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Eyck_Jan_van-St_JeromeSabem os leitores do blog como me encanta muita da poesia de Ana Hatherly (1929). Hoje, é ao segundo livro de poesia da artista, As Aparências, publicado em 1959, que vou buscar duas exemplares reflexões: uma sobre o sonho — É a medida sem comparação, — , outra sobre o tempo — O tempo é um passo / Que em seu próprio espaço / Cabe.

Neste livro lemos uma intensa reflexão sobre a necessidade do sonho nas nossas vidas a pretexto das aventuras do personagem Alice no País das MaravilhasDepressa, depressa, / As minhas asas, o meu fato de sonhar, —.

III
O sonho é a ponte
Que vai do infinito ao infinito,
É a medida sem comparação,
É a presença do que se imagina.

Sonhar talvez só seja
Reconhecer o que já nem a alma sinta
Nem o próprio pensamento veja.

E nesta espécie de viagem ao País da Alice onde o tempo sonhado — Era o tempo do amor — acontece surgirem-nos estes dois poemas:

Oh, que curioso sonho eu tive

I

Íamos todos alegres e tranquilos
Pelo caminho que era o rórido bem.
Os pares de olhos dados
Sorrindo encantamentos,
Elevavam a verdade
A cor dos sentimentos.
Nem ânsia nem receios
Havia como enleios
— Da desunião a dor
Nem presença nem memória —

Era o tempo do amor
Era a vitória

III

Propus ao meu destino
Um jogo com aposta.
Os dados que ele usasse
A mim pertenceriam,
As regras que impusesse
A ambos dirigiam.
A partida era leal
E a vitoria a ambos conviria:
— Aquele que ganhasse
Ao outro mais servia…

A parada que se oferecia,
Era a realidade
Da minha fantasia.

Sonhar é possível mas o tempo — É a flecha / Desferida do arco de toda a invenção. — se encarrega de lhe pôr o fim. E neste sonhopoema com que o livro acaba, o tempo conta-se assim.

FIM

O tempo é um passo
Que em seu próprio espaço
Cabe.

Com ele partimos
E nele regressamos
Cumprindo o indirecto plano
Da reintegração:

É a flecha
Desferida do arco de toda a invenção.

Nota

No livro Poesia 1958-1978, onde reuniu a sua poesia publicada até então, a autora aproveitou de As Aparências apenas 8 dos 36 poemas que compõem o livro. É uma pena pois o livro é hoje uma raridade bibliográfica e na sua unidade ganha um valor acrescido que justificava não o abandonar.