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Sentado numa esplanada, e nas minhas costas, duas mulheres a quem há muito os quarenta anos tinham dito adeus, conversavam.
Uma, pragmática, argumentava com a razão as vantagens de um compromisso da outra com alguém que ambas conheciam. A certa altura a visada, responde nostálgica e com um grão de tremura na voz:
– Não querida, ainda estou à espera do príncipe encantado!
É bom esperar principes ou princesas encantadas toda a vida.
Há alguns anos, quando deparei na livraria com o título de um novo livro de Ana Hatherly (1929) – A NEO-PENÉLOPE, pensei: quase aos oitenta anos e ainda à espera do regresso do amor/Ulisses, vagabundo de outras camas/Calíopes que pelo mundo há.
Há tempos, conversa que traz conversa, veio o livro à baila, e de regresso a casa, lá fui. A ironia feroz que perpassa por tanta da poesia de Ana Hatherly, de alguma forma contrastando com um cativante feminino na sua obra plástica, parece neste livro ter virado desalento onde, no entanto, a espaços, um sopro irónico ainda surge.
É claro que o poeta atento ao mundo que nos anos 60 escreveu BALADA DO PAÍS QUE FOI, CALADO ou EPÍSTOLA DE UM EMIGRANTE, entre outros, não anda distraído. Os tempos são outros, a vida também, mas a atenção ao real lá está. Passadas as querelas de escola, fica a eterna e inacabada busca sobre o amor. E esta poesia, agora, é mais a visão do sage que tanta vida viveu, e nos conta em poemas como neste SEM AMOR, ou no seguinte, CARTA DE AMOR INFORMÁTICO, o papel do amor na vida de cada um.
SEM AMOR
Viver sem amor
É como não ter para onde ir
Em nenhum lugar
Encontrar casa ou mundo
É contemplar o não-acontecer
O lugar onde tudo já não é
Onde tudo se transforma
No recinto
De onde tudo se mudou
Sem amor andamos errantes
De nós mesmos desconhecidos
Descobrimos que nunca se tem ninguém
Além de nós próprios
E nem isso se tem
CARTA DE AMOR INFORMÁTICO
Penetraste no meu coração
Como um virus no meu computador
Vindo de lado nenhum
Ofereces-me agora
O vazio da não opção
Estragaste-me o real
Obrigaste-me a reinventá-lo:
Para quê?
Agora estás
No meu cemitério de textos
Já não te posso reencaminhar
Arquivei-te no lixo da memória
Do meu Pentium IV
Que aliás já vendi
Troquei-o por um lap top
Mais leve
Mais portátil
Mais facilmente descartável
Prossigo no livro e com que desencanto ela nos fala da mulher hoje, em poemas como A NEO-PENÉLOPE, A CAMPEÃ DAS GATAS, ou este ELA – AGORA
Não menos que Helena bela
Ela senta-se à janela
Porém não à janela mas às janelas
Do computador
Que abrem portas que são redes
Páginas que são sítios
Avenidas que são ermos
Que agora percorremos
Já sem voz
Cada vez mais sós
Tanta profusão
Atira-nos
Para um lixo que nos deita fora
Embora na desolada solidão Que agora percorremos / Já sem voz / Cada vez mais sós, desta vida com internet, há ainda lugar para os ecos de eros, não já EROS FRENÉTICO mas ainda assim EROS em A VIDA DO MEU CORPO – A atenção ao corpo / É um vínculo selvático
A vida do meu corpo
É toda uma lição
Fechada folha em acto
A seu respeito
Continuam as perguntas
Por exemplo:
Quando é que Adão e Eva
Primeiro se encontraram?
Qual foi a hora
Do fatídico acto?
No paraíso
O tempo despenha-se
Numa corrente acrónica
Ah!
Apressa o teu passo
Fortuito acaso
A atenção ao corpo
É um vínculo selvático
Mas há mais, há ainda a mulher-menina a quem Alice em tempos seduziu: contínua é a minha partida / Para o regresso / O espelho que eu cruzo / tem dupla face / Nunca me indica / qual lado ultrapasse., e eis que Alice regressa.
Agora, numa forma magoada, instala-a Ana Hatherly NO PAÍS DOS ANÕES
…
Alice é
A filha inventada
De um pai fingido.
Ele queria que ela fosse
A chave
Que abre a porta
Do paraiso sonhado
Onde a felicidade
Devia morar
Mas já não mora.
…
Para o final em jeito de memória, a estudiosa apaixonada do barroco brinda-nos com 4 SÁTIRAS BARROCAS escondidas entre desencantos de amor qual seja a primeira
SÁTIRA BARROCA I – O PRAZER DOS CASAIS
Os mesclados jogos esponsais
Lugar obrigatório de cristais
Decorrem de proximidades desiguais
Infamantes sombrias mas legais
As exigências intensas conjugais
Perluzem pelos preitos maritais
Repercussões: efeitos sociais
Repartição de legados essenciais
Injunções recalques preceituais
A familia é o prazer dos casais
Termina o livro com O CRONISTA SOCIAL
O tribuneiro cronista social
Atinge a plenitude laboral
Ao expor dos estros dominantes
Os seus sucessos
Desporto de gigantes.
Olhando só de longe
Mas a fundo
Cobiça a sua galhardia
E do intenso gasto de energia
Cai depois numa profunda nostalgia.
Sempre quer
Mas não consegue
Nem subir mais nem sequer rir
E à noite
Com uma insónia enorme
Não deixa dormir
Nem dorme.
Edição &etc, Lisboa, 2007, e como costume da editora, edição única.
Composto e paginado por Olímpio Ferreira, tem na capa um belíssimo desenho da autora.
Nota final: O título do artigo é uma frase de Ana Hatherly com que esta encerra uma entrevista a Ana Vasconcelos e Melo a propósito de uma sua exposição de desenhos, colagens e papeis pintados realizada em Paris em 2005.
Artigo publicado aqui no blog em Nov de 2010, agora ligeiramente retocado e trazido à luz para os novos leitores.