• Autor
  • O Blog

vicio da poesia

Category Archives: Poesia Grega

Cleantes de Assos — Hino a Zeus

11 Segunda-feira Ago 2014

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga, Poesia Grega

≈ 2 comentários

Etiquetas

Cleantes de Assos, Grécia, Peter Paul Rubens

Anónimo - atribuido a Rubens - Hercules FarneseAProvavelmente, para o ser humano que pensa, o mais difícil é aceitar quanto o seu conhecimento do mundo será sempre apenas parcial, e nessa medida, a verdade que o conduz será sempre vulnerável ao que não sabe e desconhece. É esta a limitação que introduz incerteza nas nossas vidas e leva ao conceito de algo absoluto, exterior a nós, onde as dúvidas não existem. O que no caso dos gregos antigos é o conceito de Zeus, deus de poder absoluto que tudo sabe e à sua semelhança fez o homem:

 

Em ti está a nossa origem; a sorte de ser a imagem de um deus,

só a nós coube, entre tantos seres mortais que vivem e rastejam sobre a terra.

 

Cito parte da reflexão que o filósofo estóico Cleante de Assos (séc. IV-III a. C.) desenvolve no Hino a Zeus, único texto seu com dimensão chegado até nós, e que a seguir transcrevo em tradução de Maria Helena da Rocha Pereira.

 

É um conceito de um deus regulador que o poema desenvolve, a quem se pede a salvação dos homens da ignorância, e lhes conceda a sabedoria que permite viver com honra:

 

salva os homens da funesta ignorância,

sacode-a, ó pai, da sua alma, concede-lhes que obtenham

a sabedoria com cujo apoio tudo governas com justiça,

a fim de que, honrados, te correspondamos com honra,

 

Pelo meio é dada conta dos comportamentos daqueles para quem esta vontade sobrenatural não faz lei:

 

São eles mesmos, insensatos, que se precipitam cada um para seu mal,

uns com uma pressa funesta de alcançar fama,

outros voltados para a ganância desordenada,

outros ainda para a licença e os doces prazeres físicos;

 

É de novo um entendimento do divino como regulador de comportamentos que aqui lemos, como também já acontecia com o fragmento de teatro filosófico de Crítias que em artigo anterior transcrevi. Mas em Cleantes encontramos não a fala de um ateu, mas um crente agradecido pois entende-se feito à imagem do deus, no que é a invenção maior da mitologia grega.

 

Cleantes de Assos (séc. IV-III a. C.)

 

Hino a Zeus

 

Ó mais glorioso dos imortais, deus de muitos nomes e sempre poderoso,

Zeus, senhor da natureza, que tudo governas com leis,

salve! Pois a todos os mortais é lícito falar-te.

Em ti está a nossa origem; a sorte de ser a imagem de um deus,

só a nós coube, entre tantos seres mortais que vivem e rastejam sobre a terra.

Por isso te entoarei um hino e cantarei sempre o teu poder.

A ti obedece todo este mundo que gira em torno da Terra,

por onde quer que o leves, e de boa mente te é submisso.

Seguras nas invictas mãos, como teu servidor,

o raio incandescente e de dois gumes, sempre vivo.

Sob o seu impulso, caminha toda a obra da natureza:

com ele diriges a tua Palavra universal, que passa através de tudo,

misturando-se com o astro luminoso maior, e também com os menores.

Não se faz sobre a terra obra alguma sem ti, ó deus,

nem sobre o etéreo pólo divino, nem sobre o mar,

excepto os actos dos malvados na sua demência.

Mas tu sabes ajustar mesmo o que é discordante

e ordenar o que é caótico, e ódio em ti é amor.

E assim harmonizaste tudo o que é nobre com o que é vil, numa só unidade,

de modo a originar uma Palavra eterna de tudo,

a que fogem aqueles dos mortais que são inferiores,

insensatos, sempre a almejar a posse do bem,

sem verem nem atenderem à lei universal do deus,

em cuja obediência seriam connosco felizes.

São eles mesmos, insensatos, que se precipitam cada um para seu mal,

uns com uma pressa funesta de alcançar fama,

outros voltados para a ganância desordenada,

outros ainda para a licença e os doces prazeres físicos;

procedem sem pensar, arrastados de um lado para o outro,

apressando-se com vigor para que suceda o contrário dos teus desejos.

Mas ó Zeus remunerador de tudo, senhor das nuvens negras e do raio coruscante,

salva os homens da funesta ignorância,

sacode-a, ó pai, da sua alma, concede-lhes que obtenham

a sabedoria com cujo apoio tudo governas com justiça,

a fim de que, honrados, te correspondamos com honra,

cantando sem cessar as tuas obras, como cumpre

a um mortal, já que, nem para homens nem para deuses,

há maior honra do que celebrar sempre a tua lei universal.

 

in Hélade, 8ªedicao, Edições Asa, 2003.

 

Abre o artigo um desenho anónimo, atribuido a Peter Paul Rubens (1577-1640) conhecido como o Hércules Farnese.

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Share on Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

Um fragmento de Crítias

03 Domingo Ago 2014

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga, Poesia Grega

≈ 1 Comentário

Etiquetas

Bruegel o Velho, Crítias

Bruegel - O peixe graúdo come o peixe miúdo 600px

É dos recuados tempos da Grécia Clássica que uma reflexão lúcida sobre a necessidade de deuses para regular as sociedades humanas nos chega. Refiro-me ao fragmento de uma obra de Crítias (aluno de Sócrates e protagonista de um dos diálogos de Platão), único que se conhece, e a seguir transcrevo.

Como certeiramente notou Ruy Belo, é na Grécia arcaica que,

… / Pela primeira vez o homem se interroga / sem livro algum sagrado sob a sua inteligência / …

São versos do poema Do sono da desperta Grécia, onde o poeta desenvolve uma profunda reflexão sobre a herança da civilização grega antiga.

 

A reflexão de Crítias, reflexão de um ateu no séc. V a.C., não é uma reflexão paradigmática da relação dos gregos antigos com a mitologia ou o sentimento religioso, ainda que deste praticamente nada saibamos a não ser o que até nós chegou por via da poesia e do teatro, sobretudo, e é, como se sabe, diferente de informação documental objectiva.

No que ao fragmento de Crítias respeita, ressaltaria quanto ele torna evidente a necessidade de regulação nas sociedades humanas como forma de suster o governo da lei do mais forte, sendo que, quando tal se revela impossível, é o além que esperamos nos acuda.

 

Fragmento de Crítias   Houve um tempo em que a vida humana não estava organizada e, à maneira dos animais, a força é que mandava, pois nenhum prémio havia para os bons, nem para os maus havia castigo. Só mais tarde os humanos decidiram estabelecer leis repressivas a fim de que a justiça imperasse e a insolência fosse dominada. Se alguém lesasse outro, isso era considerado delito. Mas, como as leis só conseguiam evitar aquelas acções violentas que eram praticadas às claras, e não as que se praticavam às escondidas, então, parece-me, um indivíduo avisado e sábio teve a ideia de introduzir entre os mortais a crença nos deuses, a fim de amedrontar os maus, se cometessem alguma má acção às escondidas, por palavras ou em pensamento. Introduziu assim a divindade, dizendo que há um ser que floresce com força imperessivel que ouve e vê com o espírito e o pensamento e tudo alcança e tem natureza divina, que ouve tudo o que é dito entre os mortais e é capaz de ver tudo o que se faz. Que, se silenciares algum mal em que medites, isso não escapará aos deuses, tal é a sua inteligência. Dizendo isto, tornou mais atraentes os seus ensinamentos e mentiu, ocultando a verdade sobre as palavras. Disse também — para, dizendo-o, amedrontar mais os homens — que os deuses habitam lá onde julgou que existiam os terrores para os mortais e as vantagens para a sua triste existência: na abóbada celeste, onde se vêem os raios, os terríveis ruídos do trovão e o clarão brilhante do céu estrelado, belos ornamentos que o tempo produziu. É lá que brilha a massa incandescente dos astros e de lá vem a chuva suave que cai sobre a terra. Criou assim belamente os temores por meio de palavras, colocou a divindade num ambiente adequado e, pelo medo, acabou com a injustiça.   Assim, creio, houve um homem que primeiramente convenceu os mortais a acreditar na existência duma raça divina.

in Antologia da Poesia Grega Clássica, tradução e notas complementares de Albano Martins, Edições Afrontamento, Julho 2011.

 

Abre o artigo um filosófico desenho de Bruegel o Velho (1525-1569), denominado O peixe graúdo come o peixe miúdo, dando afinal conta de como numa sociedade desregulada, a lei do mais forte domina, sem o limite do castigo que a justiça, dos homens ou dos deuses, pode aplicar.

 

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Share on Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

O verão segundo Alceu de Lesbos

28 Domingo Jul 2013

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Poesia Antiga, Poesia Grega

≈ 1 Comentário

Etiquetas

Alceu de Lesbos, Picasso

Beach at La Garoupe (first version) - 1955-16Neste verão que se esconde, e a espaço nos abrasa, regresso com a poesia da antiga Grécia, terra habituada ao sol, cujos poetas nos deixaram uma leitura do mundo, cruzada com o capricho de deuses e heróis numa explicação do incompreensível, de inexcedível beleza.

É de Alceu de Lesbos (sec VII a.C.), poeta e soldado de quem nos chegou pouca da muita poesia sua de que há noticia, esta reflexão sobre o Verão — É a hora / em que as mulheres se tornam / mais fogosas e mais fracos / os homens —, onde de alguma forma retoma a reflexão de Hesíodo (séc VIII a.C.) em Trabalhos e Dias (versos 582-596) que há anos, pelo Outono transcrevi no blog.

Humedece de vinho a garganta, que o astro
já voltou. É penosa
a estação e tudo
esmorece com o calor. Entre
a folhagem, docemente
a cigarra canta… Floresce
o cardo. É a hora
em que as mulheres se tornam
mais fogosas e mais fracos
os homens, pois que Sírio
as cabeças abrasa e os joelhos.

A tradução é de Albano Martins e consta da Antologia da Poesia Grega Clássica, Edições Afrontamento, Porto, 2011.

Talvez algum erudito leitor nos saiba esclarecer quanto a semelhança entre estes fragmentos de Alceu e Hesíodo reflecte os processos de transmissão da poesia antiga até nós e traduz um conceito de originalidade autoral nos antípodas do que hoje prezamos.

Iconografia

Acompanham o artigo duas visões de Picasso da praia em La Garoupe, sul de França, em 1955.

Beach at La Garoupe (second version) - 1955-15

 

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Share on Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

Da Antologia Palatina, O beijo

08 Sexta-feira Fev 2013

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga, Poesia Grega

≈ Deixe um comentário

Etiquetas

Antologia Palatina

porto-ramos-pintoÉ a Antologia Palatina, compilação de poesia grega antiga onde, como referi ontem, se reúnem poesias que se encontravam dispersas em livros de epigramas amorosos, morais, cómicos, etc…, de poetas de quem em geral pouco se sabe, que vou buscar este inebriante beijo escrito por alguém que até nós chegou anónimo.

Uma jovem beijou-me à tarde com seus lábios húmidos.
Era um néctar o seu beijo, pois a boca exalava néctar.
E fiquei ébrio com este beijo, por ter bebido a largos tragos o amor.

Anónimo

Tradução de Albano Martins, Antologia da Poesia Grega Clássica

Que o Carnaval em começo vos permita beber a largos tragos o amor.

Não vos maço mais com poesia. Escondo-me na pele do homem da capa negra e parto a gozar o Carnaval. Se algum leitor me encontrar venha de lá o cumprimento.

Sandeman anuncio original 1928

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Share on Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

Eurípedes, um fragmento de Ifigénia em Áulide

15 Terça-feira Jan 2013

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Crónicas, Poesia Antiga, Poesia Grega

≈ Deixe um comentário

Etiquetas

Eurípedes, Frans Floris

FLORIS, Frans - O julgamento de Páris 1548Dava hoje noticia a imprensa, de um inquérito não representativo ao Interesse Sexual Masculino, levado a cabo em Portugal, Croácia e Noruega.
A noticia concluía, não sei se o inquérito também, umas coisas variadas, destacando e apontando razões para um suposto desinteresse sexual em mais de 10% dos portugueses homens, na casa dos 30 anos.
Estes estudos explicam-se por si: são ocupação de alguém para durante algum tempo produzir qualquer coisa que permita seguir em frente ganhando a vida.
Expendidos vários argumentos para este resultado, um deles refere a perda de interesse sexual por excesso de convívio com a pornografia. Será! Poupo-vos a comentários. Digo-vos, apenas que ao ler tudo isto me ocorreu um fragmento de Eurípides (480-406a.C.):

Haja para mim graça / comedida e castos amores;
dos dons de Afrodite participe / mas evite os seus excessos.

Deixo-vos com a estrofe da primeira intervenção do coro de Ifigénia em Áulide, poema maravilhoso e cruel tragédia, nas palavras de André Bonnard, onde estes versos se contêm.

Felizes os que, com medida divina           543
e segundo a sabedoria,
tiveram parte nos prazeres de Afrodite,
com calma usando
o aguilhão furioso das paixões
quando Eros de loura cabeleira
os dardos ambos dispara das suas graças,
um para destino de felicidade,
outro para tormento de vida.
A este afasto eu, linda Cípris,
do meu tálamo.
Haja para mim graça
comedida e castos amores;
dos dons de Afrodite participe
mas evite os seus excessos.

A tradução é de Carlos Alberto Pais de Almeida, 2ªedição, FCG/JNICT, 1998

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Share on Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

Poemas para o verão: Hesíodo (séc VIII a.C,) a abrir

26 Quinta-feira Jul 2012

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Poesia Antiga, Poesia Grega

≈ 1 Comentário

Etiquetas

Abel Grimmer, Bruegel, Hesíodo

Verão, quando é “o vinho melhor / mais ardentes as mulheres e moles os homens;” segundo a sabedoria de Hesíodo nos seus mais de 2700 anos, é também tempo de poesia. E para este Verão reuni um grupo variado de poemas onde, da Rússia à América, a estação nos surge.

Dou a primazia a um fragmento do poema Trabalhos e Dias de Hesíodo (séc VIII a.C,) o mais antigo poeta grego cujo nome se conhece, e bastas vezes referido no blog.

Quando o cardo floresce e a sonora cigarra,
pousada nas árvores, espalha o melodioso canto,
pela fricção das asas, na penosa estação do calor,
nessa altura são mais gordas as cabras e o vinho melhor,
mais ardentes as mulheres e moles os homens;
Siriús abrasa-lhes a cabeça e os joelhos,
fica-lhes ressequida a pele pelo calor. É tempo então
de gozar a sombra de uma rocha, o vinho bíblino,
um pão de qualidade, leite de cabra que já não amamenta,
carne de vitela apascentada nos bosques, que ainda não pariu,
e de cabritos tenros. Bebe então o vinho rubro,
sentado à sombra, saciado o coração com o festim,
o rosto voltado de frente para a frescura do Zéfiro;
e de uma fonte que corre perene e límpida,
deita três partes de água e a quarta de vinho

Trabalhos e Dias (582-596)
Tradução de José Ribeiro Ferreira
Edição INCM, Lisboa 2005

A abrir o artigo vem um desenho de Bruegel (1525-1569) conhecido por Verão.

Termino com a pintura de um seguidor, Abel Grimmer (1570-1619) – Verão, feita provavelmente meio século mais tarde.

Veja o leitor as diferenças como exercício de Verão.

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Share on Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

Mimnermo – O que é a vida? O que é o prazer, sem a dourada Afrodite?

09 Sábado Out 2010

Posted by viciodapoesia in Poesia Grega

≈ 1 Comentário

Etiquetas

MIMNERMO

 

O que é a vida? O que é o prazer, sem a dourada Afrodite?

 

– espinafres, sopa de espinafres…

– os espinafres fazem muito bem …

– e o ovo, comprei ovos…

– para pessoas que trabalham…

– e quatro iogurtes…

– não sei como conseguem…

– e leite vigor…

– com filhos e tudo…

– há ali ao lado do talho…

– sempre a correr…

– comprei dois…

– a gente vê-os e não percebe que…

– oitenta e cinco cêntimos…

– talvez seja do tempo…

– o rapaz do talho…

– tenho vindo ao supermercado…

– e os pães de leite…

– encontrei-a e não consigo saber…

–  para o jantar…

– foi baratíssimo, e água…

– é uma pena que se enerve…

– pois vamos na segunda e não…

– isto prolonga-se até…

– se calhar é um bom passeio…

– mas vão arranjar os pés a uma senhora…

– espero que o tempo ajude…

– e ficou sem pinga de sangue…

– ela gostava muito…

– eu respeito muito aquela ideia…

– mas como a filha casou…

– não podem votar mulheres…

– então ela virou-se e disse…

– só pode ir a festas com o marido…

– e fez operação a uma vista…

– esteve dois anos desempregado, dois anos…

– e seis meses depois fez outra…

– mas a gasolina está…

– não, ele quis ir-se embora e arranjou casa…

– pensei que mostrava a arrecadação…

– ela fez o que pôde…

– pago quase 20 contos, quase 100 euros…

– o filho disse-lhe “não tens dinheiro para…

– dantes, quando não estava…

– há pessoas que são assim, eu não sei…

– quando ele disse “agora que já…

– é muito diferente…

– ela, concerteza estava a gozar…

– desde que aquele meu primo…

– comecei a andar sempre sozinha…

– e ressonava que era um horror…

– havia a minha irmã, que já faleceu…

– ele sabia que não podia…

– ela dizia-me assim…

– uma pessoa voltando a ver…

– quase que não acreditava…

– mas ela, só que…

– não tem força, está desfeita…

– então não sei muito bem como é…

– e quis que lá ficasse no quarto…

– é como a Maria do Rosário…

– assobiava que sei lá…

– hoje acordei cedo…

– ouvi tocar o telefone…

– para Algés vou só…

– de maneira que me levantei e fui…

– comprei, até foi em Espanha…

– de tal maneira que é impossível…

– e ela disse hoje que sim…

– quarta-feira a oito dias…

– então até amanhã.

– Até amanhã. Ainda bem que conversámos, fiquei tão aliviada!

Assim áspera foi a velhice que o deus impôs.

 

A este quadro de mesa de café junto a reflexão de Mimnermo, poeta grego do sec VII a. C. Na forma de elegia:

 

O que é a vida? O que é o prazer, sem a dourada Afrodite?

Que eu morra, quando estas coisas já não me interessarem:

o amor secreto, as suaves ofertas e a cama,

que são flores da juventude sedutoras

para homens e mulheres. Mas quando chega a dolorosa

velhice, que faz até do homem belo um homem repulsivo,

tristes preocupações sempre lhe moem os pensamentos

e já não sente prazer em contemplar a luz do sol,

mas é odiado pelos rapazes e desonrado pelas mulheres.

Assim áspera foi a velhice que o deus impôs.

 

 

A tradução é de Frederico Lourenço e vem na preciosa antologia POESIA GREGA  de Álcman a Teócrito, publicada por livros Cotovia em 2006.

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Share on Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

Trabalhos e Dias

07 Quinta-feira Out 2010

Posted by viciodapoesia in Crónicas, Poesia Grega

≈ 1 Comentário

Etiquetas

Hesíodo

 

 

É urbana a minha memória dos cheiros da terra. São, nos mercados as bancas da hortaliça se por acaso entre elas despontam ervas aromáticas: coentro, salsa, hortelã; que me devolvem aquela espécie de segurança despreocupada apanágio da infância.

Quando, chegado Outubro, acontecia a feira anual de sementes, frutos secos e gado, bujigangas e figurinhas de barro para o presépio à mistura,  em grandes sacos de serrapilheira lá estavam –  peros: vermelhos, raiados, verdes, bravo d’esmolfe; e então, era a alegria num odor inebriante, talvez perdido para sempre.

É em vão que da prateleira do supermercado levo para casa bolinhas verdes a que chamam peros bravo d’esmolfe, pois aberto o saco, cheiro não há, e o sabor é vago a qualquer coisa indistinta.

Na volta do fim da tarde passei à porta da preciosa charcutaria de bairro e havia, em caixotes, cheirosos, peros bravo d’esmolfe. Entrei e comprei. As tâmaras da Tunísia e Israel, os figos da Turquia, nada disso ainda chegou, mas já há as frutas em açucar da abençoada fábrica Convento da Serra, de Elvas. Se até há uns anos eram as ameixas deles a minha perdição, desde que apareceram figos, não resisto. Com a minha paixão por figos em qualquer estádio, frescos, secos, com açucar, cristalizados, recheados  ou em doces os mais diversos, quase me sinto perto dos deuses do Olimpo de quem se diz alimentarem-se a figos e mel.

Na verdade é uma paixão vinda da mais tenra infância. Voltava eu da escola de aprender a ler, mal feitos os três anos, e ao passar em casa da bisavó corria para as algibeiras daqueles saiões rodados onde sempre havia figos secos e torrados. Mais tarde, era o caixote de madeira providenciado anualmente pelo meu avô para o inverno, cheio de figos arrumados às camadas separadas por pauzinhos de funcho, a fonte das delicias. Interrompia brincadeiras para amiúde ir buscar 1 ou 2 figos e o caixote com custo ultrapassava o Natal.

Como algures aqui escrevi, sou decididamente uma criatura do mediterrãneo. Neste folhear de memórias ocorre-me o prazer com que descobri o mercado das Ramblas em Barcelona, espectáculo único para os sentidos de qualquer gourmet, ou os passeios há 30 anos pelos mercados de rua nas cidades italianas, de Veneza a Nápoles, hoje praticamente inexistentes por milagre da nossa senhora da união.

O acaso das leituras cruzadas destes últimos dias conduziu-me ao mediterrâneo. Leio Orlando Ribeiro numa viagem fascinada pela paisagem, gentes e cultura. De um fôlego li a última história de mestre Camileri deambulada na Sicilia, e demoradamente caminho na edição de José Ribeiro Ferreira de Trabalhos e Dias de Hesíodo.

Na documentação que acompanha a tradução de Trabalhos e Dias encontro o esquema do arado descrito por Hesíodo e usado há mais de 2600 anos na Grécia. Na página seguinte do livro aparece o esquema do arado usado em pleno século XX na freguesia onde nasci e cresci em tudo semelhante ao arado grego da antiguidade.

Estas continuidades devolvem-me um sentido único de pertença a um mundo do qual gosto de guardar e transmitir a herança.

É Outubro, é mês de lavoura, tempo da passagem do grou pela Grécia vindo dos países nórdicos a caminho de África para aí hibernar e nos Trabalhos e Dias Hesíodo recomenda para esta altura:


…

Presta atenção, quando escutares o grito do grou,             448

no alto, entre nuvens, ele que seu lamento, ano a ano, repete:

dá-te o sinal do trabalho de lavra, a estação do inverno                   450

te anuncia, pluviosa, e punge o coração do que não tem bois.

Então engorda os bois de chifres recurvos, em casa.

Pois é fácil dizer: “empresta-me a junta de bois e o carro”;

mas fácil é também recusar: “ já há trabalho para os meus bois”.

O homem rico fala, em espírito, em construir um carro;                   455

louco, nem sequer sabe que cem são as peças desse carro,

as quais deve ele, primeiro, ter o cuidado de reunir em casa.

Logo que brilha para os mortais o tempo da lavoura,

aprestai-vos então em conjunto, escravos e tu próprio,

a arar a terra, seca ou húmida em cada estação da lavoura,           460

esforçando-te desde manhã, para que os campos produzam.

…

 


Talvez nesta eterna viagem algum dos grou de Hesíodo tenha transportado Nils Holgerssons na sua viagem maravilhosa.

Uma vez por outra sabe bem voltar à infância.

 

Noticia bibliográfica:

O fragmento transcrito do poema Trabalhos e Dias, de Hesíodo, foi retirado da edição conjunta de Teogonia e Trabalhos e Dias de Hesíodo, publicada pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda em 2005 na colecção Biblioteca de Autores Clássicos e da responsabilidade de Ana Elias Pinheiro – Teogonia , e José Ribeiro Ferreira – Trabalhos e Dias.

 

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Share on Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

Lua cheia – um fragmento de Safo em 4 versões

29 Sábado Maio 2010

Posted by viciodapoesia in Crónicas, Poesia Grega

≈ Deixe um comentário

Etiquetas

Albano Martins, Frederico Lourenço, Pedro Alvim, safo

Numa volta do caminho no regresso a casa  deixo para trás o ruído de luzes e faróis e súbito surge pela frente, plácida, esplendorosa,  a lua, cheia.

Perco a urgência de chegar e de mansinho deslizo por aquele caminho iluminado saboreando o azul cerúleo do céu e a língua de prata sobre o rio. Sonho com passeios mão-na-mão e beijos da amada à beira-mar. É o fragmento 34 de Safo que a memória me trás:

 

Lua Cheia

As estrelas ao redor

da lua bela

longe o brilho escondem

quando,

plena de fulgor,

mais ela

se entorna

cheia

pela terra.

 

Escrito há talvez mais de 2600 anos, mostra bem como o sortilégio perene da  natureza torna homens e mulheres iguais para além do tempo e do espaço.

Esta versão do poema grego é de Pedro Alvim, e foi publicada com outros fragmentos da poetisa pela Editora Vega em 1991.


São várias em português as versões deste poema. Deixo aqui  outras 3 versões de desigual resultado na transmissão da emoção do original grego.


Em redor da formosa

lua, as estrelas

de novo escondem

seu rosto brilhante

quando ela, cheia,

brilha sobre a terra

em todo o seu fulgor.


Versão de Albano Martins publicada em 1986  pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda em O essencial de ALCEU E SAFO.


A Lua

As estrelas, em volta da formosa Lua,

de novo ocultam a sua vista esplendente,

quando a Lua cheia brilha mais, argêntea,

sobre toda a terra.


Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira publicada em Hélada – Antologia da Cultura Grega, Edições ASA, 8ªedição 2003.


E agora, talvez a mais bela versão em português deste fragmento. A versão de Frederico Lourenço, publicada por Livros Cotovia em 2006, e incluída na sua antologia Poesia Grega.


A lua

Os astros em torno da bela lua

escondem seu aspecto cintilante

quando na sua plenitude ela ilumina

a terra.


Tendo vivido em Lesbos, ilha grega do mar Egeu, nos finais do século VII a. C., gosto de pensar que uma paisagem como a da fotografia desta crónica terá estado na origem deste belo fragmento.


Da poesia de Safo restam hoje apenas fragmentos, e tal com na escultura grega admiramos a sua beleza mutilada, nesta poesia saboreamos com comoção e embevecimento os restos que nos embalam a imaginação.

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Share on Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...
Newer posts →

Visitas ao Blog

  • 1.945.753 hits

Introduza o seu endereço de email para seguir este blog. Receberá notificação de novos artigos por email.

Junte-se a 869 outros seguidores

Página inicial

  • Ir para a Página Inicial

Posts + populares

  • Camões - reflexões poéticas sobre o desconcerto do mundo
  • A valsa — poema de Casimiro de Abreu
  • Vasos Gregos

Artigos Recentes

  • Sonetos atribuíveis ao Infante D. Luís
  • Oh doce noite! Oh cama venturosa!— Anónimo espanhol do siglo de oro
  • Um poema de Salvador Espriu

Arquivos

Categorias

Site no WordPress.com.

  • Seguir A Seguir
    • vicio da poesia
    • Junte-se a 869 outros seguidores
    • Already have a WordPress.com account? Log in now.
    • vicio da poesia
    • Personalizar
    • Seguir A Seguir
    • Registar
    • Iniciar sessão
    • Denunciar este conteúdo
    • Ver Site no Leitor
    • Manage subscriptions
    • Minimizar esta barra
 

A carregar comentários...
 

    loading Cancelar
    O artigo não foi enviado - por favor verifique os seus endereços de email!
    A verificação do email falhou, tente de novamente
    Lamentamos, mas o seu site não pode partilhar artigos por email.
    %d bloggers like this: