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Carta de Heloísa a Abailard segundo Pope

17 Terça-feira Jan 2017

Posted by viciodapoesia in Crónicas

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Alexander Pope, Ticiano

danae-museu-capodimonte-de-napoles-detalhe-550pxO amor enquanto paixão avassaladora, sobrepondo-se a quaisquer considerações sociais, religiosas, ou outras, encontra na recriação da paixão de Heloísa por Abailard imaginada por Alexander Pope (1688-1744) no século XVIII, a desmesura adequada, e é ainda hoje de empolgante leitura:

 

…
Eu te amei, e o prazer fiel seguindo
Fracas lembranças do meu Deus só tive.
Estimação, dever, honra, e prudência
Hei tudo por te amar sacrificado!
Eu te adorava, e em tão suave engano
Da terra o resto para mim perdido,
Meu Deus, meu universo em ti só via.
…

 

 

A extensão do poema inviabiliza a sua transcrição na totalidade, pelo que escolho alguns fragmentos onde Heloísa dá conta da natureza e dimensão do seu amor por Abailard.

 

O poema, assumindo-se como carta, é escrito a partir do convento onde Heloísa foi obrigada a recolher depois da descoberta pelos seus familiares, dos amores clandestinos que mantinha, ainda adolescente, com o seu professor, e também clérigo, Abailard.

 

A tradução, em verso branco, é de José Anastácio da Cunha (1744-1787), feita no final do século XVIII.

 

 

 

…
És tu, insano amor, que vens de novo
De um coração sensível tomar posse?
Ah! quanto me enganava!… Eu amo, eu ardo,
Eu ainda adoro… — Oh nome sempre caro!…
Abailard!… Oh querido!… quanto te amo!
Uma, e mil vezes leio a tua carta
Mil vezes minha boca amante beija
Da tua mão as conhecidas letras.
Caro Abailard, que horror!… Neste retiro
Como o teu nome articular me atrevo!…

 

…
Ah! que amor em teus braços me encantava
E amor longe de ti meu pranto excita!…

 

…
Ah! da nossa união, tão livre e pura,
A terra, e o mesmo céu têm feito um crime!
Quando o meu coração, e o teu ligados,
De amor e de amizade tu me davas
Em nome da virtude lições meigas;
Teus olhos sobre os meus nadando em gosto,
Com o fogo das paixões então brilhavam;
Minha alma foi com a tua confundida;
Um Deus em ti sem susto contemplava;
Um erro assim busquei, que me iludia.
Ah! e quão fácil te era o alucinar-me!
Tu falavas — minha alma obedecia;
Tu me pintaste amor, de encantos cheio,
E a doce persuasão de teus discursos
No já vencido peito insinuaste:
Ah! que da tua boca para a minha
Ela pelos teus lábios se passava!…
Eu te amei, e o prazer fiel seguindo
Fracas lembranças do meu Deus só tive,
Estimação, dever, honra, e prudência
Hei tudo por te amar sacrificado!
Eu te adorava, e em tão suave engano
Da terra o resto para mim perdido,
Meu Deus, meu universo em ti só via.

 

Quando a tua alma, enfim, à minha presa,
Cerrar me instava de himeneu os laços,
Eu te disse: — Querido, que pretendes?
Amor crime não é, mas sim virtude:
Para que é pois tiranas leis impôr-lhe
E de prisões políticas cingi-lo?
Amor não é escravo; — independente
No coração dos homens ele nasce,
Qual puro sentimento de alma pura:
Nosso prazer liguemos, sem que seja
Necessário também ligar as sortes.
Ah! — Pensa que himeneu prender só deve
Dos amantes sem fé vulgares almas.
Meus prazeres, meus bens no amor encontro.
O firme amor insídias não receia,
Basta amar, e seguir a natureza.
Aprendamos a amar-nos mutuamente,
E só no puro amor amor busquemos,

 

…
Os títulos, a gloria, a honra, a fama:
Todos os nomes que a fortuna inventa,
Rejeito altiva, e só me lisonjeia
De tua amante o nome: — e se ainda há outro
De mim mais digno, e que melhor explique
Meu terno amor, por ti vaidosa o tomo.
Oh! quanto é doce amar, e ser amado!…
Esta a primeira lei, o resto é nada.
Quem mais ditoso do que dois amantes,
Pela afeição, e pelo gosto unidos!
Eles pensam, e falam livremente;
A alegria confundem com seus gestos;
Gozando sempre, e sempre desejando,
Seus corações contentes não conhecem
Nojosos dias, e preside sempre
Uma doce ilusão à sua dita:
Por áureo copo a longos tragos bebem
Dos males, e dos não logrados gostos
Eterno esquecimento: — se há ditosos,
Seus corações decerto a dita gozam!
A bem aventurança, que buscamos,
Amor a dá, amor ao prazer guia,
E os mais perfeitos bens no amor existem:
Tal, querido Abailard, foi nossa sorte.
…

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FELIZ ANO NOVO

31 Sábado Dez 2016

Posted by viciodapoesia in Crónicas

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miro-circo-550pxChegados à entrada de novo ano desejo a cada leitor do blog o melhor e a capacidade para o aproveitar.

FELIZ 2017

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FELIZ NATAL

23 Sexta-feira Dez 2016

Posted by viciodapoesia in Crónicas

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niki-saint-phalle-1971-500pxPara os leitores do blog o desejo de um FELIZ NATAL 2016.

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Horas breves do meu contentamento — soneto em diversas versões

02 Sexta-feira Dez 2016

Posted by viciodapoesia in Crónicas

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picabia-1879-1953-rapariga-no-paraiso-505pxPor mais de uma vez me tenho interrogado sobre o destino editorial, e consequente conhecimento público, de poemas que tendo sido atribuídos a Camões e integrado a sua obra, foram posteriormente considerados apócrifos por sucessivos estudiosos desta, e algumas vezes excluídos da sua edição.

Hoje sigo o percurso de um desses poemas, um soneto, cujo primeiro verso — Horas breves de meu contentamento, — nos cativa de imediato.

O poema contrasta o efémero da felicidade com o prolongado do sofrimento trazido pelo amor quando intransponíveis obstáculos se opõem à sua vivência continuada.

O soneto foi muito popular à época e variadas versões polulam pelos cancioneiros de mão do tempo.

O soneto foi atribuído por Álvares da Cunha a Camões em 1668 e publicado na sua edição das Terceira Parte das Rimas do poeta (pág 105).

Antes, tinha sido publicado por Diogo Bernardes em Flores do Lima (1598), e foi, como outros, incluído nas Rymas de Camões por Manuel de Faria e Sousa publicadas em 1685(Tomos I y II) e 1689(Tomos III. IV. y V) com o argumento de que seria seguramente de Camões, e estando a sua poesia inédita, Diogo Bernardes se teria apropriado da sua autoria. Nada prova que tivesse razão, daí ser recusada a autoria a Camões.

As variadas versões que nos chegaram divergem entre si nalguns versos dando conta de uma dinâmica de apropriação particular da poesia, que se perdeu: os diversos autores historicamente identificados aproveitaram o que lhes apeteceu e do que gostaram menos alteraram a seu prazer.

Seguem seis versões do soneto. Por vezes muda apenas uma ou outra palavra num verso enquanto noutras versões o último terceto é integralmente substituído. Registo as diferenças para as duas versões atribuídas a Camões.

Existem ainda outras versões do soneto, objecto de glosa integral ou parcial (como foi o poema de A Primavera de Francisco Rodrigues Lobo há meses publicado aqui no blog), mas essas ficam para outra ocasião.

 

 

 

I
Versão em Lírica de Camões, ed. Maria de Lurdes Saraiva, edição INCM, Lisboa, 1980.
Igual à versão da edição Álvares da Cunha (1668).
 

Horas breves do meu contentamento,
nunca me pareceu, quando vos tinha,
que vos visse mudadas tão asinha (*)
em uns tão longos dias de tormento.

As altas torres, que fundei no vento,
o vento as levou logo, que as sustinha;
do mal, que me ficou, a culpa é minha,
pois sobre cousas vãs fiz fundamento.

Amor com falsas mostras aparece;
tudo possível faz, tudo assegura
e logo, no melhor, desaparece.

Eu o quis, pois o quis minha Ventura,
que gemendo e chorando, conhecesse
quão fugitivo ele é, quão pouco dura.
 

 

II
Versão em Rymas de Camões, Edição de Manuel de Faria e Sousa, Soneto LXXX da Centúria II (Tomo II da edição das Rymas).
Versão retomada pelo Padre Tomás José de Aquino na sua edição das Rimas de Camões (1783), Soneto CLXXX.
(Em relação a I mudam os versos 4, 6, 9, 11, 12-14).
 

Horas breves de meu contentamento,
nunca me pareceu, quando vos tinha,
que vos visse mudadas tão asinha (*)
em tão compridos anos de tormento.

As altas torres que fundei no vento,
levou, enfim, o vento que as sustinha;
do mal que me ficou a culpa é minha,
pois sobre cousas vãs fiz fundamento.

Amor com brandas mostras aparece,
tudo possível faz, tudo assegura;
mas logo no melhor desaparece.

Estranho mal! Estranha desventura!
Por um pequeno bem que desfalece,
um bem aventurar que sempre dura!

 

 

 

III
Versão atribuída ao Infante D. Luis no Índice do Cancioneiro do Padre Ribeiro, ed Carolina Michaëlis de Vasconcelos, (I O Cancioneiro Fernandes Tomás, II O Cancioneiro  do Padre Pedro Ribeiro, reedição INCM, Lisboa 1980).
 

Horas breves de meu contentamento,
nunca me pareceu, quando vos tinha,
que vos visse mudadas tão azinha (*)
em tão compridos dias de tormento.

Os meus castelos que fundei no vento,
o vento mos levou que mos sustinha;
do mal que me ficou a culpa é minha,
pois sobre cousas vãs fiz fundamento.

Amor com falsas mostras aparece;
tudo possível faz, tudo assegura
e logo no melhor desaparece.

Ó dano grande e grande desventura
por um pequeno bem que desfalece,
aventurar um bem que sempre dura.

 

 

 

IV
Versão identificada como “Outro soneto alheio” (nº27) em Obras de André Falcão de Resende.
Ed. crítica de Bárbara Spaggiari, Edições Colibri, Lisboa, 2009.
 

Outro soneto alheio
Horas breves do meu contentamento,
nunca me pareceu, quando vos tinha,
que vos visse mudadas tam assinha (*)
em tam compridos dias de tormento.

Aquelas torres, que fundei no vento,
o vento as levou, que as sustinha;
do mal que me ficou a culpa é minha,
pois sobre cousas vãs fiz fundamento.

Amor com falsas mostras aparece;
tudo possível faz, tudo assegura
mas logo no melhor, desaparece.

Ó grande mal, ó gran desventura!
por um pequeno bem, que logo esquece,
aventurar um bem, que sempre dura.

 

 

 

V
Versão em Rimas Várias — Flores do Lima de Diogo Bernardes
ed. Marque Braga, Sá da Costa editora, Lisboa, 1945.
 

Soneto LXXV
Horas breves de meu contentamento,
nunca me pareceu, quando vos tinha,
que vos visse tornadas tão asinha (*)
em tão compridos dias de tormento.

Aquelas torres, que fundei no vento,
o vento as levou, já que as sustinha;
do mal, que me ficou, a culpa é minha,
que sobre cousas vãs fiz fundamento.

Amor com rosto ledo(**), e vista branda
promete quanto dele se deseja,
tudo possível faz, tudo assegura:

Mas des que n’alma reina, e manda,
como na minha fez, quer que se veja,
quão fugitivo é, quão pouco dura.

 

 

 

VI
Versão no Cancioneiro Fernandes Tomás atribuída a Diogo Bernardes, 22v.***, e diferente da publicada em Rimas Várias — Flores do Lima.
 

Soneto
Horas breves de meu contentamento,
nunca me pareceu, quando vos tinha,
que vos visse mudadas tão azinha (*)
em tão compridos dias de tormento.

As minhas torres, que fundei no vento,
o vento mas levou que as sustinha;
do mal que me ficou a culpa é minha,
pois sobre cousas vãs fiz fundamento.

Amor com falsas mostras aparece;
tudo possível faz, tudo assegura
mas sempre no melhor, desaparece.

Ah triste fado, ah desventura
por um pequeno bem que desfalece
aventurar um bem que sempre dura.

(*) depressa

(**) alegre, satisfeito
***Transcrição minha a partir do fac-símile do manuscrito.

 

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Francis Picabia (1879-1953), Rapariga no Paraíso, aguarela e lápis sobre papel pertencente a colecção particular.

 

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Macaroni e um enigma setecentista em verso atribuído a Curvo Semedo

15 Quinta-feira Set 2016

Posted by viciodapoesia in Crónicas, Poesia Antiga

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Curvo Semedo

macaroni-ingles-2-500pxO reino das massas alimentícias, originárias de Itália, é, como se sabe, universo de paixão e de prodígios (culinários, evidentemente), onde até em Nápoles a pizza portuguesa pode ser considerada a melhor do mundo (noticia a imprensa).

Em massas, a infinita variação culinária é quase igual à diversidade de apresentação, e embora as massas frescas sejam de popularidade recente entre nós, algumas variedades de massa seca foram de longa data adoptadas pela culinária portuguesa, qual seja, por exemplo, o macarrão, indispensável para um bom feijão com massa.

Este macarrão já conhecido por cá no século XVIII, gozaria certamente de grande popularidade à época, a tal ponto que foi assunto de um sofisticado enigma poético atribuído a Belchior Curvo de Semedo (1766-1838), e que a seguir vos dou a conhecer.

 

Enigma
É grosso, longo, e furado,
Pinga, mas não se derrete,
Enxuto, e duro, se mete,
Tira-se mole, e molhado.
É à cobra assemelhado,
Mas tem seu quê com a espiga,
Penetra até à barriga,
Sacia a vontade à gente;
Porém ser cousa indecente
Não se creia, nem se diga.

 

E não se creia, não, senhores.

Tudo isto quer dizer mui simplesmente macarrão!

 

In Poesias Lyricas de Belchior Manuel Curvo de Semedo – Belmiro Transtagano, ed. 1890.

macaroni-ingleses-1-450pxEsta leitura do macarrão está longe do que sucedeu à palavra em terras de sua majestade britânica.

Por alturas da composição deste poema, ou um pouco antes (anos 60 do século XVIII), o macarrão, maccherone em italiano, transformou-se em Inglaterra num epíteto, acompanhando o sucesso local à época das massas italianas, macaroni.

macaroni-ingleses-sala-de-vestir-500pxAplicou-se em Inglaterra o epíteto de macaroni aos elegantes, sobretudo jovens aristocratas ou de posses, regressados da sua viagem cultural ao continente (Grand Tour), trajando  de forma original e espaventosa. A coisa ganhou proporção tal no espavento que foi motivo de retumbante sucesso em caricaturas da época, das quais alguns exemplos acompanham o artigo.

macaroni-ingles-1-450pxO amaneiramento em que a originalidade se tornou fez com que em alguns anos, o termo se tornasse sinónimo de efeminado. A vertigem da moda seguiu outros caminhos e por eles desapareceram os macaroni.

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Da incontinência fotográfica dos nossos dias ao burkini

19 Sexta-feira Ago 2016

Posted by viciodapoesia in Crónicas

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beduína 500pxPerante a incontinência fotográfica dos nossos dias, parece desnecessário um Dia Mundial da Fotografia.
Cada humano com acesso à tecnologia de hoje, possui uma câmara fotográfica, se não duas, três, ou mais. Olha, dispara, fotografa-se a si, fotografa ao redor, e fica feliz.

Poucos gestos com a tecnologia na mão darão mais prazer que o gesto de fotografar, daí o seu sucesso. E é acumular fotografias até à mais absoluta indiferença, sobre o que foi um prazer sobreposto a outros.
Passear, olhar em redor, desfrutar do que se vê? Não! Fotografar para ver mais tarde em quadradinho o que podia ter sido contemplado na magnificência do real. Deste fenómeno hodierno, turistas japoneses e chineses são o requinte máximo.


Há tempos, numa pausa de passeio, enquanto bebericava uma cerveja, duas amigas que me acompanhavam, mostravam-se fotos. As fotos passavam, trá-lá-lá, e a certa altura diz uma:
— Isto nunca mais acaba. Só neste telemóvel tenho mais de oito mil fotos!
Responde a outra com um misto de inferioridade e inveja na voz:
— Eu pouco mais tenho que seis mil!


A fotografia familiar como preservação de memória é uma aquisição tecnológica preciosa para as nossas vidas. Já a memória fotográfica dos lugares nos moldes correntes hoje, com o pico Facebook que se conhece, tenho dúvidas. E não falo dos casos extremos que o NYT referia há dias em crónica, de gente que se faz fotografar em férias por fotógrafos pagos, com o propósito de obter fotos glamorosas e publicá-las no Facebook para amigo ver, mas do vai aqui, foto no Facebook, vai ali, foto no Facebook!

 

Acontece que o fotografar turístico pode ter consequências sociais e políticas sérias como o que recentemente aconteceu em praias francesas. Ao que li na imprensa, a reacção francesa ao uso de burkini nas praias, com a sua proibição em algumas, decorreu dos tumultos desencadeamos em praia da Córsega quando turistas fotografaram mulheres banhistas em burkini.
Este burkini enquanto vestimenta de banho nada tem a ver com a burqa, a qual, como traje de ofensa pública, pode ser discutida nos mesmos termos que o circular nu em locais públicos coloca: que limites aceitamos no convívio social entre desconhecidos.
O burkini, no entanto, é a meu ver, elegante e sexy. Quando agarrado ao corpo, desenhando as formas de mulher, permite expôr uma elegância equivalente a um traje de surf ou pesca submarina, quando o corpo a tem. Bastante melhor que as camisas de noite qua ainda hoje as festeiras do dia de São João da Degola levam para o mar e depois do banho permanecem molhadas e agarradas ao corpo em sedutoras formas rugosas. Literariamente Manuel Teixeira-Gomes dá desta festa na Praia da Rocha, em Portimão, no Algarve, uma voluptuosa descrição, penso que em Inventário de Junho, mas aqui em férias não o posso confirmar.

Se esta festa de S. João da Degola era dos momentos mais esperados em finais de Agosto nas férias na praia da minha adolescência, a primeira vez que me cruzei com mulheres em burkini, foi bastante mais tarde, há alguns anos apenas, numas férias no Egipto. Do meu ponto de vista, estes burkinis contribuem para dar variedade à paisagem humana das praias introduzindo uma nova ocupação do olhar naquele nada que fazer que é estar à beira-mar.

 

Num meio caminho entre a burqa e o burquini, deixo-vos a fotografia de abertura desta conversa de férias onde espreita o olhar atrevido de uma bela egípcia que fotografei ao tempo dessas férias no Egipto.

beduína- o olhar

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Piquenique ao tempo de Hesíodo

19 Terça-feira Jul 2016

Posted by viciodapoesia in Crónicas, Poesia Grega

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Hesíodo, Pieter Bruegel o Velho

A ceifa do trigo detalhe 500pxNuma daquelas reportagens de encher tempo de antena, um canal televisivo dava conta dos propósitos e ementa de uma família portuguesa para aproveitar o calor de um dia de verão: fazer piquenique ao almoço e gozar os prazeres do descanso à sombra e ao ar livre.

 

O gosto de ir ao encontro da natureza em dias de verão é de todos os tempos e dele a literatura tem feito abundante eco. Para ler com enorme prazer e enfrentar o calor, podem servir as narrativas do Decameron de Bocaccio, mas para poesia, e por forma a dar uma dimensão razoável ao artigo, recuo bastante mais no tempo, às origens gregas da poesia, com a narrativa que Hesíodo (sec. VIII a.C.) faz em Trabalhos e Dias, do desejo de piquenique no calor de um dia de verão.

 

Se a nossa família portuguesa ia carregada de carne, enchidos, porco para grelhar, e vinho para beber, a ementa desejada por Hesíodo difere tão só na qualidade das proteínas escolhidas, fazendo dela uma refeição mais próxima do dietecticamente recomendável pelos padrões de hoje. Vistos os quase três mil anos que os separam, desejos e seu conteúdo, quão pouco mudou no que de essencial a natureza humana tem. Se não, leiam:

 

 

 

O verão

Quando o cardo floresce e a ruidosa cigarra
pousada nas árvores espalha o seu canto estridente,
com o contínuo bater das asas, nos penosos dias de verão,
as cabras estão então mais gordas e é melhor o vinho,
mais lascivas as mulheres e mais frágeis os homens,
quando Sírio esquenta a cabeça e os joelhos
e, sob o efeito do calor, a pele se torna seca.
Pudesse ao menos eu ter a sombra dum rochedo
e vinho bíblino, uma bolacha e leite
das cabras que não aleitam os filhos, um pedaço
de carne de vitela alimentada nos bosques,
que ainda não teve crias, e de cabrito
recém-nascido. E, por cima, para saborear
o vinho flamejante, que possa deitar-me à sombra,
com o coração saciado de comida e o rosto
voltado contra o forte sopro do Zéfiro,
tirar três vezes água duma fonte cristalina
e misturar-lhe uma quarta parte de vinho.

Trabalhos e Dias, 582-596

 

Transcrito de Antologia da Poesia Grega Clássica, tradução e notas complementares de Albano Martins, Edições Afrontamento, 2011.

 

 

Abre o artigo a imagem do detalhe de uma pintura  Pietr Bruegel o Velho (1525-1569) conhecido por Colheita de Trigo.

 

Há anos (2012), por esta época, transcrevi aqui no blog este mesmo fragmento de Hesíodo mas numa tradução de José Ribeiro Ferreira. As ligeiras diferenças nas opções de vocabulário não alteram o mérito de qualquer das traduções.

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Bonacon, um fantástico guerreiro

27 Segunda-feira Jun 2016

Posted by viciodapoesia in Crónicas

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Bonnacon-Medieval-Monster-01 500pxViajar pelo Bestiário medieval é percorrer um fascinante mundo onde a imaginação preenchia a insuficiência de conhecimento objectivo.
A par de um quotidiano materialmente difícil, floresceu em alguns conventos o cultivo da elaboração de manuscritos iluminados (texto acompanhado de imagens) recolhendo obras herdadas da antiguidade clássica e textos de doutrina que explicavam o mundo à luz do cristianismo. Obras de arte de muito difícil acesso, vamos hoje, lentamente, conhecendo alguns desses preciosos in-folios através tanto da sua reprodução em fac-símile, como em edições antológicas, por vezes de sufocante beleza.

Bonnacon-Medieval-Monster-03 500pxHoje recordo um animal imaginário, o Bonacon, fruto da fantasia do mundo antigo. Ele leva-nos a pensar como a terra pode, afinal, ser um lugar de inocência e brincadeira, e não apenas a crueldade que nos assombra amiúde, sobretudo quando hoje nos confrontamos, enquanto comunidade, com assassinos exaltados que pretendem fazer-nos viver como eles querem, ou morreremos, ainda que eles possam morrer também pelo caminho.
Era este mundo de inocência medieval também assombrado pela crença, onde o irracional domina e a muito custo a razão abre caminho, como o romance O Nome da Rosa recria.

Bonnacon-Medieval-Monster-02O Bonacon seria uma fantástica arma de guerra tornando invencível quem o possuía, se domesticável, por virtude duma peculiar química que afugenta.

Bonnacon-Medieval-Monster-04 500pxArma unicamente defensiva, à aproximação do inimigo o Bonacon expelia excrementos a uma velocidade tal que poderiam ser projectados até quase cem metros de distância, e com o poder atordoante que se imagina, neutralizar os inimigos perseguidores.
De tal espécie não se conhece filiação ou descendência. Seria talvez mamífero, quadrúpede, aparentado com um touro, com um par de cornos retorcidos. As crónicas não informam sobre a sua corpulência ou agilidade. A notícia da sua existência, referida por Plínio na História Natural (8.16),  foi-me dada por Christian Heck e Rémy Cordonnier no fascinante livro The Grand Medieval Bestiary, o qual nada refere sobre estes aspectos. Habitaria as terrae incognitae da Trácia à Ásia, surgindo representado em alguns mappae mundi medievais nas regiões do norte.
Pouco representado nos códices medievais, quando surge aparece em atitudes de defesa, projectando excrementos sobre os perseguidores os quais se protegem sob os escudos, assustando assim os intrépidos cavaleiros cujas provas de heroísmo são bastamente relatadas nas epopeias da época.
Termino com mais uma imagem do fabuloso Bonacon, sempre em acção, tal como as anteriores, extraída de códices medievais.

Bonnacon-Medieval-Monster-06

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Do Amor em três poemas de Emily Dickinson

19 Domingo Jun 2016

Posted by viciodapoesia in Crónicas

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Emily Dickinson, Matisse

Henri Matisse 1869-1954 La liseuse distraite 1919Nascemos para ser felizes? A resposta impulsiva é sim. Mas é a felicidade permanente possível? É difícil sequer imaginar semelhante anseio. Fica-nos, no entanto, a possibilidade da busca para o conseguir, pois felizes, e sempre, queremos todos ser.

E é o amor o caminho para essa felicidade? Aí a resposta tem tantas possibilidades quantos os humanos que já viveram e vivem, ou viverão.

A experiência do amor, pessoal e intransmissível, é aflorada pela poesia uma e outra vez, recorrentemente, e nas suas variadas facetas: do amor-paixão ao amor-renúncia, do amor ao outro ao amor aos outros, de filhos a pais e pais a filhos, e por aí fora; encontrando cada um nessas manifestações os momentos de felicidade que fazem a vida compensadora. Mas aquele que, adultos, nos faz vibrar no mais fundo de todas as fibras é o amor consumado no sexo, e desse falam os poemas de Emily Dickinson (1830-1886), que hoje escolhi, num crescendo, do desejo à consumação.

 

I

Noites Bravias — Noites Bravias!

Estivesse eu contigo

Tais Noites o nosso

Deleite seriam!

 

Fúteis — os Ventos —

A Coração em Porto —

Inútil a Bússola —

Como o Mapa inútil!

 

Remando em Éden —

Ah, o Mar!

E eu ancorar — Esta Noite —

Em Ti!

 

II

E se eu disser que não vou esperar!

Se eu rebentar Portões carnais —

E conseguir chegar — a ti!

 

Se eu me livrar de ser Mortal —

Onde doer — Dizer não mais —

E em Liberdade mergulhar!

 

Já não me podem mais — prender!

Masmorras — Armas implorar

Nada me dizem — já — a mim —

 

Tal como o riso — há — uma hora —

Os Laços — Festas — o que fora —

Ou mesmo quem ontem — morreu!

 

III

Aprendemos o Todo do Amor —

O Alfabeto — as Palavras —

Um Capítulo — depois o Livro imenso —

E — a Revelação — então fechou-se —

 

Mas uma Ignorância se fitou

No Olhar de Cada um de Nós —

Mais divina do que é a da Infância —

E cada um para o outro, uma Criança —

 

Tentando definir e explicar

O que Nenhum de nós — compreendia —

Ah, que é tão larga a Sabedoria —

E a Verdade — têm formas tão diversas!

 

in Emily Dickinson, Duzentos Poemas, tradução, belíssima, posfácio e organização de Ana Luísa Amaral, Relógio D’Água Editores, Lisboa 2014.

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Matisse (1869-1954), A leitora distraída, de 1919, como que embalada nas suas memórias de amor após a leitura de tão empolgante poesia.

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Um pequeno desvio pela Ópera

16 Quinta-feira Jun 2016

Posted by viciodapoesia in Crónicas

≈ 2 comentários

Kees van Dongen - Modjesko opera singer 1908Quem me conhece sabe da minha paixão pelo canto, feminino em particular. Embora ouvisse ópera antes, foi numa memorável noite de 1977 no Teatro de S. Carlos em Lisboa, cantava Mara Zampieri (1951), que senti pela primeira vez na alma o arrepio de volúpia provocado pelo canto que torna os homens, quando o sentem, dependentes à vida da sua repetição.

Gosto de vozes femininas, cheias no registo médio, capazes de descer aos graves do mistério e subir aos etéreos agudos do céu. São poucas, muito poucas, as que percorrem a gama. Por isso, preencho-a com a ajuda de várias. A poligamia é o estado natural do homem.

Não farei a história das minhas paixões vocais. Poucas foram as que o uso desiludiu, e de todas guardo as mais gratas recordações. Hoje revisitei Katia:

 

Conhecia-lhe a voz gravada.

Ouvi-a no Tivoli, reaberto para a função.

Dourados esbatidos, veludos aspirados, orquestra sofrível.

Ela, bela balzaquiana, cantou e arrepiou

com a voz que algumas mulheres possuem

capaz de viciar à vida.

 

Mais tarde ouvi-a com piano.

Esplendorosa

na opulência das carnes que os vestidos mostravam,

cantou.

Segundo os peritos, com vibrato excessivo. Não sei.

Para mim tornou-se indispensável.

Felizmente há cd’s.

Raras semanas passo sem ela.

É a minha dependência.

 

 

Nota final

Escrito há vários anos, este texto que agora encontrei vasculhando ficheiros, apenas perde a actualidade na frequência com que ouço Katia Ricciarelli (1946). Infiel como qualquer homem, outros amores e paixões se sobrepuseram, juntando novas vozes ao prazer quotidiano de ouvir. A voragem do tempo não perdoa, e o canto lírico é implacável a consumir a beleza vocal. Felizmente a natureza é inesgotável e continua a dotar mulheres deste suplemento de voz.

Reduzindo ao essencial o prazer ao ouvir Katia Ricciarelli, esquecia as obras de Puccini, passava ao lado da Micaela na Carmen de Bizet (com Karajan), e escolheria de Verdi o recital editado há longos anos pela RCA (gravação de 1972, suponho), com a Orquestra Filarmónica de Roma dirigida por Gianandrea Gavazzeni (1909-1996). Nas operas completas de Verdi, preferiria I Due Foscari com José Carreras (1946) e Lamberto Gardelli (1915-1998) na orquestra, onde Piero Cappuccilli (1926-2005) no papel de Doge protagoniza o mais dilacerado dos pais; acrescentaria Il Ballo in Maschera com Placido Domingo (1941) e Claudio Abbado (1933-2014) na orquestra, e terminaria com o Falstaff dirigido por Carlos Maria Giulini (1914-2005) com um filosófico Renato Bruson (1936) no protagonista.

Para Rossini, e retrato maior da longa associação da cantora ao Festival de Pesaro dedicado ao compositor, escolheria a gravação (1983) de La Donna del Lago, partilhada com a imensa e saudosa voz de Lucia Valentini-Terrani (1946-1998), e a Orquestra de Câmara da Europa dirigida por Maurizio Pollini (1942) na sua única incursão como director de orquestra (gravação FONITCETRA/CBS). Esquecia o tardio recital Rossini com a orquestra da Ópera de Lyon (1991), e seguramente viveria com enorme prazer as peripécias de Il Viaggio a Reims levado pelo elenco de luxo da primeira gravação de Claudio Abbado e a Orquetra de Câmara da Europa (Festival de Pesaro 1984, edição DG). Em maré de religiosidade entregar-me-ia ao Stabat Mater de Rossini, gravado em estado de graça por volta de 1981/822 pelo  maestro Giulini com a Orquestra Philharmonia, coro, e o trio de cantores principais de La Donna del Lago: Ricciarelli/Valentini-Terrani/Dalmacio Gonzalez (1940).

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Kees van Dongen (1877-1968), Modjesko cantora de ópera, de 1908.

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