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Category Archives: Cânone XXI

Mário de Sá-Carneiro (1890-1916) – Quase

14 Sábado Jan 2012

Posted by viciodapoesia in Cânone XXI

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Mário de Sá-carneiro

Prossigo na escolha de um cânone pessoal de poesia com Quase de Mário de Sá-Carneiro (1890-1916).

QUASE

Um pouco mais de sol –  eu era brasa,
Um pouco mais de azul –  eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa…
Se ao menos eu permanecesse aquém…

Assombro ou paz? Em vão… Tudo esvaído
Num baixo mar enganador d’espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho –  ó dor! –  quase vivido…

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim –  quase a expansão…
Mas na minh’alma tudo se derrama…
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo… e tudo errou…
– Ai a dor de ser –  quase, dor sem fim… –
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou…

Momentos de alma que desbaratei…
Templos aonde nunca pus um altar…
Rios que perdi sem os levar ao mar…
Ânsias que foram mas que não fixei…

Se me vagueio, encontro só indícios…
Ogivas para o sol –  vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios…

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí…
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi…

……………………………………………………
……………………………………………………

Um pouco mais de sol –  e fora brasa,
Um pouco mais de azul –  e fora além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa…
Se ao menos eu permanecesse aquém…

Paris, 13-5-1913

 

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Cesário Verde – O sentimento dum ocidental

12 Quinta-feira Jan 2012

Posted by viciodapoesia in Cânone XXI

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Cesário Verde

Pouco há para acrescentar sem redundância, no curto espaço do blog, sobre o poema O SENTIMENTO DUM OCIDENTAL, de Cesário Verde (1855-1886).

Escrito num relato de quadros urbanos, ao lê-lo Lisboa surge-nos como no desenrolar de um filme, e no final deste passeio pela cidade fica-nos o pungente sentimento da irrelevância da vida e do esforço de a viver.

Está escrita a influência na poesia modernista, as influências em Fernando Pessoa são várias ao longo do poema (p.e.: Se eu não morresse, nunca! E eternamente / Buscasse e conseguisse a perfeição das cousas! ), tal como está analisada a elaboração formal do poema.

Resta apenas lê-lo, uma e outra vez.

O SENTIMENTO DUM OCIDENTAL
A Guerra Junqueiro

I
AVE-MARIA

Nas nossas Ruas, ao Anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.

O céu parece baixo e de neblina,
O gás extravasado enjoa-me, perturba;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba
Toldam-se duma cor monótona e londrina.

Batem os carros de aluguer, ao fundo,
Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista, exposições, países:
Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!

Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
As edificações somente emadeiradas:
Como morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros.

Voltam os calafates, aos magotes,
De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos;
Embrenho-me, a cismar, por boqueirões, por becos,
Ou erro pelos cais a que se atracam botes.

E evoco, então, as crônicas navais:
Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado!
Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus que eu não verei jamais!

E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!
De um couraçado inglês vogam os escaleres;
E em terra num tinir de louças e talheres
Flamejam, ao jantar, alguns hotéis da moda.

Num trem de praça arengam dois dentistas;
Um trôpego arlequim braceja numas andas;
Os querubins do lar flutuam nas varandas;
Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!

Vazam-se os arsenais e as oficinas;
Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;
E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,
Correndo com firmeza, assomam as varinas.

Vêm sacudindo as ancas opulentas!
Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
E algumas, à cabeça, embalam nas canastras
Os filhos que depois naufragam nas tormentas.

Descalças! Nas descargas de carvão,
Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;
E apinham-se num bairro aonde miam gatas,
E o peixe podre gera os focos de infecção!

II
NOITE FECHADA

Toca-se às grades, nas cadeias. Som
Que mortifica e deixa umas loucuras mansas!
O aljube em que hoje estão velhinhas e crianças,
Bem raramente encerra uma mulher de “dom”!

E eu desconfio, até, de um aneurisma
Tão mórbido me sinto, ao acender das luzes;
A vista das prisões, da velha Sé, das Cruzes,
Chora-me o coração que se enche e que se abisma.

A espaços, iluminam-se os andares,
E as tascas, os cafés, as tendas, os estancos
Alastram em lençol os seus reflexos brancos;
E a Lua lembra o circo e os jogos malabares.

Duas igrejas, num saudoso largo,
Lançam a nódoa negra e fúnebre do clero:
Nelas esfuma um torvo inquisidor, severo,
Assim que pela História eu me aventuro e alargo.

Na parte que abateu no terremoto,
Muram-me as construções rectas, iguais, crescidas;
Afrontam-me, no resto, as íngremes subidas,
E os sinos dum tanger monástico e devoto.

Mas, num recinto público e vulgar,
Com bancos de namoro e exíguas pimenteiras,
Brônzeo, monumental, de proporções guerreiras,
Um épico d’outrora ascende, num pilar!

E eu sonho o Cólera, imagino a Febre,
Nesta acumulação de corpos enfezados;
Sombrios e espectrais recolhem os soldados;
Inflama-se um palácio em face de um casebre.

Partem patrulhas de cavalaria
Dos arcos dos quartéis que foram já conventos:
Idade Média! A pé, outras, a passos lentos,
Derramam-se por toda a capital, que esfria.

Triste cidade! Eu temo que me avives
Uma paixão defunta! Aos lampiões distantes,
Enlutam-me, alvejando, as tuas elegantes,
Curvadas, a sorrir às montras dos ourives.

E mais: as costureiras, as floristas
Descem dos magasins, causam-me sobressaltos;
Custa-lhes a elevar os seus pescoços altos
E muitas delas são comparsas ou coristas.

E eu, de luneta de uma lente só,
Eu acho sempre assunto a quadros revoltados:
Entro na brasserie; às mesas de emigrados,
Ao riso e à crua luz joga-se o dominó.

III
AO GÁS

E saio. A noite pesa, esmaga. Nos
Passeios de lajedo arrastam-se as impuras.
Ó moles hospitais! Sai das embocaduras
Um sopro que arrepia os ombros quase nus.

Cercam-me as lojas, tépidas. Eu penso
Ver círios laterais, ver filas de capelas,
Com santos e fiéis, andores, ramos, velas,
Em uma catedral de um comprimento imenso.

As burguesinhas do Catolicismo
Resvalam pelo chão minado pelos canos;
E lembram-me, ao chorar doente dos pianos,
As freiras que os jejuns matavam de histerismo.

Num cuteleiro, de avental, ao torno,
Um forjador maneja um malho, rubramente;
E de uma padaria exala-se, inda quente,
Um cheiro salutar e honesto a pão no forno.

E eu que medito um livro que exacerbe,
Quisera que o real e a análise mo dessem;
Casas de confecções e modas resplandecem;
Pelas vitrines olha um ratoneiro imberbe.

Longas descidas! Não poder pintar
Com versos magistrais, salubres e sinceros,
A esguia difusão dos vossos reverberos,
E a vossa palidez romântica e lunar!

Que grande cobra, a lúbrica pessoa,
Que espartilhada escolhe uns xales com debuxo!
Sua excelência atrai, magnética, entre luxo,
Que ao longo dos balcões de mogno se amontoa.

E aquela velha, de bandós! Por vezes,
A sua traine imita um leque antigo, aberto,
Nas barras verticais, as duas tintas. Perto,
Escarvam, à vitória, os seus mecklemburgueses.

Desdobram-se tecidos estrangeiros;
Plantas ornamentais secam nos mostradores;
Flocos de pós-de-arroz pairam sufocadores,
E em nuvens de cetins requebram-se os caixeiros.

Mas tudo cansa! Apagam-se nas frentes
Os candelabros, como estrelas, pouco a pouco;
Da solidão regouga um cauteleiro rouco;
Tornam-se mausoléus as armações fulgentes.

“Dó da miséria!… Compaixão de mim!…”
E, nas esquinas, calvo, eterno, sem repouso,
Pede-me sempre esmola um homenzinho idoso,
Meu velho professor nas aulas de Latim?

IV
HORAS MORTAS

O tecto fundo de oxigênio, d’ar,
Estende-se ao comprido, ao meio das trapeiras;
Vêm lágrimas de luz dos astros com olheiras,
Enleva-se a quimera azul de transmigrar.

Por baixo, que portões! Que arruamentos!
Um parafuso cai nas lajes, às escuras:
Colocam-se taipais, rangem as fechaduras,
E os olhos dum caleche espantam-me, sangrentos.

E eu sigo, como as linhas de uma pauta
A dupla correnteza augusta das fachadas;
Pois sobem, no silêncio, infaustas e trinadas,
As notas pastoris de uma longínqua flauta.

Se eu não morresse, nunca! E eternamente
Buscasse e conseguisse a perfeição das cousas!
Esqueço-me a prever castíssimas esposas,
Que aninhem em mansões de vidro transparente!

Ó nossos filhos! Que de sonhos ágeis,
Pousando, vos trarão a nitidez às vidas!
Eu quero as vossas mães e irmãs estremecidas,
Numas habitações translúcidas e frágeis.

Ah! Como a raça ruiva do porvir,
E as frotas dos avós, e os nômadas ardentes,
Nós vamos explorar todos os continentes
E pelas vastidões aquáticas seguir!

Mas se vivemos, os emparedados,
Sem árvores, no vale escuro das muralhas!…
Julgo avistar, na treva, as folhas das navalhas
E os gritos de socorro ouvir, estrangulados.

E nestes nebulosos corredores
Nauseiam-me, surgindo, os ventres das tabernas
Na volta, com saudade, e aos bordos sobre as pernas,
Cantam, de braço dado, uns tristes bebedores.

Eu não receio, todavia, os roubos;
Afastam-se, a distância, os dúbios caminhantes;
E sujos, sem ladrar, ósseos, febris, errantes,
Amareladamente, os cães parecem lobos.

E os guardas, que revistam as escadas,
Caminham de lanterna e servem de chaveiros;
Por cima, os imorais, nos seus roupões ligeiros,
Tossem, fumando sobre a pedra das sacadas.

E, enorme, nesta massa irregular
De prédios sepulcrais, com dimensões de montes,
A Dor humana busca os amplos horizontes,
E tem marés, de fel, como um sinistro mar!

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Fausto, pretexto para dar a cara.

25 Quinta-feira Ago 2011

Posted by viciodapoesia in Cânone XXI, Crónicas, Poesia Antiga

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Fausto, Goethe

São múltiplos os pretextos porque regresso ao Fausto de Goethe.  Aproxima-me o fim de mais um ano biológico e com ele o involuntário balanço eivado de alguma melancolia, E apossa-se de mim uma olvidada/ Saudade desse reino calmo e grave / Dos Espíritos.

E é no poema Dedicatória  com que abre Fausto  que me revejo, a mim e à minha circunstância:

Surgis de novo, figuras fugidias / … / Trazeis imagens de outra felicidade,/ E ressurge muita sombra querida; / Voltam primeiro amores, velha amizade,/ Como uma antiga lenda, meio perdida; / Renasce a dor, a mágoa insiste e invade / A errância labiríntica da vida,

 

Eis o poema:

Dedicatória

Surgis de novo, figuras fugidias
Que ao turvo olhar vos mostrastes outrora.
Cabem em meu coração tais fantasias?
Serei capaz de vós reter agora?
Quereis entrar! Seja, reinai sem peias,
Vós, que subis das brumas da memória;
A minha alma renasce, emocionada
Pelo sopro mágico da vossa cavalgada.


Trazeis imagens de outra felicidade,
E ressurge muita sombra querida;
Voltam primeiro amores, velha amizade,
Como uma antiga lenda, meio perdida;
Renasce a dor, a mágoa insiste e invade
A errância labiríntica da vida,
E nomeia os amigos que a má sorte
Privou de gozos e entregou cedo à morte.


Não ouvem os meus cantos de agora
As almas para quem primeiro cantei;
Disperso o grupo da primeira hora,
Mudos os ecos que então despertei.
A turba ignota o meu canto devora,
E nem com seu aplauso me alegrei;
E os que os meus versos amaram a fundo,
Se ainda vivem erram por esse mundo.


E apossa-se de mim uma olvidada
Saudade desse reino calmo e grave
Dos Espíritos, e a minha ciciada
Canção, eólia harpa, é voo de ave;
Estremeço, ao pranto a lagrima ajuntada
O peito austero torna leve e suave:
O que possuo dilui-se na distância,
E o que fugira ganha forma e substância.

É uma dívida que os portugueses nunca pagarão, a que têm para com João Barrento,  e a sua actividade como tradutor, sobretudo a sublime tradução de Fausto de Goethe. Deixo-lhe aqui o meu enorme obrigado.

Noticia bibliográfica: Esta tradução do poema consta da edição de Fausto de Johann W. Goethe publicada por Relógio d’Água, em 1999, sendo a tradução, introdução e glossário de João Barrento.

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Merda! Sou lúcido. – Coitado do Álvaro de Campos!

23 Sexta-feira Abr 2010

Posted by viciodapoesia in Cânone XXI

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Fernando Pessoa

Cruzou por mim, veio ter comigo, numa rua da Baixa

Aquele homem mal vestido, pedinte por profissão que se lhe vê na cara,

Que simpatiza comigo e eu simpatizo com ele;

E reciprocamente, num gesto largo, transbordante, dei-lhe tudo quanto tinha

(Excepto, naturalmente, o que estava na algibeira onde trago mais dinheiro:

Não sou parvo nem romancista russo, aplicado,

E romantismo, sim, mas devagar…)


Sinto uma simpatia por essa gente toda,

Sobretudo quando não merece simpatia.

Sim, eu sou também vadio e pedinte,

E sou-o também por minha culpa.

Ser vadio e pedinte não é ser vadio e pedinte:

É estar ao lado da escala social,

É não ser adaptável ás normas da vida,

Às normas reais ou sentimentais da vida –

Não ser Juiz do Supremo, empregado certo, prostituta,

Não ser pobre a valer, operário explorado,

Não ser doente de uma doença incurável,

Não ser sedento de justiça ou capitão de cavalaria,

Não ser, enfim, aquelas pessoas sociais dos novelistas

Que se fartam de letras porque têm razão para chorar lágrimas,

E se revoltam contra a vida social porque têm razão para isso supor.


Não: tudo menos ter razão!

Tudo menos importar-me com a humanidade!

Tudo menos ceder ao humanitarismo!

De que serve uma sensação se há uma razão exterior para ela?


Sim, ser vadio e pedinte, como eu sou,

Não é ser vadio e pedinte, o que é corrente:

É ser isolado na alma, e isso é que é ser vadio,

É ter que pedir aos dias que passem, e nos deixem, e isso é que é ser pedinte.


Tudo mais é estúpido como um Dostoiewski ou um Gorki.

Tudo mais é ter fome e não ter que vestir.

E, mesmo que isso aconteça, isso acontece a tanta gente

Que nem vale a pena ter pena da gente a quem isso acontece.

Sou vadio e pedinte a valer, isto é, no sentido translato,

E estou-me rebolando numa grande caridade por mim.


Coitado do Álvaro de Campos!

Tão isolado na vida! Tão deprimido nas sensações!

Coitado dele, enfiado na poltrona da sua melancolia!

Coitado dele, que com lágrimas (autênticas) nos olhos,

Deu hoje, num gesto largo, liberal e moscovita,

Tudo quanto tinha, na algibeira em que tinha pouco, àquele

Pobre que não era pobre, que tinha olhos tristes por profissão.


Coitado do Álvaro de Campos, com quem ninguém se importa!

Coitado dele que tem tanta pena de si mesmo!


E, sim, coitado dele!

Mais coitado dele que de muitos que são vadios e vadiam,

Que são pedintes e pedem,

Porque a alma humana é um abismo.


Eu é que sei. Coitado dele!


Que bom poder-me revoltar num comicio dentro da minha alma!

Mas até nem parvo sou!

Nem tenho a defesa de poder ter opiniões sociais.

Não tenho, mesmo, defesa nenhuma: sou lúcido.


Não me queiram converter a convicção: sou lúcido.

Já disse: sou lúcido.

Nada de estéticas com coração: sou lúcido.

Merda! Sou lúcido.


Nos vinte anos, quando cheguei à poesia de Álvaro de Campos nas velhinhas edições da Ática, este foi dos poemas que marcou de forma indelével a minha relação com a poesia de Fernando Pessoa.

Confrontado com pedintes na rua, vejo-me e revejo-me no gesto largo, liberal e moscovita de dar Tudo quanto tinha, na algibeira em que tinha pouco, àquele /Pobre.

Este poema é um antídoto quando começo a contemplar-me e a ter pena de mim, Porque a alma humana é um abismo, e me sinto Tão isolado na vida! Tão deprimido nas sensações! / Coitado dele, enfiado na poltrona da sua melancolia!

Chego ao fim do poema, e a força da exclamação Merda! Sou lúcido. desperta-me e devolve-me à realidade.


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A fermosa Lianor

19 Segunda-feira Abr 2010

Posted by viciodapoesia in Cânone XXI

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Camões, Francisco Rodrigues Lobo

Ainda recentemente, em conversa sobre a poesia aprendida na escola e que acompanha tantos de nós pela vida fora, se discutia a autoria do poema  “Descalça vai para a fonte / Lianor pela verdura / …”. A memória já não é o que era, e uns, que a poesia era de Luís de Camões, outros que era de Rodrigues Lobo.

A discussão ficou em aberto.

Chegado a casa, tirei-me de cuidados e fui à procura. Aqui deixo a solução da controvérsia que ficou por resolver.  Ambos os partidos tinham razão.

 

Descalça vai para a fonte

Lianor pela verdura;

Vai fermosa e não segura.

é o mote de autoria desconhecida que tanto Camões como Rodrigues Lobo glosaram, ambos em metro de redondilha maior e com resultado de igual mérito.

Tem nelas a poesia portuguesa duas obras-primas, em minha modesta opinião.

Ei-las:

Luís de Camões

Mote

Descalça vai para a fonte

Lianor pela verdura;

Vai fermosa e não segura.


Voltas

Leva na cabeça o pote,

O testo nas mãos de prata,

Cinta de fina escarlata

Sainho de chamalote:

Traz a vasquinha de cote

Mais branca que a neve pura

Vai fermosa e não segura.


Descobre a touca a garganta,

Cabelos de ouro entrançado,

Fita de cor de encarnado,

Tão linda que o mundo espanta.

Chove nela graça tanta,

Que dá graça à fermosura.

Vai fermosa e não segura.

 

E agora a inspiração de Francisco Rodrigues Lobo

 

Vilancete

Descalça vai para a fonte

Lianor pela verdura;

Vai fermosa e não segura.


A talha leva pedrada,

Pucarinho de feição,

Saia de cor de limão,

Beatilha soqueixada.

Cantando de madrugada

Pisa as flores na verdura

Vai fermosa e não segura.


Leva na mão a rodilha,

Feita da sua toalha;

Com uma sustenta a talha,

Ergue com outra a fraldilha.

Mostra os pés por maravilha

Que a neve deixam escura

Vai fermosa e não segura.


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Canção Grata seguido de Ode Pagã – 2 poemas de Carlos Queiroz

13 Terça-feira Abr 2010

Posted by viciodapoesia in Cânone XXI

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Carlos Queiroz

Canção Grata

Por tudo o que me deste:

– Inquietação, cuidado,

(Um pouco de ternura? É certo, mas tão pouco!)

Noites de insónia, pela ruas, como um louco…

– Obrigado, obrigado!

 

Por aquela tão doce e tão breve ilusão,

(Embora nunca mais, depois que a vi desfeita,

Eu volte a ser quem fui), sem ironia: aceita

A minha gratidão!

 

Que bem me faz, agora, o mal que me fizeste!

– Mais forte, mais sereno, e livre, e descuidado…

Sem ironia, amor: – Obrigado, obrigado

Por tudo o que me deste!

 

 

Volto amiúde à poesia de Carlos Queirós (1907-1949). Poeta de um requintado lirismo, no quase não-dito dos seus versos encontro o desafio de me pensar, como por exemplo neste espantoso Quase Tudo: “Que pouco-imenso falta à minha vida / para poder sentir que sou poeta!” e conclui “Uma fatal anímica explosão!”.

 

O poema que aqui deixo, Canção Grata, tornado famoso, em tempos, na voz de uma fadista, faz parte daquele grupo que me acompanha como expressão superior da paixão desfeita.

 

Mas não resisto a deixar um outro poema, este agora um hino à vida:

 

Ode Pagã

 

Viver! – O corpo nu, a saltar, a correr,

Numa prais deserta… Ou rolando, na areia,

Rolando, até ao mar… Que importa o que a alma anseia?

– Isto sim, é viver!

 

O paraiso é nosso e está na terra. Nós,

É que temos o olhar velado de incerteza;

E julgamos ouvir a voz da natureza,

Ouvindo a nossa voz.

 

Ilusões! A cultura, o amor, a poesia…

Não igualam, sequer, um dia à beira-mar,

Vivido plenamente, – a sorver, a beijar

O vento e a maresia!

 

Viver, é estar assim: a fronte ao céu erguida,

Os membros livres, as narinas dilatadas;

Com toda a natureza, em espírito, as mãos dadas…

– O resto, não é Vida!

 

Que venha pois, a brisa, e me trespasse a pele,

Para melhor poder compreendê-la e amá-la!

Que a voz do mar me chame e, ouvindo a sua fala,

Eu vá e seja dele!

 

Que o sol penetre bem na minha carne e a deixe

Queimada, para sempre; as ondas, uma a uma,

Rebentem no meu corpo! E eu fique, ébrio de espuma,

Contente como um peixe!

 

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DE TARDE – a minha escolha de Cesário Verde

10 Quarta-feira Mar 2010

Posted by viciodapoesia in Cânone XXI

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Cesário Verde

N’aquelle “pic-nic” de burguezas,

Houve uma coisa simplemente bella,

E que, sem ter historia nem grandezas,

Em todo o caso dava uma aguarella.


Foi quando tu, descendo do burrico,

Foste colher, sem imposturas tolas,

A um granzoal azul de grão de bico

Um ramalhete rubro de papoulas.


Pouco depois, em cima d’uns penhascos,

Nós acampámos, inda o sol se via;

E houve talhadas de melão, damascos,

E pão de ló molhado em malvasia.


Mas, todo purpuro, a sahir da renda

Dos teus dois seios como duas rolas,

Era o supremo encanto da merenda

O ramalhete rubro das papoulas!

Conservei a ortografia da 1ªedição

Retratos de mulher atravessam toda a curta obra de Cesário Verde, sempre belíssimos pela penetração psicológica de que dão conta, surpreendida esta num gesto, num estar, num vestir, em suma, nos pequenos nadas da vida que fazem grande a sua poesia.

Mas não é o retrato de mulher que me liga ao poema.

Estes quatro quartetos trazem-me de cada vez que os leio, ou recordo, a imagem perfeita da força da vida, vivida na sua essência através das coisas simples do mundo, exactamente sem historia nem grandezas, mas preenchida de momentos de plenitude absoluta como este “pic-nic” ao pôr-do-sol, a comer fruta.

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De Camões, 2 sonetos de amor

18 Segunda-feira Jan 2010

Posted by viciodapoesia in Cânone XXI

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Camões

Quase toda a lírica de Camões é uma sublime declaração de amor.  Daquele amor que “…é fogo que arde sem se ver”, que “É um contentamento descontente”, “É nunca contentar-se de contente” e por aí adiante, qual seja:

Amor é fogo que arde sem se ver;

É ferida que dói e não se sente;

É um contentamento descontente;

É dor que desatina sem doer;


É um não querer mais que bem querer;

É solitário andar por entre a gente;

É nunca contentar-se de contente;

É cuidar que se ganha em se perder;


É querer estar preso por vontade;

É servir a quem vence, o vencedor;

É ter com quem nos mata lealdade.


Mas como causar pode seu favor

Nos corações humanos amizade,

Se tão contrário a si é o mesmo Amor?


Hesitei sobre qual dos poemas de Camões escolher para estrear a presença do poeta no blog. De entre as dezenas que fazem a minha memória de leitor, a escolha caiu nesta inesquecível forma de dizer o que é amar.

Insatisfeito, pois queria mais, não resisti a acrescentar um canto do amor ausente. Verdade de sentimento que,  enquanto a mágoa de perder a quem se ama cruzar o mundo, será um bálsamo na consolação da ausência, fazendo presente em nós aquela


“Alma minha gentil, que te partiste”.

Num tom de resignada saudade, o poeta expandindo o que lhe vai na alma, mostra-nos mais à frente no poema, a verdade do sentimento a transbordar no pedido:

“Roga a Deus, … que tam cedo me leve a ver-te”

pondo fim à desolada aceitação de

“Viva eu cá na terra sempre triste.”

Ainda que recordação da morte da amada, o soneto não será o poema da maior dor, mas é certamente a mais sublime declaração de amor em poesia.


Alma minha gentil, que te partiste

Tão cedo desta vida, descontente,

Repousa lá no Céu eternamente

E viva eu cá na terra sempre triste.


Se lá no assento etéreo, onde subiste,

Memória desta vida se consente,

Não te esqueças daquele amor ardente

Que já nos olhos meus tão puro viste.


E se vires que pode merecer-te

Alguma cousa a dor que me ficou

Da mágoa, sem remédio, de perder-te,


Roga a Deus, que teus anos encurtou,

Que tão cedo de cá me leve a ver-te,

Quão cedo de meus olhos te levou.


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Um soneto de Antero de Quental

11 Segunda-feira Jan 2010

Posted by viciodapoesia in Cânone XXI

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António Sérgio, Antero de Quental, Fernando Pessoa, João de Deus, Oliveira Martins

Por mais ligados à matéria que nos sintamos, cedo ou tarde a experiência metafísica bate-nos à porta.

É recente em mim a presença de Deus. Não um Deus cosido a qualquer catecismo, mas um Deus explicação do transcendente, como o de Antero de Quental, de quem trago hoje um soneto.

Em Antero de Quental, poeta-filósofo que foi, e mestre maior do soneto em português, a presença de Deus é recorrente.

Dos seus sonetos disse Oliveira Martins no prefácio que acompanhou a edição em livro:

[Hão-de] encontrar um acolhimento amoroso em todas as almas de eleição, e durar enquanto houver corações aflitos, e enquanto se falar a linguagem portuguesa.

Este prefácio, para quem não conheça o perfil de Antero, é na sua justeza e concisão, o lugar onde podemos aproximar-nos do homem e do poeta.

Por outro lado, o estudo de António Sérgio na edição que preparou dos Sonetos, embora estimulante nas suas interpretações, deixa pouco espaço para uma leitura pela via do sentimento.

Para os curiosos da biografia do poeta aqui fica um endereço da rede com uma biografia de confiança

Poeta do transcendente em mim, visão perfeita daquele verso de Fernando Pessoa O que em mim sente stá pensando, de resto coincidente com a caracterização que já Oliveira Martins fazia  de Antero no prefácio aos seus Sonetos

“É um poeta que sente, mas é um raciocínio que pensa. Pensa o que sente; sente o que pensa.”,

os seus sonetos acompanham-nos pela vida logo que os conhecemos.

Enviando por carta a João de Deus o soneto que escolhi, diz-lhe Antero:

E agora aí vai um soneto. Será talvez o primeiro de que gostes por mais alguma coisa que só pela forma.

 

O meu pessimismo tem-se desvanecido com esta vida contemplativa no meio da boa natureza. Reconheci que andar por toda a parte a proclamar, com voz lúgubre, que o mundo é vão, era ainda uma última vaidade… lá vai o soneto –

 

Na mão de Deus, na sua mão direita,

Descansou afinal meu coração.

Do palácio encantado da Ilusão

Desci a passo e passo a escada estreita.

 

Como as flores mortais, com que se enfeita

A ignorãncia infantil, despojo vão,

Depus do Ideal e da Paixão

A forma transitória e imperfeita.

 

Como criança, em lobrega jornada,

Que a mãe leva no colo agasalhada,

E atravessa, sorrindo vagamente,

 

Selvas, mares, areias do deserto…

Dorme o teu sono, coração liberto,

Dorme na mão de Deus eternamente.

 

 

 

É ainda numa carta a João de Deus datada de Vila do Conde que no inicio desse mesmo ano, a 13 de janeiro de 1882, dá conta do estado de espírito que o anima –

“Eu dou-me aqui bem, apesar de viver completamente só. Quando quero falar, vou ao Porto conversar com Oliveira Martins. Se tu ali estivesses também, tinha tudo quanto desejo.

Aqui as praias são amplas e belas, e por elas passeio ou me estendo ao sol, com a voluptuosidade que só conhecem os poetas e os lagartos, adoradores da luz.”

Estes extractos são esclarecedores do ânimo do poeta e a placidez que transparece nas cartas reflecte-se no poema.

Como estamos longe do pessimismo de tanta da sua poesia, numa aceitação da harmonia do mundo qual “criança ... Que a mãe leva no colo… E atravessa sorrindo… Selvas, mares, areias do deserto…”

Fiquemos por agora com este Deus em poesia que nos permite dormir o sono com o coração liberto.

 

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Lisbon Revisited (1923)

03 Domingo Jan 2010

Posted by viciodapoesia in Cânone XXI

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Fernando Pessoa

Ao relato do nascimento da poesia com que pensei iniciar este blogue anteponho em forma de prólogo uma autobiografia tomada de empréstimo ao meu conterrâneo Álvaro de Campos.

Com a avalanche editorial da e sobre a poesia de Pessoa, é pouco razoável pretender acrescentar algo sobre ela que ainda valha a pena ler. A força das palavras, no poeta, sobrepõe-se sempre a quaisquer considerações de interpretação ou sentimento. Por isso aí fica o poema da solidão desafiante na sua força emotiva,

“…

Queriam-me casado, futil, quotidiano, tributável?

…

Assim, como sou, tenham paciencia!”

…

E emquanto tarda o Abysmo e o Silencio quero estar sòsinho! “

A versão apresentada é o fac-símile da edição publicada em vida por Fernando Pessoa na revista Contemporânea. A novidade deste fac-simile reside por um lado na particularidade da grafia escolhida pelo poeta e que hoje não se encontra acessível nas edições em livro, motivo de reflexão nos tempos que correm com Acordo Ortográfico à mistura, e por outro a gralha tipográfica evidente que deixo ao cuidado do atento leitor corrigir.

Nota técnica: A leitura do fac-simile pode ser facilitada por simples click sobre a imagem e sua ampliação por exemplo com Ctrl +

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