É talvez surpresa para alguns leitores saber que o pai de Eça de Queirós, José Maria de Almeida Teixeira de Queirós (1820-1901), quando jovem poetou. Da meia dúzia de poemas que dele encontrei, todos merecem o esquecimento a que estão votados. Abro uma excepção para este D. Elvira e D. Ramiro pela fluência narrativa e correcção métrica das quadras, as quais são acompanhadas de uma rima abcb não repetitiva e variada.
O assunto do poema D Elvira e D Ramiro faz parte do grupo de histórias da época da formação da nacionalidade uma vez e outra repetidas e que, contadas em ritmo de balada, fizeram as delícias de leitores na primeira metade do século XIX. Foram um assunto privilegiado pelos poetas românticos que por volta dos anos 40 do século XIX deram vida aos heróis medievais e suas aventuras.
Em D Elvira e D Ramiro encontramos uma história de amor e separação por razões de dever, rematada numa parte pela fidelidade na distância, e na outra pelo esquecimento que a distância induz, conduzindo ao encontro de novos amores. É uma história intemporal, aqui contada com contida emoção.
D Elvira e D Ramiro
I
Nobre donzel D. Ramiro
Herói, formoso, infanção,
Partira de longes terras
Sobre um valente Alazão.
Ía por longas veredas,
Longa viseira calada,
Pousado o braço valente
Na aguda, pendente espada.
Seus longos cabelos loiros
Cobria um elmo doirado;
Embraçava largo escudo,
D’aço mui fino temp’rado.
Sobre a coiraça de bronze
Um peito d’aço vestia,
Onde tinha em campo d’oiro
Letreiro que assim dizia:
Se é meu corpo agigantado,
É-lhe igual minha ternura.
Minha lança espada e vida
Voto a Deus e à formosura.
Pelo silêncio da noite
Sem descansar caminhou;
Pelo alvor da madrugada
Num Paço d’armas entrou.
II
Estava a liça adornada
De jovens mantenedores,
Que defendiam, donosos,
O seu Deus e os seus amores.
Arautos dentro do circo,
Sem armas de cavaleiro,
Gritavam de espaço a espaço
Depois do tanger guerreiro:
Amor às Damas formosas!
Honra e glória aos Infanções!
Respeito eterno aos valentes,
Morte honrosa aos campeões!
Gentis, formosas donzelas,
De ricas jóias ornadas,
Estavam vendo o torneio
N’altos palanques sentadas.
Qual delas será na justa
Bela princesa d’amor?
Qual dará ao mais valente
O prémio de seu valor?
Oh! que a todas se avantaja
Dona Elvira em gentileza!
Que encantos de formosura
Herdara da natureza!
Seus longos, loiros cabelos
Nos largos ombros caíam;
No gentil nevado peito
Castos pomos encobriam.
Um só volver de seus olhos
Acendeu vivas paixões!
Oh! — que era alfim Dona Elvira
Conjunto de perfeições!
Ao ver-se entrar D. Ramiro
Airosamente montado,
A lança posta no recto,
Brônzeo elmo derrubado,
Manter-se sobre os estribos
Com tal garbo e gentileza,
Causou a todos na liça
Estranha e geral surpresa.
Tocou com a ponta da lança
Um brônzeo escudo doirado,
Сom força tanta que ouviu-se
Um rouco som prolongado.
Quer que um dos dois neste encontro
Dê mostras de galhardia,
Quer combate a todo o transe,
Sem armas de cortesia.
Deram d’esporas, partiram
E a terra fogo feriu;
Com força tal se encontraram,
Que nenhum dos dois se viu,
As lanças feitas em rachas
Ao fogo aéreo subiram:
Que pouco depois em brazas
Dentro da liça cairam.
Meteram mãos às espadas,
Travaram briga de morte.
Ao infanção Dom Ramiro
Foi entâo propícia a sorte.
Nenhum dos mais cavaleiros
Resistiu ao seu valor,
Foi alfim neste torneio
Dom Ramiro o vencedor.
Correu em roda da liça
Airosamente na sela:
la escolher pra princesa
Desta justa uma donzela.
Uma corava sorrindo,
Outra afectava vaidade;
Esta mostrava-lhe o rosto
No verdor da mocidade;
Aquela que não podia
Mostrar garbo e gentileza,
Chorava como saudosa
Da já passada beleza.
Loucas vaidades do mundo!
Encantos da formosura!
Tudo se acaba com o tempo!
Tudo é pó na sepultura!
Parou alfim D. Ramiro,
Baixando a lança famosa,
E proclamou D. Elvira
Das belas a mais formosa.
III
Num velho antigo castelo
Passeava um trovador:
Era o donzel D. Ramiro
Do torneio o vencedor.
Trovas d’amor o infanção
Cantava em doce harmonia:
Fé, constância, a D. Elvira,
E eterno amor prometia.
De repente além das serras,
Que ainda ninguém povoou,
Entre o silêncio da noite
Guerreira tuba soou.
Na alta torre do castelo
A meia noite já deu:
Ave, que a morte adivinha,
As negras asas bateu.
Logo depois um tropel
Junto ao castelo parou;
E roucamente de novo
A brônzea tuba soou.
Eram alguns cavaleiros
De ricas armas ornados;
Montavam fortes ginetes
Ricamente acobertados.
Caminhavam para o Oriente
Para as guerras da santidade
Vinham buscar D. Ramiro
Como herói da cristandade.
Soara a tuba guerreira,
O sinal para a partida.
Quanto custa a D. Ramiro
Este adeus na despedida.
Alfim do velho castelo
Vestido d’armas saiu:
Montou no forte alazão,
Para a Palestina partiu.
IV
Passavam já largos anos;
D. Ramiro não voltava.
Dona Elvira a malfadada
Chorando a vida passava.
Contava as horas por anos,
Entre angústias suspirando:
Saudades raiavam-lhe a alma;
Passava a vida penando.
Um lenitivo sequer
Nâo tinha nesta amargura:
É só remédio à dor
Bonança da sepultura.
Vindo uma noite um mendigo
No castelo a pernoitar,
Cativou-a a maviosa
Toada do seu cantar.
As conchas da sua murça
O seu comprido bordão,
Fizeram crer-lhe que ele era
Um peregrino cristão.
Mendigo, diz Dona Elvira,
Que vindes lá do oriente,
Dai novas de D. Ramiro
Desse guerreiro valente.
— Esse guerreiro de Cristo,
O peregrino tornou,
A uma donzela formosa
Coração e alma entregou.
Agora na Palestina
Vive contente com ela:
Que não há cá no ocidente
Dama tão linda e tão bela.
Disse o triste, e após instantes
Do castelo se ausentou;
Dura sentença de morte,
Nesta resposta agoirou!
Resposta tâo inocente
Com tanta força feriu
O peito de Dona Elvira,
Que desmaiada caiu.
Desde então sempre o seu rosto
Cobriu tristeza sombria:
As horas passou chorando;
Nunca mais teve alegria.
Entre tormentos da vida
Amargos anos passou,
Té que alfim na flor da idade
Entre angústias se finou.
Poema publicado pela primeira vez na Chronica litteraria da nova academia dramatica 1840 no nº6 de 4 de Abril 1840.
Abre o artigo um pormenor de uma iluminura medieval.
Muito precioso este seu espaço.
Que bela descoberta eu fiz hoje.
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Obrigado!
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