Viajar pelo Bestiário medieval é percorrer um fascinante mundo onde a imaginação preenchia a insuficiência de conhecimento objectivo.
A par de um quotidiano materialmente difícil, floresceu em alguns conventos o cultivo da elaboração de manuscritos iluminados (texto acompanhado de imagens) recolhendo obras herdadas da antiguidade clássica e textos de doutrina que explicavam o mundo à luz do cristianismo. Obras de arte de muito difícil acesso, vamos hoje, lentamente, conhecendo alguns desses preciosos in-folios através tanto da sua reprodução em fac-símile, como em edições antológicas, por vezes de sufocante beleza.
Hoje recordo um animal imaginário, o Bonacon, fruto da fantasia do mundo antigo. Ele leva-nos a pensar como a terra pode, afinal, ser um lugar de inocência e brincadeira, e não apenas a crueldade que nos assombra amiúde, sobretudo quando hoje nos confrontamos, enquanto comunidade, com assassinos exaltados que pretendem fazer-nos viver como eles querem, ou morreremos, ainda que eles possam morrer também pelo caminho.
Era este mundo de inocência medieval também assombrado pela crença, onde o irracional domina e a muito custo a razão abre caminho, como o romance O Nome da Rosa recria.
O Bonacon seria uma fantástica arma de guerra tornando invencível quem o possuía, se domesticável, por virtude duma peculiar química que afugenta.
Arma unicamente defensiva, à aproximação do inimigo o Bonacon expelia excrementos a uma velocidade tal que poderiam ser projectados até quase cem metros de distância, e com o poder atordoante que se imagina, neutralizar os inimigos perseguidores.
De tal espécie não se conhece filiação ou descendência. Seria talvez mamífero, quadrúpede, aparentado com um touro, com um par de cornos retorcidos. As crónicas não informam sobre a sua corpulência ou agilidade. A notícia da sua existência, referida por Plínio na História Natural (8.16), foi-me dada por Christian Heck e Rémy Cordonnier no fascinante livro The Grand Medieval Bestiary, o qual nada refere sobre estes aspectos. Habitaria as terrae incognitae da Trácia à Ásia, surgindo representado em alguns mappae mundi medievais nas regiões do norte.
Pouco representado nos códices medievais, quando surge aparece em atitudes de defesa, projectando excrementos sobre os perseguidores os quais se protegem sob os escudos, assustando assim os intrépidos cavaleiros cujas provas de heroísmo são bastamente relatadas nas epopeias da época.
Termino com mais uma imagem do fabuloso Bonacon, sempre em acção, tal como as anteriores, extraída de códices medievais.