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João de Deus e um poema “dadaísta”

26 Domingo Nov 2017

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga

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Erwin Blumenfeld, João de Deus

Circular pelo normal padronizado às vezes exige fugas. Fugas que a literatura permite e a imaginação propicia.
Esse desarticular literário da normalidade padrão teve no início do século XX uma expressão maior com o movimento Dadaísta a que outras vanguardas sucessivamente se foram juntando.
Esta subversão do aceite como norma que ganhou corpo de grupo e movimento transnational com os primeiros dadaístas, foi, no entanto, expressa de forma ocasional aqui e acolá através dos tempos, permitindo exprimir a criatividade que desde sempre os espíritos livres sentiram necessidade ou vontade de manifestar, usando a ductilidade da língua de forma inventiva e irreverente.
Exemplo populares são os trava-línguas tão ao gosto da infância. Outros, e expressivos, são os anfiguri, de que já trouxe ao blog uma amostra com a transcrição de um poema de Filinto Elísio (1734-1819). Hoje ocupo-me de um caso singular sem filiação tipológica, um poema de João de Deus (1830-1896), Versos Quaisquer (Pedidos com instância).
O poema procurou ser uma sátira à mania de pedir versos aos poetas, frequente nos séculos XVIII e XIX. Podemos lê-lo hoje como um poema dadaísta avant la lettre. Nele é apenas o gozo de alinhar palavras num discurso rimado e ritmado incoerente o que lemos. É na verdade um delicioso exercício literário de virtuosismo sobre as palavras e a língua, e faz reflectir sobre o sentido da lógica intrínseca a qualquer discurso escrito, por um lado, e por outro, no ritmo que a poesia introduz na linguagem escrita antes da sua intelecção.

Trata o poema de um personagem e de uma sua aventura, onde o significado global desaparece, pois as palavras que a descrevem são ou vazias de significado, ou sem relação causal entre si. Ei-lo:

 

Versos quaisquer
(Pedidos com instância)

Havia na Transilvânia,
Ao pé de casco de rolhas
Um rei chamado dencolhas,
Imperador da circania;
Tinha por ceptro a catânea
Com que cortava o presunto,
E não gostava de assunto
Que não fosse de manérea
Que aquela cabeça aérea
Se risse e sorrisse muito.

Pescava às vezes nos mares
Com anzóis de caparrosa,
E tinha sempre uma cousa
No pensamento elevádeo:
Era que o imenso rádio,
Que o Sol descreve nas márcheas
Exerce sobre as enxárcias
Influência tamanha,
Que só cabeça tacanha
Ainda põe em problêmea
Se acaso banhos de sêmea
Curam sezões na Alemanha.

Ele tinha o cabelo áureo
A modo de flor sulfúrea,
Cor um pouco, um tanto espúria
Mas de beleza nevrálgica.
E como na fronte mágica
Lhe brincava a estrela fausta,
Um dia uma dama causta
De encontros superfinórios
Pôs-se com tais avelórios
A cativar-lhe os dois lúzios,
Que foram como dois búzios
À busca de promontórios.

No cabo da Boa Esperança
Se acaso a esperança tem cábeo,
É que ele viu no astrolábio,
Sua coragem hercúlea;
Mas com a face cerúlea
Tinha não sei que fatídico
Na mesma cerúlea fácea,
Agarrado à Musa Engrácia
Partiu no vapor Magnífico.

Nunca mais voltou das plagas
A que aportou, como é histórico;
Mas um monumento dórico
Erguido à sua memória
Reza assim: Esta é a história
Daquele monarca búzio
Que depois de macambúzio
Longos anos, longas épocas,
Agora: Titire, recubas
Sub tegmine f… úzio.

in Campo de Flores, Sátiras.

 

Abre o artigo a imagem de uma das Montagens Dada de Erwin Blumenfeld (1897-1969). Nela podemos ver um rosto atribuído a uma Anna Blume, talvez a destinatária de um poema dadaísta de Kurt Schwitters (1887-1948) que já transcrevi no blog em tradução de Jorge de Sena. Lendo o desenho, podemos imaginar ao centro o poeta escrevendo o poema, e ao cimo à esquerda o rei da Transilvânia gozando a aventura que este lhe atribui. Os outros serão o mundo à volta, talvez, ou a opinião da crítica, quem sabe?.

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Dia de anos — reflexão poética de João de Deus

28 Quinta-feira Nov 2013

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga

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João de Deus

Erich LedererSão habitualmente datas de júbilo os dias de aniversário de amigos. Em poesia, e ao longo do século XIX, foram frequentes os poemas oferecidos pelos poetas nos álbuns das pessoas de suas relações. Poucos merecerão hoje em dia a atenção do leitor. Não é o caso desta saborosa invectiva de João de Deus (1830–1896):

Com que então caiu na asneira / De fazer na quinta-feira / Vinte e seis anos! Que tolo!

Quando são merecedores de atenção, ainda hoje, os poemas são reflexões sobre o passar do tempo, os ensinamentos da vida, e algumas vezes relatos de agruras pessoais como se encontram em Filinto Elisio (1734-1819) ou Francisco Joaquim Bingre (1763–1856).

No poema de João de Deus que escolhi, essa reflexão é feita nas duas ultimas sextilhas em tom brincado, assegurando ao poema uma frescura que o faz parecer eternamente novo. Ora leia:

Dia de anos

Com que então caiu na asneira

De fazer na quinta-feira

Vinte e seis anos! Que tolo!

Ainda se os desfizesse…

Mas fazê-los não parece

De quem tem muito miolo!

 

Não sei quem foi que me disse

Que fez a mesma tolice

Aqui o ano passado…

Agora o que vem, aposto,

Como lhe tomou o gosto,

Que faz, o mesmo? Coitado!

 

Não faça tal porque os anos

Que nos trazem? Desenganos

Que fazem a gente velho:

Faça outra coisa; que em suma

Não fazer coisa nenhuma,

Também lhe não aconselho.

 

Mas anos, não caia nessa!

Olhe que a gente começa

Às vezes por brincadeira,

Mas depois se se habitua,

Já não tem vontade sua

E fá-los queira ou não queira!

O poema encontra-se em qualquer edição de Campo de Flores e a imagem de abertura é de Egon Schiele (1890-1918).

 

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João de Deus: Noite de amores e Resposta

30 Segunda-feira Set 2013

Posted by viciodapoesia in Crónicas

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João de Deus

Sir Thomas Lawrence - Maguerite,_Countess_of_BlessingtonÀ publicação da 1ªedicão de Campo de Flores de João de Deus (1830-96) por Teófilo Braga (1943-1924) em 1893, dita completa, autêntica e definitiva, seguiu-se um coro de protestos sobre diversos aspectos da edição, nomeadamente por esta alterar versos de forma arbitraria, e também por deixar de fora inúmeras poesias comprovadamente de João de Deus. Uma critica especialmente detalhada e publicada em opúsculo, deveu-se a Trindade Coelho e Alfredo da Cunha.

É nesse opúsculo que encontro este Resposta a propósito de uma Noite de Amores antes publicado por João de Deus e incluído na edição de Campo de Flores.

A resposta foi dada a uma senhora que repreendeu em verso o poeta por aquele seu poema. Não conheço a repreensão poética, mas Noite de Amores e Resposta aqui ficam.

Resposta

À minha bela incógnita inimiga

Eu, mistérios se os profano

Não são nunca de mulher:

Vivi sempre neste engano…

Morrerei, se Deus quiser.

 

Aquela noite de amores,

Aqueles lânguidos ais,

Aquele leito de flores

Foi um sonho e nada mais.

 

Foi um sonho e sonho aéreo

Como os sonhos sempre são;

Nem podia ser mistério

Dos mistérios… da paixão.

 

Se pensei num doce instante

Que ao luar, cândida flor

Dum perfume inebriante

Perfumava o meu amor…

 

Se pensei que um vão desejo

Com que à luz desabrochei,

Me expirava em fim num beijo…

Foi um sonho que sonhei.

 

Foi um sonho! E se eu morresse

Quando à luz do mundo vim;

Se eu uns olhos só tivesse

Que me dessem luz a mim;

 

Não dormia e já velava

Como outro tempo velei,

No bom tempo em que eu gozava

O que ainda nem sonhei!

 

Não faz mal que o pensamento

De quem Deus fadou tão mal

Fuja, em sonho num momento

Desta vida desleal!

 

Que o que a sorte desditosa

Soprou como sombra vã,

Colha em sombras uma rosa

Nos seus sonhos da manhã!

 

Que te custa que deixasse

Uma infeliz: — Fui feliz?

Que fiz eu que te ofendesse,

Que mal foi o que te fiz?

 

Quando a mão dum inocente

Quer a estrela que o seduz,

Ninguém há, tão inclemente,

Que no céu lhe apague a luz.

 

Ah! mulher! custa isso pouco!…

Se não faz mal a ninguém,

Deixa lá que um pobre louco

Sonhe… sonhos que não tem!

Maio de 1859.

Vamos então ler qual foi este sonho contado como Noite de amores.

Noite de amores

Mimosa noite de amores

Mimoso leito de flores

Mimosos, lânguidos ais!

Vergôntea débil ainda,

Tremia! Lua tão linda,

Lembra-me ainda… Jamais!

 

Aquela dália mimosa,

Aquele botão de rosa

Dos lábios dela… Senhor!

Murchavam; mas como a Lua,

Passava a nuvem: “Sou tua”!

Reverdeciam de amor!

 

E aquela estatua de neve

Como é que o fogo conteve

Que não a vi descoalhar?

Ondas de fogo, uma a uma,

Naquele peito de espuma

Eram as ondas do mar!

 

Como os seus olhos me olhavam,

Como nos meus se apagavam,

E se acendiam depois!

Como é que ali confundidas

Se não trocaram as vidas

E os corações de nós dois!

 

Mimosa noite de amores

Mimoso leito de flores

Mimosos, lânguidos ais!

Vergôntea débil ainda,

Tremia! Lua tão linda,

Lembra-me ainda… Jamais!

 

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Um soneto de Antero de Quental

11 Segunda-feira Jan 2010

Posted by viciodapoesia in Cânone XXI

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António Sérgio, Antero de Quental, Fernando Pessoa, João de Deus, Oliveira Martins

Por mais ligados à matéria que nos sintamos, cedo ou tarde a experiência metafísica bate-nos à porta.

É recente em mim a presença de Deus. Não um Deus cosido a qualquer catecismo, mas um Deus explicação do transcendente, como o de Antero de Quental, de quem trago hoje um soneto.

Em Antero de Quental, poeta-filósofo que foi, e mestre maior do soneto em português, a presença de Deus é recorrente.

Dos seus sonetos disse Oliveira Martins no prefácio que acompanhou a edição em livro:

[Hão-de] encontrar um acolhimento amoroso em todas as almas de eleição, e durar enquanto houver corações aflitos, e enquanto se falar a linguagem portuguesa.

Este prefácio, para quem não conheça o perfil de Antero, é na sua justeza e concisão, o lugar onde podemos aproximar-nos do homem e do poeta.

Por outro lado, o estudo de António Sérgio na edição que preparou dos Sonetos, embora estimulante nas suas interpretações, deixa pouco espaço para uma leitura pela via do sentimento.

Para os curiosos da biografia do poeta aqui fica um endereço da rede com uma biografia de confiança

Poeta do transcendente em mim, visão perfeita daquele verso de Fernando Pessoa O que em mim sente stá pensando, de resto coincidente com a caracterização que já Oliveira Martins fazia  de Antero no prefácio aos seus Sonetos

“É um poeta que sente, mas é um raciocínio que pensa. Pensa o que sente; sente o que pensa.”,

os seus sonetos acompanham-nos pela vida logo que os conhecemos.

Enviando por carta a João de Deus o soneto que escolhi, diz-lhe Antero:

E agora aí vai um soneto. Será talvez o primeiro de que gostes por mais alguma coisa que só pela forma.

 

O meu pessimismo tem-se desvanecido com esta vida contemplativa no meio da boa natureza. Reconheci que andar por toda a parte a proclamar, com voz lúgubre, que o mundo é vão, era ainda uma última vaidade… lá vai o soneto –

 

Na mão de Deus, na sua mão direita,

Descansou afinal meu coração.

Do palácio encantado da Ilusão

Desci a passo e passo a escada estreita.

 

Como as flores mortais, com que se enfeita

A ignorãncia infantil, despojo vão,

Depus do Ideal e da Paixão

A forma transitória e imperfeita.

 

Como criança, em lobrega jornada,

Que a mãe leva no colo agasalhada,

E atravessa, sorrindo vagamente,

 

Selvas, mares, areias do deserto…

Dorme o teu sono, coração liberto,

Dorme na mão de Deus eternamente.

 

 

 

É ainda numa carta a João de Deus datada de Vila do Conde que no inicio desse mesmo ano, a 13 de janeiro de 1882, dá conta do estado de espírito que o anima –

“Eu dou-me aqui bem, apesar de viver completamente só. Quando quero falar, vou ao Porto conversar com Oliveira Martins. Se tu ali estivesses também, tinha tudo quanto desejo.

Aqui as praias são amplas e belas, e por elas passeio ou me estendo ao sol, com a voluptuosidade que só conhecem os poetas e os lagartos, adoradores da luz.”

Estes extractos são esclarecedores do ânimo do poeta e a placidez que transparece nas cartas reflecte-se no poema.

Como estamos longe do pessimismo de tanta da sua poesia, numa aceitação da harmonia do mundo qual “criança ... Que a mãe leva no colo… E atravessa sorrindo… Selvas, mares, areias do deserto…”

Fiquemos por agora com este Deus em poesia que nos permite dormir o sono com o coração liberto.

 

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CRYPTINAS seguido de ULTIMO SUSPIRO de JOÃO DE DEUS com uma nota bibliográfica

06 Quarta-feira Jan 2010

Posted by viciodapoesia in Raros/Curiosos

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João de Deus

Foi publicado no final do séc. XIX um folheto anónimo – CRYPTINAS – com 11 poesias jocosas do género deste

Guardanapo

O jornal que muitas vezes

Diz coisas que metem dó,

E constitue as delicias

Dos amantes de noticias,

Leem-no muitos fregueses,

Mas é com um olho só.

atribuídas a  João de Deus . O assunto dos poemas entre brejeiro e irónico, onde apenas neste GUARDANAPO existe uma insinuação escatológica, chocou as boas consciências. Valem hoje os poemas pela fluência da rima, onde alguns mantêm a graça, como EQUIVOCO  ou CARECA.

À época, ouviu-se um coro de indignação e repúdio, pois aqueles poemas manchavam a reputação do poeta. E de então para cá o silêncio sobre tal folheto tem sido regra.

 

A edição deve ter sido muito pequena e o folheto é hoje praticamente inencontrável. Nem a Biblioteca Nacional de Portugal possui qualquer exemplar.

 

Nos anos 80 do séc. XX a editora & etc publicou uma reedição do folheto rapidamente esgotada. Hoje tambem esta edição é rarídade bibliográfica e procurada como peça de colecção.

 

 

A raridade do folheto leva-me a deixar aquí uma cópia em pdf.

 

link para o folheto: CRYPTINAS – JOÃO DE DEUS

 

Com ela espero de alguma forma contribuir para uma visão menos edulcorada, e porventura mais verdadeira, desta glória nacional com honras de panteão.

 

Noticia bibliográfica

 

É sabido quanto da vida de João de Deus foi vida de estúrdia e de boémia, por mais que as santas almas ponham os olhos em alvo e teçam loas à obra do poeta assimilando-a àquela famosa CARTA em verso:

Maria! Ver-te à porta a fazer meia,

Olhando para mim de vez em quando,

É o que nesta vida me recreia.

…


Ainda que justas, e o poema mereça, a obra do poeta não é apenas isso.

 

Quem ler hoje a obra poética de João de Deus vê como, ao lado de criações sublimes, existem verdadeiras banalidades, há que ser sincero. Uma antologia com as diferentes facetas da obra é hoje necessária, por inexistente.

A desatenção com que João de Deus sempre viu as suas criações, tantas vezes espontâneas, distribuindo-as por amigos e não cuidando da sua conservação na forma em que as concebeu, torna a tarefa de edição especialmente melindrosa e susceptível de um coro de críticas.

De resto, foi o que aconteceu quando Teófilo Braga meteu mãos à tarefa de reunir as poesias de João de Deua publicadas e dispersas, no que viria a ser o livro Campo de Flores, e pretendeu ser essa uma “EDIÇÃO AUTHENTICA E DEFINITIVA”.

Esta 1ª edição de Campo de Flores publicada em 1893, afinal não foi definitiva. A 2ª edição três anos depois, pouco após a morte do poeta em 1896, surge modificada com a adição de mais de uma centena de poemas e a reintrodução de pelo menos mais dois poemas deixados de fora da 1ªedição por autoria duvidosa.

Esta 2ª edição que se reclamava de “NE  VARIETUR” afinal foi modificada e também ela se viu acrescentada pela 3ªedição, ao que julgo saber, de mais alguns poemas.

E de todas elas CRYPTINAS ficou sempre de fora.

 

A obra poética de João de Deus sofreu em vida do autor tratos de polé, e por ausência de uma edição crítica, desconhecemos hoje se o corpus de Campo de Flores reúne todos os poemas de João de Deus, e mais, se dos poemas que lá estão, são todos efectivamente do poeta ou há algum que não lhe pertença, e ainda se na sua forma, correspondem à vontade do autor.

João de Deus por sua iniciativa nunca publicou qualquer livro. Sobre a iniciativa de publicação em jornais e revistas não possuo informação. A recolha das poesias de João de Deus foi inicialmente feita por um amigo (José António Garcia Blanco) para uma edição em livro que se viria a traduzir na publicação de Flores do Campo em 1868, tinha o poeta à data 38 anos e passava pelas maiores dificuldades.

Este Flores do Campo foi recebido com enorme aplauso do público e da crítica, e  teve 2ªedição em 1876, publicada pela Livraria Universal do Porto. Esta nova edição vinha corrigida e muito aumentada em relação à primeira. No mesmo ano, o mesmo editor publicou o volume Folhas Soltas. Este editor foi alvo de verdadeiras injúrias por parte de Teófilo Braga no prefácio da 1ªedição de Campo de Flores.

 

Tinham passado 25 anos desde a publicação em livro da primeira recolha de poemas de João de Deus. A crescente notoriedade do poeta e o apreço público envolvendo a Cartilha Maternal e o seu empenhamento cívico, levaram a que Teófilo Braga se propusesse reunir e editar as poesias do poeta, uma vez que este não se empenhava em fazê-lo. Os contornos desta colaboração ainda hoje não são perfeitamente claros.

 

Desta colaboração resultou a 1ªedição de Campo de Flores. A polémica que se seguiu à publicação desta 1ªedição, ainda em vida do autor, respeitando a omissões de poemas e modificações em relação a versões conhecidas de algumas poesias, trouxe à luz os poemas acrescentados nas edições seguintes.

As escolhas editoriais de Teófilo Braga quanto a títulos, pequenos arranjos de formas verbais e outras, continuaram a suscitar dúvidas a quem conheceu de perto o poeta, com ele privou e de alguma forma seguiu as vicissitudes da sua vida e da sua obra.

 

É por tudo isto que uma edição crítica da obra poética se torna necessário. Uma edição que nos dê, na medida do possível, os poemas como o poeta os criou.

Seria uma edição crítica que, ao percorrer com olhos de hoje documentos e testemunhos, permitiria ver quais das variantes existentes para cada poema, em manuscrito quando existir, e nas suas edições conhecidas na imprensa ou em livro, se encontra mais próxima da vontade do autor.

Uma edição critica que, ancorada em sólidos critérios de crítica literária, separe o que é do poeta do que eventualmente foi acrescentado ou modificado por copistas ou editores menos escrupulosos, isto sem preconceitos ou ideias feitas sobre uma imagem que se queira transmitir.

 

A associação de João de Deus ás crianças e à Cartilha Maternal, por onde também aprendi a ler, torna qualquer mexida na sua obra especialmente vulnerável a mal entendidos. Talvez por isso ninguém tenha querido correr o risco de tentar a edição crítica necessária. Os poderes públicos financiam uma pleiade de instituições associadas ao nome e á obra do poeta, algumas das quais depositárias de espólio. É a estas instituições que cabe a iniciativa de promover uma edição com estas características.

 

Agora sobre o folheto CRYPTINAS  e o que sobre ele circula.

Percorrendo histórias e dicionários de literatura portuguesa não encontrei referência a tal folheto, ou seja, tendo em conta apenas essas fontes o folheto nunca teria existido.

Foi num opúsculo publicado por Trindade Coelho e Alfredo Cunha em resposta à 1ª edição de Campo de Flores, o qual acrescenta 56 poesias dispersas ao corpus de Campo de Flores, que encontrei referência explícita ao folheto CRYPTINAS, com a descrição do seu conteúdo. Essa descrição coincide integralmente com o folheto que aqui divulgo.

Acontece que na apreciada e nunca demais elogiada, Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica editada por Natália Correia, se encontram dois poemas “Omissão” e “Ao Quaresma (Manuel)” com indicação de que provêm de  CRYPTINAS. Ora, esses poemas  não constam do folheto aqui divulgado.

Significará isto que existiu outro folheto CRYPTINAS com conteúdo diferente? Se assim foi, não encontrei até hoje traço da sua existência.

A ausência de referências bibliográficas na  Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica impede o conhecimento da origem editorial destes dois poemas. A haver lapso, os poemas “Omissão” e “Ao Quaresma (Manuel)” serão também de João de Deus? Dúvidas que a edição crítica da obra poética de João de Deus viria resolver.

Termino com o poema ULTIMO SUSPIRO publicado pela primeira vez no opúsculo de Trindade Coelho e Alfredo Cunha acima referido, espelho de uma certa bonomia na amargura, marca de água do poeta.

 

ULTIMO SUSPIRO

Fui a semana passada

Visitar o hospital

E vi n’uma enfermaria

O pobre de Portugal;

Perguntei-lhe o que sentia,

– uma fraqueza geral,

E nesta edade avançada

É um achaque mortal:

Vem Oliveira Martins,

Vara-me d’uma estocada!

Vem Augusto ‘zé da Cunha,

Ferra-me uma punhalada!

Isto não é caramunha

Que tudo foi com bons fins,

Porque um e outro supunha,

Tanto Augusto ‘zé da Cunha

Como Oliveira Martins,

Que sendo a morte fatal,

Abreviando-me a vida

Me abreviavam o mal. –

E já com a voz sumida

E no arranque final:

– Tratem-me do funeral

Que a lebre está corrida…

30-12-893

 

 

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