• Autor
  • O Blog

vicio da poesia

Category Archives: Poesia Antiga

Contemplar a perfeição com um soneto de Dante

09 Segunda-feira Jul 2018

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga

≈ Deixe um comentário

Etiquetas

Dante Alighieri

A evidência da perfeição ao contemplar a beleza na terra transmite-nos uma sensação do divino, por vezes expressa em poesia.
Nas suas manifestações poéticas mais frequentes é a beleza física nos seus detalhes que é cantada dando conta da perfeição que o belo transmite. Hoje o poeta — Dante Alighieri (1265-1321) — encontra a beleza no recato e gentileza de maneiras, transmitindo uma certa ideia de perfeição da mulher tal uma cousa que do céu acuda / à terra, por milagre revelada.

 

 

Soneto no cap. XXVI de Vita Nuova

Parece tão gentil, tão recatada,
minha senhora quando alguém saúda,
que toda a língua treme e fica muda
e olhá-la até seria ideia ousada.

Quando ela passa, ouvindo-se louvada,
benignamente a humildade a escuda,
tal uma cousa que do céu acuda
à terra, por milagre revelada.

Tal graça ao coração de quem na mira
está pelos olhos uma doçura a pôr
que não pode entender quem a não prove;

e dos lábios parece que se move
um espírito suave e só de amor
que vai dizendo à alma assim: Suspira.

Tradução de Vasco Graça Moura

 

 

Para o mesmo poema podemos ler ainda outra tradução, esta de Jorge Vaz de Carvalho, mais fiel ao texto original mas não tão fluente quanto ao poema em português:

 

 

Soneto no cap. XXVI de Vita Nuova

Parece tão gentil e honesta estar
a dama minha quando alguém saúda,
que toda a língua treme e fica muda,
e os olhos não se atrevem olhar.

Ela avança, ouvindo-se louvar,
benignamente em vestia sisuda;
parece coisa que do céu acuda
à terra um milagre a mostrar.

Mostrar-se tão perfeita a quem mira,
que ao coração p’los olhos dá dulçor,
que o não pode entender quem não o prova:

parece que dos lábios seus se mova
suave espírito pleno de amor,
que vai dizendo à alma: Tu, suspira.

Tradução de Jorge Vaz de Carvalho

 

 

Soneto original

Tanto gentile e tanto onesta pare
la donna mia, quand’ella altrui saluta,
ch’ogne lingua devèn, tremando, muta,
e li occhi no l’ardiscon di guardare.

Ella si va, sentendosi laudare,
benignamente d’umiltà vestuta,
e par che sia una cosa venuta
da cielo in terra a miracol mostrare.

Mostrasi sì piacente a chi la mira
che dà per li occhi una dolcezza al core,
che ‘ntender no la può chi no la prova;

e par che de la sua labbia si mova
un spirito soave pien d’amore,
che va dicendo a l’anima: Sospira.

 

 

Poemas transcritos respectivamente de A Vita Nuova de Dante Alighieri, tradução e estudo introdutório de Vasco Graça Moura, Bertrand Editora, Lda, Lisboa, 1995; e Vida Nova, tradução, introdução e notas de Jorge Vaz de Carvalho, Relógio d’Agua Editores, Lisboa, 2010.
Ambas as edições são bilingues.

 

 

Abre o artigo a imagem de um fragmento de um fresco no Castelo del Buonconsiglio em Trento, Itália. Trata-se se uma alegoria ao mês de Junho, no ciclo dos meses, parte dos esplendidos frescos do castelo. A autoria dos frescos é anónima, e terão sido realizados provavelmente em finais do século XIV.

 

Partilhar:

  • Tweet
  • Carregue aqui para enviar por email a um amigo (Abre numa nova janela) E-mail
  • Partilhar no Tumblr
  • Clique para partilhar no WhatsApp (Abre numa nova janela) WhatsApp
  • Pocket
  • Clique para partilhar no Telegram (Abre numa nova janela) Telegram
Gosto Carregando...

Gomes Leal — Romantismo

29 Sexta-feira Jun 2018

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga

≈ Deixe um comentário

Etiquetas

Gomes Leal, Píerre-Auguste Renoir, Suzanne Valadon

A ironia cáustica de Gomes Leal (1848-1921) debruça-se no poema Romantismo sobre um traço distintivo da poesia romântica — a mulher e o sonho de a ter

…
Oh como é bela! — Tem na luz do olhar
Quais violetas quando as fecha o sono,
Não sei que doce e lânguido abandono,
Não sei que vago que nos faz cismar!…
…

 

E neste cismar a mulher ideal, o nosso homem-poeta sonha, em sucessivos transes, poder ser o herói sedutor de populares histórias românticas, qual D.Juan de Lord Byron:

…
Como eu quisera ser, nos sonhos dela,
Um rei das lendas, o fatal D. Juan,
…

 

ou o protagonista da grandeza da paixão do Rei de Tule que a balada de Goethe imortalizou:
 …
Como eu deitara a minha taça d’ouro,
Por causa dela, duma torre alta!…
…

 

 

A paixão romântica, embrulhada na fantasia de uma realidade sonhada é ainda moeda corrente nos nossos dias. Mudou o modelo da mulher ou do homem ideais, mas as juras de amor eterno e casamentos para a vida são ainda aspiração de multidões. E por mais que a realidade em redor o desminta, a fantasia leva o pensamento a considerar que isso só acontece aos outros. É a permanência dessa mentalidade romântica surgida nos seus detalhes com os alvores do século XIX, que aqui se revela, e neste poema Gomes Leal aflora de forma crítica.

Ao longo do poema percorremos um cenário entre a trivialidade material e a grandiloquência que a imaginação permite. A ironia transparece na vulgaridade do quadro em que toda esta grandeza imaginada decorre: a observação indiscreta da intimidade de uma jovem mulher através da janela de casa:

 

Quando ergue o transparente da janela,
Ou que o seu quarto se inundou de luz,
…
Como eu a espreito, palpitante o seio,
Como eu a sigo nos seus gestos vários,
Naquele quarto, aquele ninho cheio
Da doce voz dos joviais canários!…

 

 

E todo o sonhar romântico termina na banalidade dos dias:

…
Um cravo murcha, numa jarra, a um canto,
— E as aves voam, debicando o alpiste.

 

Traz este poema em si, além do circunstancialismo do seu assunto, uma chamada de atenção para o que muitas vezes é atitude de vida: a procrastinação plasmada no pendor contemplativo do que se deseja em detrimento da acção para o conseguir, e aqui caricaturado com benévola bonomia. Ter disso consciência é já parte do caminho feito para a vencer.
E agora, leitor, deixo-lhe o poema total:

 

 

Romantismo

Quando ergue o transparente da janela,
Ou que o seu quarto se inundou de luz,
Eu amo vê-la, sedutora e bela,
— Longos cabelos sobre os ombros nus.

Oh como é bela! e como a fico a olhar,
Dos seus cabelos desatando a fita!…
Lembram-me as virgens que do austero Eremita
Vinham as noites de oração tentar.

Oh como é bela! — Tem na luz do olhar
Quais violetas quando as fecha o sono,
Não sei que doce e lânguido abandono,
Não sei que vago que nos faz cismar!…

Como eu a espreito, palpitante o seio,
Como eu a sigo nos seus gestos vários,
Naquele quarto, aquele ninho cheio
Da doce voz dos joviais canários!…

Como eu quisera ser, nos sonhos dela,
Um rei das lendas, o fatal D. Juan,
Pirata mouro, em galeões à vela,
Com minaretes sob o céu do Iran!…

Como eu quisera — e que vontade intensa! —
Só pelo brilho dessa longa trança,
Ser cavaleiro de invencível lança,
Ou rei normando duma ilha imensa!…

Como eu quisera, no seu pensamento,
Ser o rei bardo no rochedo duro,
E ambos, fugindo, recortado vento,
Sobre a garupa dum cavalo escuro!…

Se me morresse, que comprido choro!
Como vergara sob a Cruz de Malta!
Como eu deitara a minha taça d’ouro,
Por causa dela, duma torre alta!…

………………………………………………………

E assim por ela fico preso, enquanto
O sol se esconde no ocidente triste…
Um cravo murcha, numa jarra, a um canto,
— E as aves voam, debicando o alpiste.

 

in Claridades do Sul, segunda edição revista e aumentada, Empresa da História de Portugal, Lisboa, 1901.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Pierre-Auguste Renoir (1841-1919), Retrato de mulher (Suzanne Valadon).
Suzanne Valadon (1865-1938) além de modelo em algumas das mais famosas pinturas de Renoir, foi, depois de ser empregada de mesa de café e acrobata, modelo e amante de pintores do impressionismo. Ensinada por Degas (1834-1917),  começou a pintar, sendo mais tarde a primeira mulher admitida na  Société Nationale des Beaux-Arts. Foi também e a mãe do pintor Maurice Utrillo (1883-1955).
Deixo a seguir a imagem de uma sua pintura de 1923, La chambre bleue, a lembrar Matisse (1869-1954), pertença da colecção do Centro Georges Pompidou.

 

Partilhar:

  • Tweet
  • Carregue aqui para enviar por email a um amigo (Abre numa nova janela) E-mail
  • Partilhar no Tumblr
  • Clique para partilhar no WhatsApp (Abre numa nova janela) WhatsApp
  • Pocket
  • Clique para partilhar no Telegram (Abre numa nova janela) Telegram
Gosto Carregando...

Que caminho seguir para o amor segundo Agátias o Escolástico

03 Terça-feira Abr 2018

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga, Poesia Grega

≈ Deixe um comentário

Etiquetas

Agátias o Escolástico, Bernard van Orley

Numa inventariação exaustiva das relações amorosas, suas implicações sociais, morais, e mesmo legais, Agátias, o Escolástico (536-582 d. C.) dá conta num epigrama recolhido na Antologia Grega (302 do vol. 5) de uma visão masculina do sexo onde o sentimento está ausente, e apenas a satisfação do desejo imperioso se procura.

 

Epigrama

Que caminho seguir para o amor? Nas ruas,
lamentarás a luxúria ávida da mulher lasciva.
Se te aproximares do leito de uma virgem, espera-te
um casamento legal ou o castigo reservado aos sedutores.
Sustentar o amor insípido duma mulher legítima
quem o suportaria, se ela o exigisse como coisa devida?
O leito do adultério é detestável e estranho ao amor,
e dormir com os rapazes é igual perversidade.
A viúva corrupta toma por amante o primeiro que aparece
e enche a cabeça de pensamentos lúbricos.
A pudica, ainda mal se entregou ao amor,
é picada pelo ferrão de um cruel arrependimento
e sente horror do seu acto; e, movida por um resto de pudor,
bate em retirada, com o anúncio do fim da ligação amorosa.
Se tiveres uma relação com a tua escrava,
resigna-te a tornares-te a ti próprio um escravo.
Se for a escrava de outro, a lei aplicar-te-á uma marca infamante,
por atentares contra um ser que pertence a outro.
Diógenes evitou tudo isto, ele que cantava
o hino nupcial com a mão, sem necessitar de Laís.

Agátias, o Escolástico

 

A objectividade de inventário é a marca de água deste poema, dispensando considerações de psicologia e estados de alma, mostrando, numa modernidade compatível com os nossos dias, como lidar com o desejo do corpo, procurando sexo não problemático. Como se lê, depois de enumerar as consequências nefastas das variadas situações, o nosso poeta termina recomendando a masturbação [cantava o hino nupcial com a mão] como saída para esse desejo que queima:
…
Diógenes evitou tudo isto, ele que cantava
o hino nupcial com a mão, sem necessitar de Laís.

Dizendo tudo o que pretende, em matérias onde a linguagem com facilidade foge ao decoro, Agátias, o Escolástico, e com ele o tradutor Albano Martins, conseguem a elegância de um poema revelador de uma particular mentalidade e tempo, que em diferentes pontos toca o nosso.

Poema transcrito de “do mundo grego outro sol”, Antologia Palatina e Antologia de Planudes. Seleção, tradução e notas de Albano Martins. Edições ASA, Porto 2002.

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Bernard van Orley (1491/2-1542).
Bernard (ou Bernaert ou Barend) van Orley, nasceu e morreu em Bruxelas. Em vida conhecido como o Rafael do Norte, foi sobretudo pintor de assuntos religiosos e retrato. Foi também autor de cartões para tapeçarias, e conhecem-se algumas suas pinturas profanas com laivos do erotismo presente em pinturas da Flandres e Alemanha da época.

Partilhar:

  • Tweet
  • Carregue aqui para enviar por email a um amigo (Abre numa nova janela) E-mail
  • Partilhar no Tumblr
  • Clique para partilhar no WhatsApp (Abre numa nova janela) WhatsApp
  • Pocket
  • Clique para partilhar no Telegram (Abre numa nova janela) Telegram
Gosto Carregando...

O Sultão e a Cristã — Imitação de Victor Hugo por Henrique O’Neill

27 Quarta-feira Dez 2017

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga

≈ Deixe um comentário

Etiquetas

Alexandre-Marie Cole, Henrique O’ Neill, Victor Hugo

Na poesia de Victor Hugo (1802-1885), o livro Les Orientales marca o aparecimento da sensualidade como assunto poético, para escândalo de alguns contemporâneos, como a história literária regista. Essa sensualidade, suposta em sociedades distantes e de algum modo misteriosas, tornou aceitável que sobre ela se escrevesse, tendo ganho enorme popularidade, e desencadeou a vaga orientalizante que até meados do século permeou a sociedade francesa, da pintura à moda, levando a sua influência ao resto da Europa.

 

A imitação do poema Sultan Achmet do livro Les Orientales por Henrique O’Neill (1823-1889) publicada em O Trovador no início dos anos 1850, e a seguir transcrita, é dela um exemplo.
A versão de O’Neill suaviza a sensualidade explícita do poema de Victor Hugo com a utilização de descrições ou vocábulos mais neutros que o original, p.ex: em vez de a abrir o poema como Victor Hugo escreve:

“À Joana, a Granadina, / Sempre cantante e ladina, /“

temos em O’Neill:

“Nobre filha de Granada / Para ver um leve riso / Nessa face descorada /“;

ou então o termo debochado a meio do poema de Hugo, que desaparece na imitação de O’Neill, entre muitos outros exemplos.

Henrique O’Neill acrescenta ainda uma segunda sextilha, que o original não contém, para nos dizer que o sultão daria a vida para da bela apenas ouvir a voz; satisfazendo com esta declaração platónica o pudor de quem o lê.

 

Trata-se de um curioso exercício de assimilação e adaptação a um gosto puritano, de um poema transgressor, permitindo a sua leitura em português sem grande escândalo das boas consciências de leitoras e leitores da época.

 

 

O Sultão e a Cristã — imitação de Victor Hugo por Henrique O’ Neill

— Nobre filha de Granada
Para ver um leve riso
Nessa face descorada
Dera meus paços doirados
E meus negros beduínos
Sobre camelos montados.

— Para tua voz ouvir
Com palavras de ternura
O que quiseras pedir
To dera, cristã gentil:
Dera a vida, a alma dera,
E mil céus, se fossem mil.

— Senhor, faze-te cristão,
Sou cristã, não posso ouvir
Juramentos dum sultão:
Se me queres por amante
Põe em vez da meia lua
Uma cruz nesse turbante.

— Anjo, demónio, mulher,
Muito mais do que me pedes
Aqui te juro fazer,
Se prometes de me dar
Os teus braços por cilícios
E por contas teu colar.

 

 

 

O Sultão Achmet 

poema de Victor Hugo em tradução de Manuela Parreira da Silva

À Joana, a Granadina,
Sempre cantante e ladina,
Disse o sultão com ardor:
— Eu daria sem favor
O meu reino por Medina,
Medina por teu amor.

— Faz-te cristão, rei sublime!
Pois não é bom que se afirme
O prazer ter encontrado
Nos braços de um debochado.
Não quero fazer um crime:
Já me basta um pecado.

— Com as pérolas cuja graça,
Minha rainha, realça
Do teu colo o branquear,
Eu farei por te agradar,
Se quiseres que eu faça
Rosário do teu colar

Outubro de 1828

 

 

 

Sultan Achmet — original de Victor Hugo

À Juana la grenadine,
Qui toujours chante et badine,
Sultan Achmet dit un jour :
— Je donnerais sans retour
Mon royaume pour Médine,
Médine pour ton amour.

— Fais-toi chrétien, roi sublime !
Car il est illégitime,
Le plaisir qu’on a cherché
Aux bras d’un turc débauché.
J’aurais peur de faire un crime.
C’est bien assez du péché.

— Par ces perles dont la chaîne
Rehausse, ô ma souveraine,
Ton cou blanc comme le lait,
Je ferai ce qui te plaît,
Si tu veux bien que je prenne
Ton collier pour chapelet.

                  Octobre 1828

 

 

 

Notícia bibliográfica

O poema de Victor Hugo (1802-1885) é o poema XXIX do livro  Les Orientales, e pode ser encontrado em variadas edições de bolso.

A imitação do poema de Victor Hugo Sultan Achmet por Henrique O’Neill (1823-1889), O Sultão e a Cristã, foi publicada na revista O Trovador.

A tradução rimada do poema original por Manuela Parreira da Silva, foi transcrita de Victor Hugo, Poemas, Assírio & Alvim, Lisboa, 2002.

O assunto do poema de Victor Hugo ecoa um Ghazal de Hafez de Chiraz, o nº3. Leitores curiosos encontram a poesia de Hafez de Chiraz (séc. XIV), Le Divan, traduzida do persa e comentada em francês por Charles-Henri de Fouchécour, em Éditions Verdier, 2006.

Abre o artigo a imagem de um pormenor da pintura de Alexandre-Marie Cole (1798-1873), La belle orientale.

Partilhar:

  • Tweet
  • Carregue aqui para enviar por email a um amigo (Abre numa nova janela) E-mail
  • Partilhar no Tumblr
  • Clique para partilhar no WhatsApp (Abre numa nova janela) WhatsApp
  • Pocket
  • Clique para partilhar no Telegram (Abre numa nova janela) Telegram
Gosto Carregando...

João de Deus e um poema “dadaísta”

26 Domingo Nov 2017

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga

≈ Deixe um comentário

Etiquetas

Erwin Blumenfeld, João de Deus

Circular pelo normal padronizado às vezes exige fugas. Fugas que a literatura permite e a imaginação propicia.
Esse desarticular literário da normalidade padrão teve no início do século XX uma expressão maior com o movimento Dadaísta a que outras vanguardas sucessivamente se foram juntando.
Esta subversão do aceite como norma que ganhou corpo de grupo e movimento transnational com os primeiros dadaístas, foi, no entanto, expressa de forma ocasional aqui e acolá através dos tempos, permitindo exprimir a criatividade que desde sempre os espíritos livres sentiram necessidade ou vontade de manifestar, usando a ductilidade da língua de forma inventiva e irreverente.
Exemplo populares são os trava-línguas tão ao gosto da infância. Outros, e expressivos, são os anfiguri, de que já trouxe ao blog uma amostra com a transcrição de um poema de Filinto Elísio (1734-1819). Hoje ocupo-me de um caso singular sem filiação tipológica, um poema de João de Deus (1830-1896), Versos Quaisquer (Pedidos com instância).
O poema procurou ser uma sátira à mania de pedir versos aos poetas, frequente nos séculos XVIII e XIX. Podemos lê-lo hoje como um poema dadaísta avant la lettre. Nele é apenas o gozo de alinhar palavras num discurso rimado e ritmado incoerente o que lemos. É na verdade um delicioso exercício literário de virtuosismo sobre as palavras e a língua, e faz reflectir sobre o sentido da lógica intrínseca a qualquer discurso escrito, por um lado, e por outro, no ritmo que a poesia introduz na linguagem escrita antes da sua intelecção.

Trata o poema de um personagem e de uma sua aventura, onde o significado global desaparece, pois as palavras que a descrevem são ou vazias de significado, ou sem relação causal entre si. Ei-lo:

 

Versos quaisquer
(Pedidos com instância)

Havia na Transilvânia,
Ao pé de casco de rolhas
Um rei chamado dencolhas,
Imperador da circania;
Tinha por ceptro a catânea
Com que cortava o presunto,
E não gostava de assunto
Que não fosse de manérea
Que aquela cabeça aérea
Se risse e sorrisse muito.

Pescava às vezes nos mares
Com anzóis de caparrosa,
E tinha sempre uma cousa
No pensamento elevádeo:
Era que o imenso rádio,
Que o Sol descreve nas márcheas
Exerce sobre as enxárcias
Influência tamanha,
Que só cabeça tacanha
Ainda põe em problêmea
Se acaso banhos de sêmea
Curam sezões na Alemanha.

Ele tinha o cabelo áureo
A modo de flor sulfúrea,
Cor um pouco, um tanto espúria
Mas de beleza nevrálgica.
E como na fronte mágica
Lhe brincava a estrela fausta,
Um dia uma dama causta
De encontros superfinórios
Pôs-se com tais avelórios
A cativar-lhe os dois lúzios,
Que foram como dois búzios
À busca de promontórios.

No cabo da Boa Esperança
Se acaso a esperança tem cábeo,
É que ele viu no astrolábio,
Sua coragem hercúlea;
Mas com a face cerúlea
Tinha não sei que fatídico
Na mesma cerúlea fácea,
Agarrado à Musa Engrácia
Partiu no vapor Magnífico.

Nunca mais voltou das plagas
A que aportou, como é histórico;
Mas um monumento dórico
Erguido à sua memória
Reza assim: Esta é a história
Daquele monarca búzio
Que depois de macambúzio
Longos anos, longas épocas,
Agora: Titire, recubas
Sub tegmine f… úzio.

in Campo de Flores, Sátiras.

 

Abre o artigo a imagem de uma das Montagens Dada de Erwin Blumenfeld (1897-1969). Nela podemos ver um rosto atribuído a uma Anna Blume, talvez a destinatária de um poema dadaísta de Kurt Schwitters (1887-1948) que já transcrevi no blog em tradução de Jorge de Sena. Lendo o desenho, podemos imaginar ao centro o poeta escrevendo o poema, e ao cimo à esquerda o rei da Transilvânia gozando a aventura que este lhe atribui. Os outros serão o mundo à volta, talvez, ou a opinião da crítica, quem sabe?.

Partilhar:

  • Tweet
  • Carregue aqui para enviar por email a um amigo (Abre numa nova janela) E-mail
  • Partilhar no Tumblr
  • Clique para partilhar no WhatsApp (Abre numa nova janela) WhatsApp
  • Pocket
  • Clique para partilhar no Telegram (Abre numa nova janela) Telegram
Gosto Carregando...

Mal de pés — poema de João Deus

06 Segunda-feira Nov 2017

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga

≈ 3 comentários

Etiquetas

João Deus, Rafael Bordalo Pinheiro

Faço há longos anos férias na praia, numa praia popular. A casa tem a vantagem de, ao sair, atravessar a rua e estar com o pé na areia. O areal é extenso, o mar, habitualmente manso, permite-me nadar as centenas de metros que me fazem desejar voltar uma e outra vez.
Sendo uma praia que atrai multidões, a vizinhança nos toldos leva inevitavelmente a partilharmos a intimidade de quem nos rodeia.
Sucedem-se as semanas e um pouco de Portugal de norte a sul desfila. Se as preocupações, cuidados e comportamentos não têm variação geográfica, nas gerações mais novas o quadro de maneiras, interesses, e formas de estar social, reproduzem os hábitos ancestrais dos seus maiores (para usar a expressão espanhola), assegurando a continuidade do bom e mau que recebem sem filtro.
Não há gadgets tecnológicos, bric-a-brac que o dinheiro compre e permita evidenciar uma melhoria económica em relação ao passado, que mude uma postura e gostos, que são afinal, um lastro cultural que se carrega.
Se na forma de ser há muito de bom e louvável, nas maneiras em que o respeito pelo outro se deveria manifestar, há provavelmente décadas de polimento ainda a percorrer.
Uma cena presenciada estas férias leva-me ao poema de João de Deus (1830-1896), Mal de pés, que a seguir transcrevo.

O poema pinta um retrato satírico de uma conversa entre dois homens de afastado meio cultural: um, o português campónio enriquecido no Brasil, a quem a fortuna recente não retirou a franqueza nem deu hábitos novos de higiene, outro, o inglês, protótipo imaginário do gentleman, com as suas modelares maneiras em sociedade e a ironia fina na conversação:
…
“E diga-me: em lavando os pés refina,
Ou sente algum alívio?”
…

 

Para os leitores brasileiros do blog deixo um esclarecimento talvez necessário: o brasileiro do poema era, desde meados do século XIX em Portugal, um português regressado rico de uma emigração no Brasil. A boçalidade do comportamento aliada a vaidades, e prodigalidade que o dinheiro pagava, transformaram estes indivíduos num tipo literário em voga por largos anos.

 

Mal de pés

Certo patrício nosso brasileiro,
Depois de ter corrido o mundo inteiro
Ao voltar de Paris desenganado
Dos médicos, que tinha consultado,
Achou-se num wagon com um inglês.
O desgraçado tinha mal de pés…
E a última palavra da ciência
Era ir vivendo e tendo paciência!

Mostrou-se o bife* incomodado,
Fungando para um e outro lado…
Como quem busca o foco de infecção;
Diz-lhe o nosso infeliz compatriota,
A apontar-lhe com o dedo a bota
E exalando um suspiro de paixão:
— Eis a causa, senhor, eis o motivo!…
O que eu não sei é como ainda vivo!


Tenho gasto rios de dinheiro,
E sempre, sempre, sempre o mesmo cheiro!
E isto por ora vá!… mas alto dia
Quando aperta o calor… Virgem Maria!…

“E diga-me: em lavando os pés refina,
Ou sente algum alívio?”
— Isso não sei,
Sei que tenho exaurido a medicina;
mas lavar é que nunca experimentei.

Às vezes dá-se ao médico o dinheiro
Que se devia dar ao aguadeiro**.

 

* calão para designar ingleses, entretanto caído em desuso, (cf. Dicionário de Calão, Albino Lapa, Editorial Presença, Lisboa, 1974).
** homem que no século XIX vendia água e carregava os respectivos potes até à morada do cliente.

in Campo de Flores, Satíricas e Epigramas.

Abre o artigo a imagem de uma caricatura de Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905) publicada em Álbum de Glórias.

Partilhar:

  • Tweet
  • Carregue aqui para enviar por email a um amigo (Abre numa nova janela) E-mail
  • Partilhar no Tumblr
  • Clique para partilhar no WhatsApp (Abre numa nova janela) WhatsApp
  • Pocket
  • Clique para partilhar no Telegram (Abre numa nova janela) Telegram
Gosto Carregando...

Gomes Leal — A Sesta do Sr. Glória

01 Quarta-feira Nov 2017

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga

≈ Deixe um comentário

Etiquetas

Gomes Leal, Toulouse-Lautrec

Gomes Leal (1848-1921) dá-nos em  A Sesta do Sr. Glória, com bonomia pontuada de acentos irónicos, marca de água da sua poesia não panfletária, um retrato de família burguesa de final do século XIX, saboreando o seu bem-estar e contentamento de viver.

Não é matéria frequente da poesia realista de final de oitocentos o tom, despido de considerações ideológicas ou de moralidade, tão só deixando ver, qual pintura de género, uma particular ”joie de vivre”.

O poema traz uma saborosa evocação de uma sociedade extinta, e, ao leitor de hoje, o conhecimento histórico da sociedade e costumes da época, permite, talvez, os juízos de valor que o poeta se inibe.

 

A Sesta do Senhor Glória

É no fim do jantar. — Deram três horas
No bom relógio antigo dos avós.
E o senhor Glória pega numa noz
Com um ar de quem trata com senhoras.

A casa de jantar toda pintada
E o estuque cheio d’aves, de paisagens,
De ninfas, prados, d’águas, de boscagens,
Tem uma forma antiga e recatada.

D’involta com seus goles de Madeira
Saboreia a senhora o seu café.
E ao lado, um filho rúbido, de pé,
Parece um pregador sobre a cadeira.

No colo da matrona dorme um gato
No melhor sono cómodo do mundo,
Enquanto, em baixo, um cão grave e profundo,
Contempla uns restos, que inda estão num prato.

O senhor Glória fala, chocarreiro,
Do seu cunhado Aleixo de Miranda.
Lá fora, um papagaio num poleiro,
Diz cousas aos burgueses, da varanda.

Com um ar meio cómico e boçal,
Um sisudo criado atrás, de pé,
De vez em quando fala menos mal:
— O senhor Glória aspira o seu café.

Muito tempo assim ficam nesse estado
De santa sonolência e beatitude,
Mais que assaz conhecido da virtude,
quando tem digerido e bem jantado

No entanto, o senhor Glória, olhos dormentes,
Contempla, na parede, os bons pastores,
Confidentes fiéis dos seus amores,
— Que outrora hão já sorrido aos seus parentes.

Duas pastoras falam com poesia,
Numa vereda de álamos umbrosos,
E isto acorda-lhe os tempos virtuosos…
Que era hora de jantar era ao meio dia!

Belos tempos — pensa ele — de virtude,
De glória, amor, coragem, fé ardente,
De longas procissões e de saúde,
De singeleza e paz — vida contente!

E o senhor Glória, aqui, num travesseiro,
Deita a cabeça, de pensar prostrado.
— O papagaio ri no seu poleiro.
— E a senhora sorri para o criado.

in  Claridades do Sul, segunda edição revista e aumentada, Empresa da História de Portugal, Lisboa, 1901.

Tal como no poema a certa altura se refere — No entanto, o senhor Glória, olhos dormentes, / Contempla, na parede, os bons pastores, / Confidentes fiéis dos seus amores,  — a vida por esta época para os senhores endinheirados não se limitava a esta placidez doméstica; e isso mostra a imagem a abrir o artigo. Trata-se do fragmento de um poster de Henri de Toulouse-Lautrec (1864-1901), Reine de Joie, de 1892.
Contemporâneo próximo deste Sr. Glória, neste poster observamos não um jantar de família, mas uma ceia, talvez tardia, numa noite de escapadela, deixando a senhora entregue às suas ocupações.

Partilhar:

  • Tweet
  • Carregue aqui para enviar por email a um amigo (Abre numa nova janela) E-mail
  • Partilhar no Tumblr
  • Clique para partilhar no WhatsApp (Abre numa nova janela) WhatsApp
  • Pocket
  • Clique para partilhar no Telegram (Abre numa nova janela) Telegram
Gosto Carregando...

Emily Dickinson — a verdade a beleza e a morte

16 Segunda-feira Out 2017

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga

≈ 2 comentários

Etiquetas

Emily Dickinson

Numa reflexão poética sobre a morte fala Emily Dickinson (1830-1886) das razões por que morrer: pela beleza e pela verdade.

 

Enquanto absolutos, tanto beleza como verdade são ambos conceitos de objectivação duvidosa e, como tal, de vasta latitude de entendimento, a que apenas o íntimo de cada um responde. Servirão, como quaisquer outros, para morrer por. Escolha-os quem quiser. Não servirão em nenhuma circunstância de pretexto para matar. E se matar em nome da beleza não há notícia, em nome da verdade quantos assassinos se têm sentido legitimados!… Cabe a cada um dizer, sempre, e todos os dias, Não!

 

Talvez tenha havido um tempo em que beleza e verdade Ambas O Mesmo são como o poema refere, e é seu pretexto. Hoje são entidades que correm caminhos paralelos, e, tal como linhas paralelas em geometria, nunca se encontram.
Se cada um de nós se interrogar sobre o que para si beleza e verdade significam, e como na sua vida se cruzam, verá a surpresa nas respostas que encontra. E, no entanto, beleza e verdade identificadas entre si nas nossas vidas, seriam uma ajuda preciosa para ganhar a tranquilidade dos dias, e não o sossego da morte que o poema refere.

 

O poema, na sua concisa expressão e conteúdo reflexivo, remete irresistivelmente para os epigramas funerários da Antologia Grega.

 

 

Poema

 

Morri pela Beleza — mas mal estava
Ajustada no Túmulo
Um Outro que morreu pela verdade,
E jazia no Quarto adjacente —

 

Me disse docemente “Porque morrera eu”?
“Pela Beleza”, respondi —
“Pela Verdade — eu — que Ambas O Mesmo são —”,
Disse Ele “Então somos Irmãos” —

 

E tal como Parentes se encontram numa Noite —
Assim falámos de Quarto para Quarto —
Até que o Musgo nos chegou aos lábios —
Cobrindo os nossos nomes —

 

 

in Emily Dickinson, Duzentos Poemas, tradução, belíssima, posfácio organização e de Ana Luísa Amaral, Relógio D’Água Editores, Lisboa 2014.

Abre o artigo a imagem de um sarcófago egípcio, instrumento artístico da comunicação pós-morten entre os mais belos que a humanidade inventou.

 

 

 

Partilhar:

  • Tweet
  • Carregue aqui para enviar por email a um amigo (Abre numa nova janela) E-mail
  • Partilhar no Tumblr
  • Clique para partilhar no WhatsApp (Abre numa nova janela) WhatsApp
  • Pocket
  • Clique para partilhar no Telegram (Abre numa nova janela) Telegram
Gosto Carregando...

Soneto de Francisco de Medrano

14 Sábado Out 2017

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga

≈ Deixe um comentário

Etiquetas

Francisco de Medrano, Lucas Cranach o Velho

O ciclópico acto (1), como uma vez lhe chamou  Luiza Neto Jorge, tem num poema de Francisco de Medrano (1570-1607) uma expressão lírica bem ao gosto da poesia do século XVI, a que a tradução de Jorge de Sena faz plena justiça: Seguiu-se um grande gozo ao pasmo louco / … / que todo o meu sensível pôs em calma.

A pressão do sexo nos humanos é uma constante, e é de sempre, pelo que em todas as épocas surge na palavra poética. Apenas variam os termos da sua formulação, adequando-os ao gosto da época que os viu surgir. Neste nosso tempo afortunado, com o acesso à criação universal ao alcance da curiosidade mais exigente, podemos permitir-nos o luxo da sua fruição independentemente de épocas e geografias. E hoje vem um exemplo feliz de um jovem poeta espanhol pouco mais novo que Camões escrevendo sobre os enigmas do êxtase da paixão.

 

 

 

Soneto

 

Não sei como, nem quando, nem que cousa
senti que me inundava de doçura:
sei que a meus braços veio a formosura,
de gozar-se comigo cobiçosa.

 

Sei que chegou, se bem, com temerosa
vista, mal pude olhar sua figura:
logo pasmei, como o que em noite escura,
perdido o tino, o pé mover não ousa.

 

Seguiu-se um grande gozo ao pasmo louco
— não sei quando, nem como, nem que há sido
que todo o meu sensível pôs em calma.

 

Ignorá-lo é saber: pois que é bem pouco
o que pode abarcar o só sentido,
enquanto isto me coube na só alma.

 

Tradução de Jorge de Sena.

Transcrito de Poesia de 26 Séculos, antologia, tradução, prefácio e notas de Jorge de Sena, edição Fora do Texto, Coimbra, 1993.

 

 

 

Nota à margem

 

(1) Não resisto a um pequeno desvio ao assunto que me traz.
Na dúvida ao escrever acto ou ato, pelo acordo ortográfico de 1990, ocorreu-me quanto o novo acordo ortográfico pode atar as possibilidades de agir. Afinal, de acto a ato, passamos da acção à prisão nas malhas da ortographia.
Feito o desvio, volto com o leitor ao relato em que acção se pede, e atado, só por pontual diversão.

 

 

 

Iconografia

 

Abre o artigo a imagem de um detalhe da pintura de Lucas Cranach o Velho (1472-1553), adequadamente chamada A Idade de Ouro, onde homens e mulheres nus fruem os prazeres da vida em mútua companhia.
A pintura feita por volta de 1530, terá talvez mais setenta anos que o poema, mas são ambos certamente água da mesma fonte de alegrias.

 

Partilhar:

  • Tweet
  • Carregue aqui para enviar por email a um amigo (Abre numa nova janela) E-mail
  • Partilhar no Tumblr
  • Clique para partilhar no WhatsApp (Abre numa nova janela) WhatsApp
  • Pocket
  • Clique para partilhar no Telegram (Abre numa nova janela) Telegram
Gosto Carregando...

sine Baccho Venus friget — epigramas báquico-eróticos

04 Quarta-feira Out 2017

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga, Poesia Grega

≈ Deixe um comentário

Nestas já longas férias, acompanhado apenas de uma pequena biblioteca virtual, alguma poesia para traduzir, e pouco mais, tenho deixado os leitores amantes da transcendência na poesia à míngua de alimento espiritual adequado. E não será ainda hoje que a coisa muda, pelo contrário, em vez da densa filosofia que interroga o mundo e o seu devir, trago alguns epigramas da Antologia Grega onde o gosto por carpe diem se espelha e alguma brejeirice alegra as almas.

Começo com um epigrama de Páladas de Alexandria (n. 392 d.C.) incluído no livro XI da Antologia Grega, onde no sine Baccho Venus friget (sem Baco Vénus congela) se plasma:

 

 

 

55 Páladas

 

Dá-me de beber para que Baco dissipe minhas penas
e devolva o calor a meu gelado coração!
Liv XI

 

 

Este epigrama dá o mote para continuar, agora citando uma das Notas Simposiais de Perseu de Cítio (306-243 a.C.)(1):
“De temas sexuais é apropriado entre copos de vinho fazer menção, pois também a estas coisas, quando bebemos, estamos propensos“.

 

 

Continuemos com Páladas e uma reflexão chamando a companhia de Baco (Brómio) e Vênus (Páfia):

 

 

 

62 Páladas

 

Os homens, todos, hão-de morrer, e não há
mortal que saiba se amanhã viverá.
Agora que bem o sabes, homem, alegra-te
e faz de Brómio olvido da morte.
Desfruta também com a Páfia, dilatando esta vida fugaz;
tudo o resto, deixa decidi-lo o Destino.
Liv XI

 

 

 

No entanto, a moderação é absolutamente aconselhável para que não surjam surpresas na festa do amor, e isso mesmo aconselha Eveno de Paros (V-IV a.C.) no epigrama 49 do mesmo livro:

 

 

 

49 Eveno de Paros(?)

 

A melhor medida de Baco: nem muito nem pouco,
pois causa é de tristeza ou de loucura.
Se está misturado, quarto companheiro das três ninfas(2),
faz desfrutar, e assim é quem melhor dispõe para o leito;
mas se alegra demasiado, afasta os amores,
e no sono, da morte vizinho, te mergulha.
Liv XI

 

 

 

De posse destes conselhos, ainda assim, as surpresas às vezes espreitam, como sabemos, e Rufino (II d.C.) refere num epigrama, agora do livro V da Antologia Grega.

 

 

 

47 Rufino

 

Muitas vezes desejei, Talia, possuir-te uma noite e saciar
minha paixão no teu florido frenesi de amor.
Mas agora que nua, com teu doce corpo me tocas,
esgotado sucumbo à fadiga e ao sono.
Pobre coração meu, que tens? desperta, não te rendas,
essa suprema felicidade com prantos encontrarás.
Liv V

 

 

 

O passar do tempo é inexorável e algum arrefecimento acontece, por isso mesmo termino com o conselho final:
…
Quanto possas, desfruta, partilha, come e pensa como mortal
…
dado por um Anónimo num outro epigrama do já referido livro XI da Antologia Grega:

 

 

 

56 Anónimo

 

Bebe e goza. Que acontecerá amanhã, o quê no futuro?
ninguém o sabe. Não corras, não te canses.
Quanto possas, desfruta, partilha, come e pensa como mortal:
entre viver e não viver não há nem um passo.
Toda a vida é, sim, equilíbrio: se tomas a iniciativa,
tudo será teu, mas se morres, de outro será, e tu nada terás.
Liv XI

 

 

Versões de Carlos Mendonça Lopes

 

 

 

Abre o artigo a imagem de um detalhe de uma pintura de Nicolas Poussin (1594-1665), Midas e Baco, pintado depois de 1624, e pertencente à colecção do museu de arte antiga de Munique.

 

 

Notas

 

(1) Citado por Ateneu de Náucratis (II d.C.) no livro XIII de Deipnosophistai (O banquete dos eruditos).

(2) a mistura de vinho e água entre os gregos podia variar, sendo usual uma parte de vinho para duas de água. Aqui o conselho é de uma parte de vinho para três partes de água, metonimicamente referido pelas três ninfas.

 

Partilhar:

  • Tweet
  • Carregue aqui para enviar por email a um amigo (Abre numa nova janela) E-mail
  • Partilhar no Tumblr
  • Clique para partilhar no WhatsApp (Abre numa nova janela) WhatsApp
  • Pocket
  • Clique para partilhar no Telegram (Abre numa nova janela) Telegram
Gosto Carregando...
← Older posts
Newer posts →

Visitas ao Blog

  • 2.349.793 hits

Introduza o seu endereço de email para seguir este blog. Receberá notificação de novos artigos por email.

Junte-se a 894 outros subscritores

Página inicial

  • Ir para a Página Inicial

Posts + populares

  • Pelo Natal com poemas de Miguel Torga
  • Vozes dos Animais - poema de Pedro Diniz
  • Autor

Artigos Recentes

  • Sonetos atribuíveis ao Infante D. Luís
  • Oh doce noite! Oh cama venturosa!— Anónimo espanhol do siglo de oro
  • Um poema de Salvador Espriu

Arquivos

Categorias

Create a free website or blog at WordPress.com.

Privacy & Cookies: This site uses cookies. By continuing to use this website, you agree to their use.
To find out more, including how to control cookies, see here: Cookie Policy
  • Subscrever Subscrito
    • vicio da poesia
    • Junte-se a 894 outros subscritores
    • Already have a WordPress.com account? Log in now.
    • vicio da poesia
    • Subscrever Subscrito
    • Registar
    • Iniciar sessão
    • Denunciar este conteúdo
    • Ver Site no Leitor
    • Manage subscriptions
    • Minimizar esta barra
 

A carregar comentários...
 

    %d