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Bruegel - O peixe graúdo come o peixe miúdo 600px

É dos recuados tempos da Grécia Clássica que uma reflexão lúcida sobre a necessidade de deuses para regular as sociedades humanas nos chega. Refiro-me ao fragmento de uma obra de Crítias (aluno de Sócrates e protagonista de um dos diálogos de Platão), único que se conhece, e a seguir transcrevo.

Como certeiramente notou Ruy Belo, é na Grécia arcaica que,

… / Pela primeira vez o homem se interroga / sem livro algum sagrado sob a sua inteligência / …

São versos do poema Do sono da desperta Grécia, onde o poeta desenvolve uma profunda reflexão sobre a herança da civilização grega antiga.

 

A reflexão de Crítias, reflexão de um ateu no séc. V a.C., não é uma reflexão paradigmática da relação dos gregos antigos com a mitologia ou o sentimento religioso, ainda que deste praticamente nada saibamos a não ser o que até nós chegou por via da poesia e do teatro, sobretudo, e é, como se sabe, diferente de informação documental objectiva.

No que ao fragmento de Crítias respeita, ressaltaria quanto ele torna evidente a necessidade de regulação nas sociedades humanas como forma de suster o governo da lei do mais forte, sendo que, quando tal se revela impossível, é o além que esperamos nos acuda.

 

Fragmento de Crítias   Houve um tempo em que a vida humana não estava organizada e, à maneira dos animais, a força é que mandava, pois nenhum prémio havia para os bons, nem para os maus havia castigo. Só mais tarde os humanos decidiram estabelecer leis repressivas a fim de que a justiça imperasse e a insolência fosse dominada. Se alguém lesasse outro, isso era considerado delito. Mas, como as leis só conseguiam evitar aquelas acções violentas que eram praticadas às claras, e não as que se praticavam às escondidas, então, parece-me, um indivíduo avisado e sábio teve a ideia de introduzir entre os mortais a crença nos deuses, a fim de amedrontar os maus, se cometessem alguma má acção às escondidas, por palavras ou em pensamento. Introduziu assim a divindade, dizendo que há um ser que floresce com força imperessivel que ouve e vê com o espírito e o pensamento e tudo alcança e tem natureza divina, que ouve tudo o que é dito entre os mortais e é capaz de ver tudo o que se faz. Que, se silenciares algum mal em que medites, isso não escapará aos deuses, tal é a sua inteligência. Dizendo isto, tornou mais atraentes os seus ensinamentos e mentiu, ocultando a verdade sobre as palavras. Disse também — para, dizendo-o, amedrontar mais os homens — que os deuses habitam lá onde julgou que existiam os terrores para os mortais e as vantagens para a sua triste existência: na abóbada celeste, onde se vêem os raios, os terríveis ruídos do trovão e o clarão brilhante do céu estrelado, belos ornamentos que o tempo produziu. É lá que brilha a massa incandescente dos astros e de lá vem a chuva suave que cai sobre a terra. Criou assim belamente os temores por meio de palavras, colocou a divindade num ambiente adequado e, pelo medo, acabou com a injustiça.   Assim, creio, houve um homem que primeiramente convenceu os mortais a acreditar na existência duma raça divina.

in Antologia da Poesia Grega Clássica, tradução e notas complementares de Albano Martins, Edições Afrontamento, Julho 2011.

 

Abre o artigo um filosófico desenho de Bruegel o Velho (1525-1569), denominado O peixe graúdo come o peixe miúdo, dando afinal conta de como numa sociedade desregulada, a lei do mais forte domina, sem o limite do castigo que a justiça, dos homens ou dos deuses, pode aplicar.