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São parte do quotidiano de todos nós as reflexões sobre o estado do tempo, assunto neutro de comunicação social, sem outra consequência que a troca de algumas palavras em encontros de circunstância. A poucos é pretexto poético que valha a leitura. Não assim a este TRAPO:
Dêem-me o céu azul e o sol visível. / Névoa, chuvas, escuros — isso tenho eu em mim.
poema de Álvaro de Campos, entre os poucos que Fernando Pessoa publicou em vida.
Trapo
O dia deu em chuvoso.
A manhã, contudo, esteve bastante azul.
O dia deu em chuvoso.
Desde manhã eu estava um pouco triste.
Antecipação! Tristeza? Coisa nenhuma?
Não sei: já ao acordar estava triste.
O dia deu em chuvoso.
Bem sei, a penumbra da chuva é elegante.
Bem sei: o sol oprime, por ser tão ordinário, um elegante.
Bem sei: ser susceptível às mudanças de luz não é elegante.
Mas quem disse ao sol ou aos outros que eu quero ser elegante?
Dêem-me o céu azul e o sol visível.
Névoa, chuvas, escuros — isso tenho eu em mim.
Hoje quero só sossego.
Até amaria o lar, desde que o não tivesse.
Chego a ter sono de vontade de ter sossego.
Não exageremos!
Tenho efectivamente sono, sem explicação.
O dia deu em chuvoso.
Carinhos? Afectos? São memórias…
É preciso ser-se criança para os ter…
Minha madrugada perdida, meu céu azul verdadeiro!
O dia deu em chuvoso.
Boca bonita da filha do caseiro,
Polpa de fruta de um coração por comer…
Quando foi isso? Não sei…
No azul da manhã…
O dia deu em chuvoso.
10-09-1930
Poema publicado na Revista Presença, Nº31-32, Março-Junho, 1931