidade da sua versificação, guardam o eterno do amor na ansiedade do desejo e dor do afastamento.

Termino esta pequena amostra da poesia de D. Francisco de Portugal com uma das suas sentenças rimadas:

 

Sentença

Que grande espanto é cuidar
Como se sustém o mundo.
Quam perto está de pasmar
Quem às cousas vê o fundo.

 

Publicado no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende.

Transcritos de Sentenças de D. Francisco de Portugal, 1º Conde de Vimioso,  seguidas das suas poesias publicadas no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, revistas e prefaciaras por Mendes dos Remédios, Coimbra, França Amado Editor, 1905.

Abre o artigo a imagem de um detalhe de uma iluminura dos Irmãos Limbourg (início sec. XV), Les Trés Riches Heures du Duc du Berry, cena cortês no mês de Abril.

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Um sonho num epigrama de Macédonios

10 Quinta-feira Ago 2017

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga, Poesia Grega

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Macedónios, Picasso

Há pouco tempo transcrevi aqui no blog três sonhos descritos por Georg Trakl, mais pesadelos que sonhos memoráveis, dando conta de como os desastres da vida nos alucinam. Hoje viro-me para os prazeres que a vida também traz e dou aos leitores um lamento de Macédonios (c.550) por ver interrompido um sonho deleitoso e digno de memória. O poema, um epigrama, consta do volume V da Antologia Grega.

 

Epigrama

Tinha em meus braços, esta noite em sonho
Uma adolescente travessa e risonha.
Pouco preocupada em contrariar
Meus mínimos desejos, a tudo diz sim.
Mas Eros ciumento, que nos espiava
Cortando-me o sono pôs fim às delícias.
É assim que Amor, mesmo em nossos sonhos
Se mostra invejoso dos nossos prazeres.

 

Adaptação a partir da tradução francesa de Pierre Laurens por Carlos Mendonça Lopes.

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Picasso, Dorminhocos, de 1965-7.

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Uma décima de António G. S. Malhão

05 Sábado Ago 2017

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga

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António G. S. Malhão

É certamente uma curiosidade de arqueólogo que me leva a deambular pelos livros de poesia antiga perturbando o merecido esquecimento a que a grande maioria tem direito. Mas uma irrefreável curiosidade sobre estes universos desaparecidos faz-me continuar apesar da extensão de irrelevâncias encontradas.
Enquanto captar a atmosfera de uma época é tarefa de historiador, para um amante de poesia trata-se de procurar a pérola perdida sob a poeira do tempo. É uma pesquisa raramente conseguida, mas o desafio permanece.

 

Hoje apresento aos leitores uma décima de António Gomes da Silveira Malhão (1758-1785) perdida entre os relatos da vida e feitos de seu irmão Francisco.

Trata-se de uma deliciosa galanteria ao rosto de uma donzela, escrita à medida do gosto de finais do século XVIII:

 

 

Décima

Quis um dia a natureza
Fazer uma cousa rara,
E consta que meditara
Mais de uma vez nesta empresa:
Da branca neve à beleza
Juntou do carmim a cor;
Pôs-lhe fogo abrasador,
Tudo o que é belo lhe uniu,
E desta massa saiu
O teu rosto encantador.

 

Transcrito de Vida e Feitos de Francisco Manuel Gomes da Silveira Malhão, Tomo III, Lisboa, 1797.

 

Deste mesmo António G. S. Malhão já antes transcrevi no blog uma original Ode sobre as perfeições da amada.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura a pastel de Rosalba Carriera (1675-1757).

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Fragmento de O Melro — poemeto de Guerra Junqueiro

01 Terça-feira Ago 2017

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga

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Guerra Junqueiro

Madrugada cedo, ainda o dia mal desponta, acordo com o chilrear dos melros a entrar pela janela.
É uma alegria contagiosa, aquele chilrear, e por mais de uma vez, já completamente desperto e sem sono, me tenho lembrado do poemeto de Guerra Junqueiro (1859-1923), O Melro. Nele temos uma família de melros a cuidar da sobrevivência e um padre lavrador em guerra com os pássaros. O padre, homem prosaico e sem poesia, era, como o descreve o poeta,

 

… um velhote conservado
Malicioso, alegre, prazenteiro;
Não tinha pombas brancas no telhado,
Nem rosas no canteiro;
Andava às lebres pelo monte, a pé,
      Livre de reumatismos,
Graças a Deus, e graças a Noé.
…

 

que apenas vê dos melros o estrago na horta

…
— Nada, já não tem jeito! este ladrão
      Dá cabo dos trigais!
      Qual seria a razão
Porque Deus fez os melros e os pardais?!
…

 

 

O poemeto, longa digressão sobre valores, dando conta de um hedonismo apaziguador, acrescenta ao encanto da natureza, a serenidade transmitida pela imutabilidade do ciclo solar:

 

…

Vinha tombando a noite silenciosa;
E caía por sobre a natureza
Uma serena paz religiosa,
      Uma bela tristeza
Harmónica, viril, indefinida.
      A luz crepuscular
Infiltra-nos na alma dolorida
Um misticismo heróico e salutar.
As árvores, de luz inda doiradas,
Sobre os montes longínquos, solitários,
Tinham tomado as formas rendilhadas
      Das plantas dos herbários.

…

 

Revela-se ainda o poema uma alegoria sobre o valor da liberdade: Encarcerar a asa / É encarcerar o pensamento humano.

 

O poema foi à época, quando integrado em  A Velhice do Padre Eterno, vigorosa denúncia de atitudes de algum clero, incompatíveis com o sacerdócio que haviam escolhido, e neste poemeto ridicularizado no propósito do padre de fazer pagar aos melros o pecado de Eva:

 

… Andando no quintal um certo dia / … / Enxergou por acaso (que alegria! / Que ditoso momento!) / Um ninho com seis melros escondido / … / E ao vê-los exclamou enfurecido: / — A mãe comeu o fruto proibido; / Esse fruto era a minha sementeira; / … / Era o pão, e era o milho; / Transmitiu-se o pecado. / E, se a mãe não pagou, que pague o filho. / É doutrina da Igreja. Estou vingado!

 

 

Os combates anti-clericais do final da monarquia estão enterrados, mas do poema vale a pena reter a comovente descrição alegórica da perseguição e soçobro dos mais fracos na sua labuta de sobrevivência, bem como o vigoroso hino ao amor maternal na parte final.

 

 

O MELRO
[fragmento]

  O melro, eu conheci-o:
Era negro, vibrante, luzidio,
      Madrugador, jovial;
      Logo de manhã cedo
Começava a soltar d’entre o arvoredo
Verdadeiras risadas de cristal.
E assim que o padre cura abria a porta
      Que dá para o passal,
Repicando umas finas ironias,
      O melro d’entre a horta
      Dizia-lhe: — Bons dias!
      E o velho padre cura
Não gostava daquelas cortesias.
O cura era um velhote conservado
Malicioso, alegre, prazenteiro;
Não tinha pombas brancas no telhado,
Nem rosas no canteiro;
Andava às lebres pelo monte, a pé,
      Livre de reumatismos,
Graças a Deus, e graças a Noé.

 

O melro desprezava os exorcismos
      Que o padre lhe dizia:
Cantava, assobiava alegremente;
      Até que ultimamente
      O velho disse um dia:
— Nada, já não tem jeito! este ladrão
      Dá cabo dos trigais!
      Qual seria a razão
Porque Deus fez os melros e os pardais?!
      E o melro no entretanto,
      Honesto como um santo,
      Mal vinha no oriente
      A madrugada clara
Já ele andava jovial, inquieto,
Comendo alegremente, honradamente,
Todos os parasitas da seara
Desde a formiga ao mais pequeno insecto.
E apesar disto o rude proletário,
      O bom trabalhador,
Nunca exigiu aumento de salário.
Que grande tolo o padre confessor!

 

Foi para a eira o trigo;
      E armando uns espantalhos
      Disse o abade consigo:
— Acabaram-se as penas e os trabalhos.
Mas logo de manhã, maldito espanto!
      O abade, inda na cama,
Ouviu do melro o costumado canto;
      Ficou ardendo em chama;
      Pega na caçadeira
      Levanta-se dum salto,
E vê o melro a assobiar na eira
Em cima do seu velho chapéu alto!
      Chegou a coisa a termo
Que o bom do padre cura andava enfermo,
      Não falava nem ria,
Minado por tão intimo desgosto;
E o vermelho oleoso do seu rosto
Tornava-se amarelo dia a dia.
E foi tal a paixão, a desventura,
(Muito embora o leitor não me acredite)
      Que o bom do padre cura
      Perdera… o apetite!

 

Andando no quintal um certo dia
Lendo em voz alta o Velho Testamento
Enxergou por acaso (que alegria!
      Que ditoso momento!)
Um ninho com seis melros escondido
      Entre uma carvalheira.
E ao vê-los exclamou enfurecido:
— A mãe comeu o fruto proibido;
Esse fruto era a minha sementeira;
      Era o pão, e era o milho;
      Transmitiu-se o pecado.
E, se a mãe não pagou, que pague o filho.
É doutrina da Igreja. Estou vingado!
E engaiolando os pobres passaritos
      Soltava exclamações:
      — É uma praga. Malditos!
Dão-me cabo de tudo estes ladrões!
Raios os partam! andai lá que enfim…
E deixando a gaiola pendurada
Continuou a ler o seu latim
      Fungando uma pitada.

 

Vinha tombando a noite silenciosa;
E caía por sobre a natureza
Uma serena paz religiosa,
      Uma bela tristeza
Harmónica, viril, indefinida.
      A luz crepuscular
Infiltra-nos na alma dolorida
Um misticismo heróico e salutar.
As árvores, de luz inda doiradas,
Sobre os montes longínquos, solitários,
Tinham tomado as formas rendilhadas
      Das plantas dos herbários.
Recolhiam-se a casa os lavradores.
Dormiam virginais as coisas mansas:
      Os rebanhos e as flores,
      As aves e as crianças.
Ia subindo a escada o velho abade;
A sua negra, atlética figura
Destacava na frouxa claridade,
      Como uma nódoa escura.
E introduzindo a chave no portal
      Murmurou entre dentes:
      — Tal e qual… tal e qual!…
Guisados com arroz são excelentes.

 

Nasceu a lua. As folhas dos arbustos
Tinham o brilho meigo, aveludado
Do sorriso dos mártires, dos justos.
Um eflúvio dormente e perfumado
Embebedava as seivas luxuriantes.
Todas as forças vivas da matéria
Murmuravam dialogos gigantes
      Pela amplidão etérea.
São precisos silencios virginais,
Disposições simpáticas, nervosas,
Para ouvir estas falas silenciosas
      Dos mudos vegetais.
As orvalhadas, frescas espessuras
Pressentiam-se quasi a germinar.
Desmaiavam-se as cândidas verduras
Nos magnetismos brancos do luar

 

E nisto o melro foi direito ao ninho.
Para o agasalhar andou buscando
Umas penugens doces como arminho,
Um feltrozito assetinado e brando.
      Chegou lá, e viu tudo.
Partiu como uma frecha; e louco e mudo
Correu por todo o matagal; em vão!
Mas eis que solta de repente um grito
Indo encontrar os filhos na prisão.
— Quem vos meteu aqui?! O mais velhito
Todo tremente, murmurou então:
— Foi aquele homem negro. Quando veio
Chamei, chamei… Andavas tu na horta…
Ai que susto, que susto! Ele é tão feio!…
Tive-lhe tanto medo!… Abre esta porta,
E esconde-nos debaixo da tua asa!
Olha, já vão florindo as açucenas;
Vamos a construir a nossa casa
      Num bonito lugar…
Ai! quem me dera, minha mãe, ter penas
      Para voar, voar!
      E o melro alucinado
      Clamou:
             — Senhor! Senhor!
É por ventura crime ou é pecado
      Que eu tenha muito amor
      A estes inocentes?!
Ó natureza, ó Deus, como consentes
Que me roubem assim os meus filhinhos,
      Os filhos que eu criei!
Quanta dor, quanto amor, quantos carinhos,
      Quanta noite perdida
         Nem eu sei…
      E tudo, tudo em vão!
      Filhos da minha vida!
      Filhos do coração!!…
Não bastaria a natureza inteira,
Não bastaria o céu para voardes,
E prendem-vos assim desta maneira!…
      Covardes!
A luz, a luz, o movimento insano
Eis o aguilhão, a fé que nos abrasa…
Encarcerar a asa
É encarcerar o pensamento humano.
A culpa tive-a eu! quasi à noitinha
      Parti, deixei-os sós…
A culpa tive-a eu, a culpa é minha,
      De mais ninguém!… Que atroz!
      E eu devia sabê-lo!
Eu tinha obrigação de adivinhar…
Remorso eterno! eterno pesadelo!…

 

Falta-me a luz e o ar!… Oh, quem me dera
      Ser abutre ou ser fera
Para partir o cárcere maldito!…
E como a noite é límpida e formosa!
      Nem um ai, nem um grito…
Que noite triste! oh noite silenciosa!…

 

E a natureza fresca, omnipotente,
      Sorria castamente
Com o sorriso alegre dos heróis.
      Nas sebes orvalhadas,
Entre folhas luzentas como espadas,
      Cantavam rouxinóis

 

…
E entre a luz do luar e os sons e as flores,
Na atonia cruel das grandes dores,
      O melro solitário
Jazia inerte, exanime, sereno,
Bem como outrora a mãe do Nazareno
      Na noite do calvário!…
 

O Melro teve inicialmente publicação autónoma, sendo posteriormente integrado no livro A Velhice do Padre Eterno.

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