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Cailleboute Rua de Paris 1877São parte do quotidiano de todos nós as reflexões sobre o estado do tempo, assunto neutro de comunicação social, sem outra consequência que a troca de algumas palavras em encontros de circunstância. A poucos é pretexto poético que valha a leitura. Não assim a este TRAPO:

Dêem-me o céu azul e o sol visível. / Névoa, chuvas, escuros — isso tenho eu em mim.

poema de Álvaro de Campos, entre os poucos que Fernando Pessoa publicou em vida.

Trapo

    O dia deu em chuvoso.
    A manhã, contudo, esteve bastante azul.
    O dia deu em chuvoso.
    Desde manhã eu estava um pouco triste.
    Antecipação!  Tristeza?  Coisa nenhuma?
    Não sei: já ao acordar estava triste.
    O dia deu em chuvoso.

    Bem sei, a penumbra da chuva é elegante.
    Bem sei: o sol oprime, por ser tão ordinário, um elegante.
    Bem sei: ser susceptível às mudanças de luz não é elegante.
    Mas quem disse ao sol ou aos outros que eu quero ser elegante?
    Dêem-me o céu azul e o sol visível.
    Névoa, chuvas, escuros — isso tenho eu em mim.
    Hoje quero só sossego.
    Até amaria o lar, desde que o não tivesse.
    Chego a ter sono de vontade de ter sossego.
    Não exageremos!
    Tenho efectivamente sono, sem explicação.
    O dia deu em chuvoso.

    Carinhos?  Afectos?  São memórias…
    É preciso ser-se criança para os ter…
    Minha madrugada perdida, meu céu azul verdadeiro!
    O dia deu em chuvoso.

    Boca bonita da filha do caseiro,
    Polpa de fruta de um coração por comer…
    Quando foi isso?  Não sei…
    No azul da manhã…

    O dia deu em chuvoso.

    10-09-1930

    Poema publicado na Revista Presença, Nº31-32, Março-Junho, 1931