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Rubens_Rapto das filhas de LeucipoAAssistimos na arte barroca à representação do excesso. Surgem as pinturas em natureza-morta sobrecarregadas de géneros alimentares; pintam-se cenas de comezainas até ao entorpecimento, como as pintadas por Jan Steen (1626-1679) que há dias trouxe ao blog; o preciosismo e a sobrecarga de adereços no trajar de figurões socialmente importantes são mostrados em retratos hieráticos; e no nu temos as abundâncias carnais, de que as pinturas de Rubens (1577-1640) são o paradigma. Rubens earth-waterA1Para uma mulher  como Wisława Szymborska (1923-2012) em quem a parcimónia parece ser a marca de água, esta pintura não poderia deixar de impressionar, tanto mais quanto viveu o período central da sua vida na Polónia comunista onde a vida material correu entre dificuldades inenarráveis. E assim, num notável poema, Mulheres de Rubens, fala-nos ela de todo este excesso, exactamente a propósito das pinturas de nus femininos de Rubens. Não de uma representação em particular, mas de uma espécie de sobreposição carnal, de onde emerge o essencial da representação. Parte do poema desenvolve-se como comentário ao destino reservado a mulheres onde esta exuberância de carnes está ausente, e que a propria talvez tenha sentido com a sua figura fransina, ainda que as fotos mostrem um belo rosto de mulher.

rubens-1620ADeixo-vos com o poema em tradução de Julio Sousa Gomes e ao longo do artigo podem ver-se algumas dessas pinturas de excesso saídas do pincel de Rubens e seus ajudantes.

 rubens-1614-Venus_and_Adonis-ErmitazA

Mulheres de Rubens

Fauna mulheril de Arrasa-Montanhas,

nuas como um estrondo de barris.

Aninham-se em leitos amachucados,

dormem de bocas abertas como galos para cantar.

Fugiram-lhe as pupilas para as entranhas

e penetram no interior das glândulas,

cujos fermentos se espalham pelo sangue.

 

Filhas gradas do barroco. Cresce o bolo na masseira,

fumegam banhos, ruborescem vinhos,

leitões de neblina galopam no céu,

trompas estrondeiam num físico alarme.

 

Ó aboboradas, ó excessivas

e duplicadas pelo rejeitar das vestes,

e triplicadas pela pose truculenta,

ó gordas iguarias do amor!

 

As suas manas magras ergueram-se mais cedo

antes que no quadro a manhã clareasse.

E ninguém se deu conta da fila em que seguiram

pelo lado da tela por pintar.

 

Banidas do estilo. Costelas contadas,

natureza de ave nas nãos e nos pés.

Tentam erguer voo nas espáduas em quilha.

 

O século XIII dar-lhes-ia um fundo de ouro.

O século XX dar-lhes-ia ecrã de prata.

Em seiscentos não há nada para as chatas.

 

Eu diria até nédio o próprio céu,

nédios os anjos e nédia a divindade,

um bigodudo Febo que num suado

corcel vai penetrando na alcova ardente.

 Rubens_Peter_Paul-The_Three_GracesA1

Nota final

Para os leitores que os não conheçam, deixo os links para os artigos com pintura barroca de retrato, natureza-morta, e comezainas de Jan Steen.

Retrato barroco

Natureza-morta

Jan Steen

Rubens - Alegoria às bençãos da paz