Quem me conhece sabe da minha paixão pelo canto, feminino em particular. Embora ouvisse ópera antes, foi numa memorável noite de 1977 no Teatro de S. Carlos em Lisboa, cantava Mara Zampieri (1951), que senti pela primeira vez na alma o arrepio de volúpia provocado pelo canto que torna os homens, quando o sentem, dependentes à vida da sua repetição.
Gosto de vozes femininas, cheias no registo médio, capazes de descer aos graves do mistério e subir aos etéreos agudos do céu. São poucas, muito poucas, as que percorrem a gama. Por isso, preencho-a com a ajuda de várias. A poligamia é o estado natural do homem.
Não farei a história das minhas paixões vocais. Poucas foram as que o uso desiludiu, e de todas guardo as mais gratas recordações. Hoje revisitei Katia:
Conhecia-lhe a voz gravada.
Ouvi-a no Tivoli, reaberto para a função.
Dourados esbatidos, veludos aspirados, orquestra sofrível.
Ela, bela balzaquiana, cantou e arrepiou
com a voz que algumas mulheres possuem
capaz de viciar à vida.
Mais tarde ouvi-a com piano.
Esplendorosa
na opulência das carnes que os vestidos mostravam,
cantou.
Segundo os peritos, com vibrato excessivo. Não sei.
Para mim tornou-se indispensável.
Felizmente há cd’s.
Raras semanas passo sem ela.
É a minha dependência.
Nota final
Escrito há vários anos, este texto que agora encontrei vasculhando ficheiros, apenas perde a actualidade na frequência com que ouço Katia Ricciarelli (1946). Infiel como qualquer homem, outros amores e paixões se sobrepuseram, juntando novas vozes ao prazer quotidiano de ouvir. A voragem do tempo não perdoa, e o canto lírico é implacável a consumir a beleza vocal. Felizmente a natureza é inesgotável e continua a dotar mulheres deste suplemento de voz.
Reduzindo ao essencial o prazer ao ouvir Katia Ricciarelli, esquecia as obras de Puccini, passava ao lado da Micaela na Carmen de Bizet (com Karajan), e escolheria de Verdi o recital editado há longos anos pela RCA (gravação de 1972, suponho), com a Orquestra Filarmónica de Roma dirigida por Gianandrea Gavazzeni (1909-1996). Nas operas completas de Verdi, preferiria I Due Foscari com José Carreras (1946) e Lamberto Gardelli (1915-1998) na orquestra, onde Piero Cappuccilli (1926-2005) no papel de Doge protagoniza o mais dilacerado dos pais; acrescentaria Il Ballo in Maschera com Placido Domingo (1941) e Claudio Abbado (1933-2014) na orquestra, e terminaria com o Falstaff dirigido por Carlos Maria Giulini (1914-2005) com um filosófico Renato Bruson (1936) no protagonista.
Para Rossini, e retrato maior da longa associação da cantora ao Festival de Pesaro dedicado ao compositor, escolheria a gravação (1983) de La Donna del Lago, partilhada com a imensa e saudosa voz de Lucia Valentini-Terrani (1946-1998), e a Orquestra de Câmara da Europa dirigida por Maurizio Pollini (1942) na sua única incursão como director de orquestra (gravação FONITCETRA/CBS). Esquecia o tardio recital Rossini com a orquestra da Ópera de Lyon (1991), e seguramente viveria com enorme prazer as peripécias de Il Viaggio a Reims levado pelo elenco de luxo da primeira gravação de Claudio Abbado e a Orquetra de Câmara da Europa (Festival de Pesaro 1984, edição DG). Em maré de religiosidade entregar-me-ia ao Stabat Mater de Rossini, gravado em estado de graça por volta de 1981/822 pelo maestro Giulini com a Orquestra Philharmonia, coro, e o trio de cantores principais de La Donna del Lago: Ricciarelli/Valentini-Terrani/Dalmacio Gonzalez (1940).
Abre o artigo a imagem de uma pintura de Kees van Dongen (1877-1968), Modjesko cantora de ópera, de 1908.
Obrigado! Tentarei corresponder às expectativas.
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Sempre tão interessante, sou seguidora fiel!
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