Alguns poemas encontram na musica a forma de chegar ao coração dos homens. Um deles, Les Feuilles Mortes de Jacques Prévert, companhia inseparável do meu cancioneiro, aqui recordo na voz de Juliette Greco, incluindo uma tradução literal que arrisco, uma vez que o desconhecimento do francês é hoje generalizado.
Les Feuilles Mortes na voz de Juliette Greco
” Les Feuilles Mortes “
Jacques Prévert – 1945
Oh ! je voudrais tant que tu te souviennes/Oh! queria tanto que te recordasses
Des jours heureux où nous étions amis./dos dias felizes quando éramos amigos.
En ce temps-là la vie était plus belle,/Nesse tempo a vida era mais bela,
Et le soleil plus brûlant qu’aujourd’hui./ e o sol mais brilhante que hoje.
Les feuilles mortes se ramassent à la pelle./As folhas mortas agarram-se à pá.
Tu vois, je n’ai pas oublié…/Vês, não esqueci…
Les feuilles mortes se ramassent à la pelle,/ As folhas mortas agarram-se à pá,
Les souvenirs et les regrets aussi/as recordações e os remorsos também
Et le vent du nord les emporte/e o vento norte norte transporta-os
Dans la nuit froide de l’oubli./na noite fria do esquecimento.
Tu vois, je n’ai pas oublié/ Vês, não esqueci
La chanson que tu me chantais./a canção que tu me cantavas.
[Refrain:]
C’est une chanson qui nous ressemble./É uma canção que nos semelha.
Toi, tu m’aimais et je t’aimais/ Tu, tu me amavas e eu te amava
Et nous vivions tous deux ensemble,/e viviamos os dois juntos,
Toi qui m’aimais, moi qui t’aimais./ tu que me amavas, eu que te amava.
Mais la vie sépare ceux qui s’aiment,/Mas a vida separa os que se amam,
Tout doucement, sans faire de bruit/docemente, sem fazer ruido
Et la mer efface sur le sable/e o mar apaga na areia
Les pas des amants désunis./os passos dos amantes desunidos.
Les feuilles mortes se ramassent à la pelle,/ as folhas mortas agarram-se à pá,
Les souvenirs et les regrets aussi/ as recordações e os remorsos também
Mais mon amour silencieux et fidèle/mas o meu amor silencioso e fiel
Sourit toujours et remercie la vie./continua a sorrir e agradece à vida.
Je t’aimais tant, tu étais si jolie./Amava-te tanto, eras tão bonita.
Comment veux-tu que je t’oublie ?/Como queres que te esqueça?
En ce temps-là, la vie était plus belle/ Nesse tempo, a vida era mais bela
Et le soleil plus brûlant qu’aujourd’hui./e o sol mais ardente que hoje.
Tu étais ma plus douce amie/ Eras a minha mais doce amiga
Mais je n’ai que faire des regrets/mas não tenho senão que lamentar
Et la chanson que tu chantais,/e a canção que cantavas,
Toujours, toujours je l’entendrai !/sempre, sempre a ouvirei!
Poema todo ele de melancolia, em que o outono dos amores e da vida se cruza com as folhas caídas, e o vento norte nos transporta pela noite fria do esquecimento, ouvir este Les Feuilles Mortes na voz de Juliette Greco é uma emoção repetidamente saboreada. Tanta vida naquela voz.
Voz que noutra canção nos guia nos segredos dos preliminares do amor, ao cantar Desabillez-moi.
Desabillez-moi na voz de Juliette Greco
Sendo uma canção que toda a vida a artista cantou, quando jovem há uma veemência que bem passados os oitenta (nasceu em 1927), tem o sabor dos vinhos amadurecidos com o tempo.
No final de 2009, quando se apresentou no CCB, arriscou cantar esta canção. Antes teve o cuidado de alertar a audiência para a consciência que tinha da estranheza de interpretar semelhante canção nesta idade da vida.
Foi um dos momentos mais comoventes do concerto, sentir aquela audiência quase toda formada por gente a quem há muito a juventude escapou, vibrar num frémito de recordação de prazeres talvez perdidos, ou apenas sonhados.
É a voz o veículo destas emoções, e quando não envelhece, a experiência torna-a na evidência do sublime.
Na memória desse concerto escrevi este relato
Deshabillez-moi
C’est la belle Juliette qui chante.
Ouvimos, olhamos, e não nos libertamos mais.
Canta-nos na cabeça no mais inesperado dos momentos.
Os olhos, do tamanho do mundo, revelam os mistérios do amor.
O gesto,
o braço levantado,
a figura de negro até aos pés
transporta mais erotismo que uma striper em palco.
A voz, talvez rouca,
desencadeia tempestades
onde a razão se perde
E vamos ao fundo do abismo para a não perder.
Depois canta “j’arrive”
e é a morte que nos visita
Na dor da despedida e da perda.
O teatro da voz é mais verdadeiro que a vida.
Façamos agora uma pequena volta por quase 50 anos de interpretações felizmente conservadas, pour notre bonheur, com um pequeno grupo de canções com Paris em fundo e um perfume de acordeon, num balanço reminiscente de bal musette, que estiveram na origem do mito da boémia parisiense de final dos anos 50 e anos 60.
Paris-Canaille na voz de Juliette Greco
Sous le ciel de Paris na voz de Juliette Greco
Il n’y a plus d’après na voz de Juliette Greco
Accordeon na voz de Juliette Greco
Tenha valido a pena o passeio, espero.
Nota: A fotogravura de Juliette Greco que ilustra o artigo é de Erwin Blumenfeld, 1951.
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