• Autor
  • O Blog

vicio da poesia

Tag Archives: Ana Hatherly

Ana Hatherly – Tudo o que não é paixão, amor ou descoberta, não é senão sofrimento

31 Terça-feira Mar 2015

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

≈ Deixe um comentário

Etiquetas

Ana Hatherly

Sentado numa esplanada, e nas minhas costas, duas mulheres a quem há muito os quarenta anos tinham dito adeus, conversavam.

Uma, pragmática, argumentava com a razão as vantagens de um compromisso da outra com alguém que ambas conheciam. A certa altura a visada, responde nostálgica e com um grão de tremura na voz:

– Não querida, ainda estou à espera do príncipe encantado!

É bom esperar principes ou princesas encantadas toda a vida.

Há alguns anos, quando deparei na livraria com o título de um novo livro de Ana Hatherly (1929) – A NEO-PENÉLOPE, pensei: quase aos oitenta anos e ainda à espera do regresso do amor/Ulisses, vagabundo de outras camas/Calíopes que pelo mundo há.

Há tempos, conversa que traz conversa, veio o livro à baila, e de regresso a casa, lá fui. A ironia feroz que perpassa por tanta da poesia de Ana Hatherly, de alguma forma contrastando com um cativante feminino na sua obra plástica, parece neste livro ter virado desalento onde, no entanto, a espaços, um sopro irónico ainda surge.

É claro que o poeta atento ao mundo que nos anos 60 escreveu BALADA DO PAÍS QUE FOI, CALADO ou  EPÍSTOLA DE UM EMIGRANTE,  entre outros, não anda distraído. Os tempos são outros, a vida também, mas a atenção ao real lá está. Passadas as querelas de escola, fica a eterna e inacabada busca sobre o amor. E  esta poesia, agora, é mais a visão do sage que tanta vida viveu, e nos conta em poemas como neste  SEM AMOR, ou no seguinte, CARTA DE AMOR INFORMÁTICO, o papel do amor na vida de cada um.


SEM AMOR


Viver sem amor

É como não ter para onde ir

Em nenhum lugar

Encontrar casa ou mundo


É contemplar o não-acontecer

O lugar onde tudo já não é

Onde tudo se transforma

No recinto

De onde tudo se mudou


Sem amor andamos errantes

De nós mesmos desconhecidos


Descobrimos que nunca se tem ninguém

Além de nós próprios

E nem isso se tem


 

CARTA DE AMOR INFORMÁTICO


Penetraste no meu coração

Como um virus no meu computador


Vindo de lado nenhum

Ofereces-me agora

O vazio da não opção


Estragaste-me o real

Obrigaste-me a reinventá-lo:

Para quê?


Agora estás

No meu cemitério de textos

Já não te posso reencaminhar


Arquivei-te no lixo da memória

Do meu Pentium IV

Que aliás já vendi


Troquei-o por um lap top

Mais leve

Mais portátil

Mais facilmente descartável


Prossigo no livro e com que desencanto ela nos fala da mulher hoje, em poemas como A NEO-PENÉLOPE, A CAMPEÃ DAS GATAS,  ou este ELA – AGORA

Não menos que Helena bela

Ela senta-se à janela

Porém não à janela mas às janelas

Do computador

Que abrem portas que são redes

Páginas que são sítios

Avenidas que são ermos

Que agora percorremos

Já sem voz

Cada vez mais sós


Tanta profusão

Atira-nos

Para um lixo que nos deita fora


Embora na desolada solidão  Que agora percorremos / Já sem voz / Cada vez mais sós, desta vida com internet, há ainda lugar para os ecos de eros, não já EROS FRENÉTICO mas ainda assim EROS em A VIDA DO MEU CORPO – A atenção ao corpo / É um vínculo selvático


A vida do meu corpo

É toda uma lição

Fechada folha em acto


A seu respeito

Continuam as perguntas

Por exemplo:

Quando é que Adão e Eva

Primeiro se encontraram?

Qual foi a hora

Do fatídico acto?


No paraíso

O tempo despenha-se

Numa corrente acrónica


Ah!

Apressa o teu passo

Fortuito acaso

A atenção ao corpo

É um vínculo selvático

 

Mas há mais, há ainda a mulher-menina a quem Alice em tempos seduziu: contínua é a minha partida / Para o regresso / O espelho que eu cruzo / tem dupla face / Nunca me indica / qual lado ultrapasse., e eis que Alice regressa.

Agora, numa forma magoada, instala-a Ana Hatherly NO PAÍS DOS ANÕES

 

…

Alice é

A filha inventada

De um pai fingido.


Ele queria que ela fosse

A chave

Que abre a porta

Do paraiso sonhado

Onde a felicidade

Devia morar

Mas já não mora.

…

Para o final em jeito de memória, a estudiosa apaixonada do barroco brinda-nos com 4 SÁTIRAS BARROCAS escondidas entre desencantos de amor qual seja a primeira

 

SÁTIRA BARROCA I – O PRAZER DOS CASAIS

Os mesclados jogos esponsais

Lugar obrigatório de cristais

Decorrem de proximidades desiguais


Infamantes sombrias mas legais

As exigências intensas conjugais

Perluzem pelos preitos maritais


Repercussões: efeitos sociais

Repartição de legados essenciais

Injunções recalques preceituais

A familia é o prazer dos casais

 

Termina o livro com O CRONISTA SOCIAL


O tribuneiro cronista social

Atinge a plenitude laboral

Ao expor dos estros dominantes

Os seus sucessos

Desporto de gigantes.


Olhando só de longe

Mas a fundo

Cobiça a sua galhardia

E do intenso gasto de energia

Cai depois numa profunda nostalgia.


Sempre quer

Mas não consegue

Nem subir mais nem sequer rir

E à noite

Com uma insónia enorme

Não deixa dormir

Nem dorme.


 

 

Edição &etc, Lisboa, 2007, e como costume da editora, edição única.

Composto e paginado por Olímpio Ferreira, tem na capa um belíssimo desenho da autora.

Nota final: O título do artigo é uma frase de Ana Hatherly com que esta encerra uma entrevista a Ana Vasconcelos e Melo a propósito de uma sua exposição de desenhos, colagens e papeis pintados realizada em Paris em 2005.

Artigo publicado aqui no blog em Nov de 2010, agora ligeiramente retocado e trazido à luz para os novos leitores.

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Share on Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

O sonho e o tempo em dois poemas de Ana Hatherly

04 Domingo Ago 2013

Posted by viciodapoesia in Crónicas, Poetas e Poemas

≈ Deixe um comentário

Etiquetas

Ana Hatherly

Eyck_Jan_van-St_JeromeSabem os leitores do blog como me encanta muita da poesia de Ana Hatherly (1929). Hoje, é ao segundo livro de poesia da artista, As Aparências, publicado em 1959, que vou buscar duas exemplares reflexões: uma sobre o sonho — É a medida sem comparação, — , outra sobre o tempo — O tempo é um passo / Que em seu próprio espaço / Cabe.

Neste livro lemos uma intensa reflexão sobre a necessidade do sonho nas nossas vidas a pretexto das aventuras do personagem Alice no País das Maravilhas — Depressa, depressa, / As minhas asas, o meu fato de sonhar, —.

III
O sonho é a ponte
Que vai do infinito ao infinito,
É a medida sem comparação,
É a presença do que se imagina.

Sonhar talvez só seja
Reconhecer o que já nem a alma sinta
Nem o próprio pensamento veja.

E nesta espécie de viagem ao País da Alice onde o tempo sonhado — Era o tempo do amor — acontece surgirem-nos estes dois poemas:

Oh, que curioso sonho eu tive

I

Íamos todos alegres e tranquilos
Pelo caminho que era o rórido bem.
Os pares de olhos dados
Sorrindo encantamentos,
Elevavam a verdade
A cor dos sentimentos.
Nem ânsia nem receios
Havia como enleios
— Da desunião a dor
Nem presença nem memória —

Era o tempo do amor
Era a vitória

III

Propus ao meu destino
Um jogo com aposta.
Os dados que ele usasse
A mim pertenceriam,
As regras que impusesse
A ambos dirigiam.
A partida era leal
E a vitoria a ambos conviria:
— Aquele que ganhasse
Ao outro mais servia…

A parada que se oferecia,
Era a realidade
Da minha fantasia.

Sonhar é possível mas o tempo — É a flecha / Desferida do arco de toda a invenção. — se encarrega de lhe pôr o fim. E neste sonhopoema com que o livro acaba, o tempo conta-se assim.

FIM

O tempo é um passo
Que em seu próprio espaço
Cabe.

Com ele partimos
E nele regressamos
Cumprindo o indirecto plano
Da reintegração:

É a flecha
Desferida do arco de toda a invenção.

Nota

No livro Poesia 1958-1978, onde reuniu a sua poesia publicada até então, a autora aproveitou de As Aparências apenas 8 dos 36 poemas que compõem o livro. É uma pena pois o livro é hoje uma raridade bibliográfica e na sua unidade ganha um valor acrescido que justificava não o abandonar.

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Share on Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

Ana Hatherly – tisana 387

02 Quinta-feira Maio 2013

Posted by viciodapoesia in Convite à música, Poetas e Poemas

≈ Deixe um comentário

Etiquetas

Ana Hatherly, Elizabeth Schwarzkopf, Richard Strauss, Vier Letzte Líeder

12Estou triste e só. Ligo o rádio. Oiço duas das últimas Canções de Strauss. Sinto de uma maneira profunda a sua fluidez cromática, a sua riqueza orquestral. Os metais soam como vibrantes florestas. A voz da cantora é a de uma grande ave solitária. Sinto-me um lobo sem alcateia. Quando se está muito só o gemido transforma-se em uivo

Esta Tisana 387 consta do livro 463 tisanas que reuniu em 2006 o conjunto destes poemas, publicado por Quimera Editores.

Pequenos poemas em prosa que constituem uma espécie de work in progress, tendo vindo a ser publicadas desde 1969, As TISANAS de Ana Haterly (1929) são uma meditação poética sobre a escrita como pintura e filtro da vida. No seu conjunto formam uma espécie de cidade-estado construída pela escrita criadora, que é abolição obliqua, delírio provocado e lição de tentativa. O mundo das TISANAS é um mapa emotivo de uma conjuntura cultural em que os agentes do sentido têm por árbitro o espírito.

Clarificado que está o poema no seu contexto, acrescento apenas uma nota musical sobre as peças nele mencionadas.

Nota musical

No poema referem-se duas canções de um ciclo de quatro canções, conhecido como Vier Letzte Líeder (Quatro Últimas Canções) e foram compostas por Richard Strauss no final da vida, em 1947.
Não tendo sido pensadas como um ciclo coerente, desde a sua publicação são usualmente cantadas como tal.

Matéria de paixão para quem as conhece, e na minha discoteca conto uma dúzia de interpretações, nelas se percorre musicalmente uma espécie de ciclo vital desde a alegria primaveril ao repouso final.

Dos quatro poemas cantados, três são de Hermann Hesse (Beim Schlafengehen – Indo Dormir; September – Setembro; Frühling – Primavera) sendo o quarto poema de Joseph von Eichendorff (Im Abendrot – Ao Anoitecer).

Termino com uma ligação YouTube onde as canções podem ser ouvidas na voz de Elizabeth Schwarzkopf (segunda gravação), a qual é, para muitos, a melhor interpretação de sempre destas canções.

A ordem porque as canções são cantadas é a seguinte:

Frühling

September

Beim Schlafengehen

Im Abendrot

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Share on Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

Pintura de David Hockney lida poeticamente por Ana Hatherly

13 Domingo Jan 2013

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Poetas e Poemas

≈ Deixe um comentário

Etiquetas

Ana Hatherly, David Hockney

Hockney_David-A_Bigger_SplashEmbora sejam até frequentes os poemas escritos a pretexto de pinturas, os poemas que hoje me ocupam têm na ligação poesia-pintura matéria de reflexão adicional. Trata-se de pinturas de David Hockney (1937) e de uma reflexão poética de Ana Hatherly (1929) sobre elas, tanto mais relevante quanto Ana Hatherly é uma notável artista plástica.

É na suposta fidelidade ao real que estas pinturas procuram, que Ana Hatherly se detém:

Porque o real / que esta pintura pinta / e que ele quer que se sinta / é um real que se mente

Nesta reflexão poética em torno da verdade da arte e do real que mente, ou do contrario disto, é a representação das palmeiras a evidência desta dicotomia:

como as magras palmeiras / postas ali para o olhar subir / um pouco / para o longe / para um céu azul que não existe / a não ser como ameaça / latente / na cruel esterilidade / dum real que não mente

Sendo uma pintura de inegável apelo visual na simplicidade da sua geometria e no equilíbrio do colorido, ganhou a dimensão icónica de um mundo que o cinema nos anos sessenta glosou como triunfo da modernidade.

Hoje não nos importa O que esta pintura quer tornar patente. Sabemos já, depois da crise de 2008 que este mundo acabou. Podemos olhá-la como oásis de sonhos perdidos.

Sobre “A Bigger Splash” de David Hockney

É uma tela de 2,44×2,44m
em que o real imaginado
está devidamente enquadrado

Tudo seria plano
como planeado
se não houvesse o splash
a perturbação que anima
a placidez geométrica do fotograma
do freeze-frame
que esta pintura muda
quer ser
e afinal não é

Porque o real
que esta pintura pinta
e que ele quer que se sinta
é um real que se mente
nesta pintura rente

É uma pintura que por nós entra
fina e quase débil
como as magras palmeiras
postas ali para o olhar subir
um pouco
para o longe
para um céu azul que não existe
a não ser como ameaça
latente
na cruel esterilidade
dum real que não mente

O que esta pintura quer tornar patente
não interessa:
É preciso desconfiar des imagens
diz o próprio artista
e num quadro
o sentido vem de toda a parte

E acrescenta:
Amanhã o público
vai querer outra coisa
além do que eu vi

Mas o que é a arte
senão artificio da verdade?

O problema é que
os filósofos modernos
segundo ele
brincaram demais
com a máquina fotográfica

Continua Ana Hatherly a sua reflexão poética pela pintura de David Hockney tomando as palmeiras como pretexto na ironia demolidora com que comenta estas pinturas:

as palmeiras surgem / nos quadros de Hockney / como esguios / inativos espanadores

Hockney_David-A_Lawn_Being_Sprinkled

As Palmeiras de Hockney

Outrora
a palmeira queria dizer
imortalidade
triunfo
e às vezes martírio

Agora
as palmeiras surgem
nos quadros de Hockney
como esguios
inativos espanadores

Agora
a poeira
transformada em chuva ácida
inutiliza
a diligência
das meneantes palmas

E o azul das piscinas
transformado
em estático caleidoscópio
tornou-se um sal vítreo
onde os corpos se partem

Hockney_David-Portrait_of_Nick_Wilder

É a subversão da natureza posta ao serviço da estética naquelas palmeiras de brincar, o que parece desencadear a ironia de Ana Hatherly nesta diatribe contra o real representado. No entanto, são pinturas que na sua opção de classe nos interrogam de múltiplas formas sobre a nossa civilização urbana.

Os poemas foram publicados no livro Itinerários, edição quasi, 2003

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Share on Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

Visitas ao Blog

  • 1.743.948 hits

Introduza o seu endereço de email para seguir este blog. Receberá notificação de novos artigos por email.

Junte-se a 854 outros seguidores

Página inicial

  • Ir para a Página Inicial

Posts + populares

  • A depressão contada num poema do século XVI
  • Eugénio de Andrade — Green god
  • Vozes dos Animais - poema de Pedro Diniz

Artigos Recentes

  • Sonetos atribuíveis ao Infante D. Luís
  • Oh doce noite! Oh cama venturosa!— Anónimo espanhol do siglo de oro
  • Um poema de Salvador Espriu

Arquivos

Categorias

Site no WordPress.com.

Cancelar

 
A carregar comentários...
Comentário
    ×
    loading Cancelar
    O artigo não foi enviado - por favor verifique os seus endereços de email!
    A verificação do email falhou, tente de novamente
    Lamentamos, mas o seu site não pode partilhar artigos por email.
    %d bloggers like this: