Ao escolher poemas noutras linguas para o blog algumas vezes encontro versões em português, outras não sei que existam e aí, traduzi-los seria o caminho óbvio. Acaba por ser muitas vezes o receio de perder as subtilizas da língua original de um poema o que me tolhe quando coloco esses poemas no blog sem qualquer tradução a acompanhar.
Na labuta de aproximação à nossa língua de um poema que nos encanta, há muito dos trabalhos de sedução no processo amoroso: há um terreno virgem a percorrer no encontrar a palavra certa para flanquear o caminho do verso, culminando no prazer final de atingir o auge que é a conclusão de um poema.
De toda esta empreendedora tarefa nos dá conta em belas imagens na luta do besouro com a flor, o poema de Zbigniew Herbert (1924-1998) – Sobre tradução de poesia – que hoje vem ao blog, vertido em português pela genialidade de Herberto Hélder.
Herberto Hélder, além da sua obra poética singular, tem um conjunto vasto de poemas de diversas proveniências, mudados para português, como o próprio se lhes refere, dos quais este saboroso e dúplice tratado sobre tradução poética é um dos meus preferidos.
– Sobre tradução de poesia –
(Zbigniew Herbert)
Zumbindo um besouro pousa
numa flor e encurva
o caule delgado
e anda por entre filas de pétalas folhas
de dicionários
e vai direito ao centro
do aroma e da doçura
e embora transtornado perca
o sentido do gosto
continua
até bater com a cabeça
no pistilo amarelo
e agora o difícil o mais extremo
penetrar floralmente através
dos cálices até
à raiz e depois bêbado e glorioso
zumbir forte:
penetrei dentro dentro dentro
e mostrar aos cépticos a cabeça
coberta de ouro
de pólen
Tradução de Herberto Helder publicada a abrir o livro OUOLOF poemas mudados para português por Herberto Helder, Assírio & Alvim, Lisboa 1997.
A tradução poética continua matéria de controvérsia, ainda que para mim, enquanto leitor, a preferência vá sempre para a tradução que em português fala comigo, a uma qualquer versão em que a fidelidade lexical seja o propósito. As versões de Herberto Hélder são certamente um caso extremo no afastamento da fidelidade lexical, e, com rara felicidade, são sempre novos poemas acrescentados à língua portuguesa, como se nela tivessem sido criados de raiz. Para o avaliar convido o leitor a seguir a versão portuguesa do mesmo poema que hoje nos ocupa, agora por Jorge Sousa Braga:
SOBRE A TRADUÇÃO DE POESIA
Como um abelhão desajeitado
pousa numa flor
vergando o frágil caule
abre caminho com os cotovelos
através duma fileira de pétalas
através das folhas de um dicionário
quer chegar
onde se concentram a fragrância e a doçura
e embora esteja constipado
e sem gosto
continua a tentar
até que a cabeça choca
contra o pistilo amarelo
e não consegue ir mais longe
é tão duro
forçar a coroa
até chegar à raiz
por isso levanta voo
emerge pavoneando-se
zumbindo
eu estive lá
e aqueles
que não acreditam nisso
olhem para o seu nariz
amarelo de pólen
Versão de Jorge Sousa Braga a partir da versão inglesa de Czeslaw Milosz. Publicado em Zbigniew Herbert, Escolhido pelas Estrelas, antologia poética, Assírio & Alvim, Lisboa 2009.
Ilustra o artigo a pintura de Giorgio De Chirico, As Musas Inquietas (eventualmente inquietas com os problemas levantados pela tradução de poesia).