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Entre mulheres e lugares correm os poemas do livro de Egito Gonçalves (1920-2001) E no entanto move-se, que hoje visito.
O livro, publicado em Lisboa em 1995 por Quetzal Editores, recebeu prestigiados prémios quando da publicação: Prémio de Poesia do Pen Clube, Prémio Eça de Queirós, Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores, e suponho, é hoje um livro esquecido. Se é o caso, é pena. São belos os poemas, há uma sinceridade que emociona, e por vezes, à pouca importância que o poeta a si se atribui subjaz uma cauta ironia que convida o leitor a continuar.
Abro com uma Love Story a contrario: relato desencantado do amor tão só como possibilidade, ou antes, de uma busca do amor que se perdeu nos mistérios da paixão que foge, como a todos tantas vezes acontece.
Love Story
Nunca encontrámos
o lugar onde o amor se forma.
Tentámos, aceitando os desencontros,
dançámos em torno,
arrepiámos uma breve carícia,
separámos-nos
sem descobrir o que haveria a descobrir,
o que haveria a atravessar:
uma montanha, um túnel,
ou mina ou arco
de uma ponte.
Agora contemplo uma cama
vazia
flutuando numa barragem
longe do lugar
que poderíamos ser.
Muitas coisas se partilharam,
as palavras não eram pedras,
o vento alguma vez
nos juntou os cabelos.
Nunca encontrámos
o lugar onde o amor se arma.
Foram pedaços de muita coisa:
quando os queria colar
sempre algum era arrastado pela chuva,
sempre algum se perdia em lençóis de sombra.
A imagem de cada um de nós
nunca foi suficiente
para criar no outro o relâmpago,
o pássaro ígneo, delirante.
Nunca encontrámos
o percurso das águas,
o lugar onde o amor se firma.
10.9.91
Continuo a viagem com o cruzamento da vida com poesia, numa ida ao supermercado, ocupação que bem conheço, e aqui de alguma forma revejo.
Supermercado
No seu aniversário
ela abriu uma lata de sidra
e comemorou a solidão
tornando a bebida ponto de partida
para um poema:
um presente que oferecia a si mesma.
O alimento tem muito a ver
com a poesia. No supermercado
havia hoje uma prateleira
de garrafas de sidra
e isso levou-me a pensar
naquela história antiga. Decidi
que o estômago também se encontra no poema
enquanto avançava com o carrinho
pelo meio da multidão
olhando de soslaio as pernas das mulheres
e de frente um salmão inteiro
que parecia acabado de sair da água.
Comprei-o para assar no forno,
distraindo-me assim de um labor
mais intelectual — afinal
a hora do meu próprio poema tinha passado
e os pensamentos insistiam em tropeçar
nas pernas das mulheres,
satisfeitos com a sua própria incoerência.
2.4.91
Mas, por mais que pernas dêem corda à imaginação,
Um rosto de mulher
é o meio que o coração encontra
para manter a sua sede.
Um chá, uma flor, uma paisagem,
uma romã aberta,
desaparecem na sombra
se não houver um rosto de permeio.
Não te queixes
do que supões ausência. Por agora
és tu que mantens o movimento.
Sem isso
nem o coração mais pulsaria.
Sábio conselho que não evita a solidão que um Inverno em Viena relata:
Inverno em Viena
Para me aquecer compro postais
(escreverei no aeroporto: a catedral,
um Klimt, um Egon Schiele…). Saio
novamente. A neve
domina a paisagem. Uma descida
lenta, flocos
cobrem no fim da rua o jardim público,
deserto, onde só dois corvos saltitam,
frenéticos,
bicando a neve. Começou
a levantar-se vento. Dou a volta
ao jardim. Regresso. A própria luz
treme de frio. Os dois corvos
continuam ali. Saltitam,
fazem pequenos furos
no colchão branco dos canteiros. Parece-me
o mais inútil dos trabalhos,
embora consciencioso! Mas
que sei eu de corvos? Viro
as costas ao vento. Começo
a tossir. Quatro agulhas de pinheiro
caem. Os corvos
esvoaçam.
5.9.91
Lê-se o livro e no final vem a pergunta: onde a poesia, onde a vida?
Elisabeta
Fiquei ao lado dela por acaso
e vi que me lançava o seu melhor sorriso
como se adivinhasse que eu era um português recém-liberto.
Tinha uns olhos lindos e rugas serenas
de mulher que moldou com segurança a própria vida
num mundo difícil e agressivo. Mais tarde
ofereceu-me um livro de poemas
que eu soube imediatamente serem bons
apesar da hostilidade dos caracteres cirílicos. Assinou
Sófia, Junho de 1977 — Elisabeta Bagriana.
Ao leitor que aqui chegou, terá talvez valido a pena a viagem, e por agora da poesia de Egito Gonçalves me despeço:
De ausência, o tempo sangra
num olhar líquido
mas a alegria não foi toda comida.
Resta ainda alguma
para escapar à morte, para
reinventar os dias. Vê no livro:
há-de haver receitas. Um vestido
estampado no ácido dos caminhos.
O coração bate sem pudor, lembra
gestos, caminhos que contornam
o abismo, desvios súbitos
para encontrar uma matriz.
Um nome que seja possível habitar
sobre um tapete que a alfândega
não descubra no imo do discurso.
Grata por esta “viagem” . Deliciei-me.
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Obrigado uma vez mais e até breve.
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