Entre as tristezas e as alegrias do amor correm os sonetos de Domingos dos Reis Quita (1728-1770) que escolhi para, pelo mundo, alegrarem os corações dos que amam, na evidência que o sentimento é perene, e que perdido um, outro virá. Pergunta o poeta: Mas quem pode viver de amor isento[?]
Comecemos a viagem com o entusiasmo que, em alegoria, os amores de Marte e Vénus dão conta.
Encontra-se o nosso poeta empolgado na espera da noite e de um encontro amoroso, pois Entre sombras o dia luminoso / Já se desmaia, já se desfigura.
entusiasma-se uma vez que Já o feliz instante vem chegando, / Já me vejo nos braços da alegria, / Que estou há tantas horas suspirando.
A coisa corre, e afinal a noite passa num ápice: Mas ai, que já lá vem o claro dia!
Soneto XXXIII
Entre sombras o dia luminoso
Já se desmaia, já se desfigura.
Já vai por toda a terra a noite escura
Espalhando o descanso deleitoso.
Já não se escuta mais que o som gostoso
Desta sonora fonte que murmura.
E já vai pouco a pouco a mágoa dura
Fugindo deste coração saudoso.
Já o feliz instante vem chegando,
Já me vejo nos braços da alegria,
Que estou há tantas horas suspirando.
Agora zombarei da tirania,
Do martírio que estive suportando:
Mas ai, que já lá vem o claro dia!
Não terá sido este amor eterno, e veremos a seguir o poeta em angustiosos tormentos, semelhando tenebroso inverno a que os compara. Mas, se no suceder das estações ao rigor invernal sucederá o esplendor da primavera, para as suas lágrimas não vê consolo:
Tudo de triste passa a ser contente, / Só nos meus olhos nunca têm desvio / As lágrimas que choro tristemente.
como nos conta no Soneto XXIV que segue.
Soneto XXIV
Tudo cheio de horror e sentimento,
Mostra o rigor do inverno congelado.
O ar de densas nuvens carregado,
Furiosas, desatando chuva e vento.
Despojada do verde luzimento
Se vê toda a campina deste prado;
O rio corre turvo, e despenhado;
Tudo parece igual a meu tormento!
Mas passado o rigor do inverno frio,
O nublado ar se vê resplandecente,
Florece o campo, e claro corre o rio.
Tudo de triste passa a ser contente,
Só nos meus olhos nunca têm desvio
As lágrimas que choro tristemente.
E é no meio de todo este imenso desgosto que o homem, passeando, medita, e como tantos de nós, olhando o mar espera encontrar alivio:
Os olhos pelas águas estendia, / Porque alívio a seu mal nelas buscava,
e nestes belos versos, Em lágrimas banhado assim dizia:
Os suspiros, as lágrimas que choro / Levai, ondas, levai, ligeiro vento, / Para onde me levastes quem adoro.
Soneto XXXIII
Ao longo de uma praia um triste dia,
Já quando a luz do sol se desmaiava,
O saudoso Alcino caminhava
Com seus cuidados só por companhia.
Os olhos pelas águas estendia,
Porque alívio a seu mal nelas buscava,
E entre os tristes suspiros que exalava,
Em lágrimas banhado assim dizia:
Os suspiros, as lágrimas que choro
Levai, ondas, levai, ligeiro vento,
Para onde me levastes quem adoro.
Oh, se podeis ter dó do meu tormento,
Que me torneis o bem, só vos imploro,
Que pusestes em longo apartamento*.
*[afastamento]
Continuemos com estas emoções do coração, espalhadas por suaves versos, mas agora noutro registo.
Inveja o nosso poeta no Soneto LIX o amigo que, no abrigo da cabana, goza delícias de amor e mesa, e para si tão só e sempre esperanças que Ligeiras folhas são, que o vento leva.
Soneto LIX
Em sonoros chuveiros desatado
Desça o frígido inverno tormentoso.
Que Aristo satisfeito, e venturoso,
Descansa em tecto rústico abrigado.
Alegre come o novo grão dourado,
De seu trabalho fruto deleitoso.
Vê no curvo tonel ferver cheiroso
O roxo mosto a Baco consagrado.
Só tu, mísero Alcino, nada alcanças:
Em teu rebanho o lobo o dente ceva,
E debaixo do colmo não descansas.
Mas cerca-te da forte e escura treva
Sempre o fruto de tuas esperanças:
Ligeiras folhas são, que o vento leva.
Embrulhado em nova paixão, clama agora o poeta por uma Márcia que lhe fugiu. De caminho reflete como o amor apenas conduz à dor, neste Soneto LXVI: [Amor] São estes os teus bosques consagrados / Onde só vejo peitos lacerados, / Corações em extremas agonias?
Soneto LXVI
Aonde, amor cruel, aonde me guias?
São estes os teus bosques consagrados
Onde só vejo peitos lacerados,
Corações em extremas agonias?
Só respondem as duras penedias
A míseros gemidos em vão dados;
Olhos formosos, rostos delicados
São ministros das tuas tiranias.
Já me rasgam o peito em mil pedaços:
Marcia me disparou acerbos tiros,
Lá vai fugindo com velozes passos.
Suspende, ó ninfa, os apressados giros,
Deixa cruel, ao menos, que em teus braços
Amintas lance os últimos suspiros.
Por mais que suspirar nos braços de Márcia o poeta deseje, se ela foge, outra aparece, pois, sabemos bem, sem uma Márcia nos braços não pode um homem viver:
quem pode viver de amor isento, / Vendo naquele rosto soberano /De tais olhos o doce movimento?
Por isso, no Soneto XX com que concluo esta viagem sentimental, aí o temos, de novo apaixonado:
Finalmente outra vez vejo perdida / Às mãos do amor, a doce liberdade
Soneto XX
Finalmente outra vez vejo perdida
Às mãos do amor, a doce liberdade
Que já livrei da sua crueldade
Como quem de um naufrágio salva a vida.
Já no meu coração nova ferida
Abrem os duros golpes da saudade;
E já vive outra vez minha vontade
De esperanças aéreas revestida.
Nunca cuidei que visse, amor tirano,
Tão depressa quebrado o juramento
Que fiz no puro altar do desengano.
Mas quem pode viver de amor isento,
Vendo naquele rosto soberano
De tais olhos o doce movimento?
Termino com o Soneto LXIX inspirado no episódio da Ilha dos Amores de Os Lusíadas.
No mundo de delícias e suspiros, que o amor permite e o desejo empolga, coloca o nosso poeta os marinheiros portugueses do Gama:
Na ilha das delícias aportavam / Já cansados, os lusos navegantes. / Os prazeres, as taças espumantes / Em magnífica mesa [as ninfas] preparavam.
No entanto Vasco da Gama ardendo em fogo, descarta os gestos convulsos [d]as bacantes / [que] Lascivos ditirambos alternavam.
pois, o herói, que de ardores se alimenta, / Sem que toque os vivificos manjares, / Só em Vénus os olhos apascenta.
Aí o têm, o soneto:
Soneto LXIX
Na ilha das delícias aportavam
Já cansados, os lusos navegantes.
Os prazeres, as taças espumantes
Em magnífica mesa preparavam.
Os amores de mirtos enramavam
Douradas serpentinas rutilantes,
E com os gestos convulsos as bacantes
Lascivos ditirambos alternavam.
Eis que o trovão do bronze rompe os ares,
O vitorioso Gama se apresenta
À bela deusa que nasceu dos mares.
Mas o herói, que de ardores se alimenta,
Sem que toque os vivificos manjares,
Só em Vénus os olhos apascenta.
Noticia bibliográfica
Os Sonetos foram transcritos do Tomo I da 2ªedição correcta e aumentada com as Obras Póstumas e Vida do Autor, Lisboa, na Tipografia Rollandiana, 1781.
Modernizei a ortografia e simplifiquei a pontuação.
Conservei Florece, em uso na época,em vez de Floresce, forma corrente hoje.
Nota sobre as imagens
Abre o artigo com o pormenor de uma pintura de Carlo Saraceni (1579-1620) a que se segue a pintura na totalidade. Pelo meio, o retrato da bela jovem foi desenhado por Charles-Joseph Natoire (1700-1777) e será presumivelmente contemporâneo do poeta. No final uma possivel imagem da deusa nascida dos mares (Vénus) onde o olhar de Vasco da Gama se apascenta…, pintada por Alexandre Cabanel (1823–1889).
Maravilhoso!
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