Etiquetas

,

Hockney_David-A_Bigger_SplashEmbora sejam até frequentes os poemas escritos a pretexto de pinturas, os poemas que hoje me ocupam têm na ligação poesia-pintura matéria de reflexão adicional. Trata-se de pinturas de David Hockney (1937) e de uma reflexão poética de Ana Hatherly (1929) sobre elas, tanto mais relevante quanto Ana Hatherly é uma notável artista plástica.

É na suposta fidelidade ao real que estas pinturas procuram, que Ana Hatherly se detém:

Porque o real / que esta pintura pinta / e que ele quer que se sinta / é um real que se mente

Nesta reflexão poética em torno da verdade da arte e do real que mente, ou do contrario disto, é a representação das palmeiras a evidência desta dicotomia:

como as magras palmeiras / postas ali para o olhar subir / um pouco / para o longe / para um céu azul que não existe / a não ser como ameaça / latente / na cruel esterilidade / dum real que não mente

Sendo uma pintura de inegável apelo visual na simplicidade da sua geometria e no equilíbrio do colorido, ganhou a dimensão icónica de um mundo que o cinema nos anos sessenta glosou como triunfo da modernidade.

Hoje não nos importa O que esta pintura quer tornar patente. Sabemos já, depois da crise de 2008 que este mundo acabou. Podemos olhá-la como oásis de sonhos perdidos.

Sobre “A Bigger Splash” de David Hockney

É uma tela de 2,44×2,44m
em que o real imaginado
está devidamente enquadrado

Tudo seria plano
como planeado
se não houvesse o splash
a perturbação que anima
a placidez geométrica do fotograma
do freeze-frame
que esta pintura muda
quer ser
e afinal não é

Porque o real
que esta pintura pinta
e que ele quer que se sinta
é um real que se mente
nesta pintura rente

É uma pintura que por nós entra
fina e quase débil
como as magras palmeiras
postas ali para o olhar subir
um pouco
para o longe
para um céu azul que não existe
a não ser como ameaça
latente
na cruel esterilidade
dum real que não mente

O que esta pintura quer tornar patente
não interessa:
É preciso desconfiar des imagens
diz o próprio artista
e num quadro
o sentido vem de toda a parte

E acrescenta:
Amanhã o público
vai querer outra coisa
além do que eu vi

Mas o que é a arte
senão artificio da verdade?

O problema é que
os filósofos modernos
segundo ele
brincaram demais
com a máquina fotográfica

Continua Ana Hatherly a sua reflexão poética pela pintura de David Hockney tomando as palmeiras como pretexto na ironia demolidora com que comenta estas pinturas:

as palmeiras surgem / nos quadros de Hockney / como esguios / inativos espanadores

Hockney_David-A_Lawn_Being_Sprinkled

As Palmeiras de Hockney

Outrora
a palmeira queria dizer
imortalidade
triunfo
e às vezes martírio

Agora
as palmeiras surgem
nos quadros de Hockney
como esguios
inativos espanadores

Agora
a poeira
transformada em chuva ácida
inutiliza
a diligência
das meneantes palmas

E o azul das piscinas
transformado
em estático caleidoscópio
tornou-se um sal vítreo
onde os corpos se partem

Hockney_David-Portrait_of_Nick_Wilder

É a subversão da natureza posta ao serviço da estética naquelas palmeiras de brincar, o que parece desencadear a ironia de Ana Hatherly nesta diatribe contra o real representado. No entanto, são pinturas que na sua opção de classe nos interrogam de múltiplas formas sobre a nossa civilização urbana.

Os poemas foram publicados no livro Itinerários, edição quasi, 2003