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Tag Archives: Manuel Alegre

Manuel Alegre — Que somos nós senão o que fazemos?

09 Terça-feira Abr 2019

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa do sec. XX

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Manuel Alegre

No passado próximo deixei uma interrogação e convite à meditação do eu interior com uma Oração à Alma de Gregório de Naziano. Hoje venho com uma diferente interrogação por Manuel Alegre (1936): Que somos nós senão o que fazemos?
O soneto Que somos nós dá a resposta do poeta:

…
Que serei eu senão só o que faço
e é tão pouco no tempo em que não temos

para viver senão o tempo de
transformar neste tempo e neste espaço
a vida em que não somos mais do que

o sol do que fazemos. …

 

 

O soneto foi publicado em 1970. Não sei se hoje, passados quase cinquenta anos de vida a resposta do poeta continua a ser a dada no poema, de que o homem ou é acção, ou não é.

 

Entendo que somos mais que acção. Agir é tantas vezes errar. Agir sem a vigilância da reflexão sobre o que se faz e suas consequências pode ser historicamente marcante mas quantas vezes, se não tivesse acontecido, não seria melhor.
Vejamos o que nos diz o imperador Marco Aurélio (121-180) num dos seus Pensamentos:

 

Tudo o que sou não passa disto: um pouco de carne que respira e o norte da razão que nos dirige. …
Marco Aurélio, Pensamentos, Liv. II, 2.

 

Ser homem é pensar sempre e a cada momento as consequências da sua acção. Se como escrevi no artigo antes referido, mesmo quando não escolhemos estamos a decidir não escolher, agir ou não agir que seja sempre consequência de escolher, e não irreflectido impulso, para que o rasto que deixemos na terra tenha servido de alguma forma o bem.

 

Antes de o deixar, leitor, com o poema, regresso a um dos pensamentos de Marco Aurélio:

 

Experimenta como te prova por seu turno a vida do homem de bem que aceita com gosto a parte que lhe toca no conjunto e se contenta, pelo que lhe depende, com praticar a justiça e permanecer em disposição benevolente.
Liv. IV, 25.

 

 

Poema

 

Que somos nós

Que somos nós senão o que fazemos?
Que somos nós senão o breve traço
da vida que deixamos passo a passo
e é já sombra de sombra onde morremos?

Que somos nós se não permanecemos
no por nós transformado neste espaço?
Que serei eu senão só o que faço
e é tão pouco no tempo em que não temos

para viver senão o tempo de
transformar neste tempo e neste espaço
a vida em que não somos mais do que

o sol do que fazemos. Porque o mais
é sombra de sombra e o breve traço
de quem passamos para nunca mais.

 

in O Canto e as Armas, inédito na 2.ª edição, 1970
Transcrito de Obra Poética, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1999.
Traduções de Marco Aurélio por João Maia. Pensamentos, Relógio D’Água Editores, Lisboa, 1995.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Fernand Léger (1881-1955), Os Construtores da colecção do Museu Fernand Léger de França.

 

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Esta crise é uma grande crise!… e poemas de Manuel Alegre

09 Domingo Maio 2010

Posted by viciodapoesia in Crónicas

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Manuel Alegre

Passou o 25 de Abril, passou o 1º de Maio, passou o Dia da Mãe, temos o Papa à porta e o silencio no blog permaneceu. Devo uma explicação aos fiéis e desconhecidos leitores que perseverantemente voltaram ao blog de forma insistente neste longo período.

O que inicialmente foi uma brincadeira com constipação até à metafísica cresceu bem para lá de qualquer faculdade de julgar levando-me a febre ao delírio onde acabei por me perder em conjecturas e refutações, para afinal concluir que é à medida que a vida corre que percebemos como ela é uma busca inacabada.

Aqui chegados instala-se a dúvida, já nem metódica, mas sistemática, e acabamos por tomar decisões apenas com a certeza do incerto.

Como se compreende, com tamanha barafunda, a poesia, que é sobretudo matéria do sonho, ficou sem espaço enquanto circulei por este país da lógica, apesar de a certa altura um poeta ter anunciado, sem poesia, como resolver a crise. Tenho para mim que a crise não se vence com poetas nem sobretudo com poesia, porque a poesia não vence nada, a não ser o desanimo, devolvendo ás vezes o gosto de estar vivo.

Mas esta crise é uma grande crise, toda a gente o diz! Têm certamente razão. Muita gente a dizer a mesma coisa transforma qualquer fantasia em convicção profunda. Não fora assim e não haveria religiões. Mas a religião da crise é outra. É a do dinheirinho. Dinheirinho para cá, dinheirinho para lá, dinheirinho que não há. E afinal a poesia mete-se nela na forma de um poeta-candidato com a palavra certa no estrondo da voz.

PRESENÇAS

Eles estão por dentro. Nas

palavras

e nos actos.


Nas cadeiras

nas gavetas

nos cabides e nos fatos.


Quando menos se espera

fogem

dos retratos.


Tem cuidado quando te calças

eles podem esconder-se

nos sapatos.


Na sopa e na maçã

quem sabe se

no vinho.


Vê bem por onde vais

eles gostam das curvas

do caminho.


Na cama onde te deitas

nas camisas

e nas meias


no lençol com que te enxugas

no remédio que tomas para

desentupir as veias


no garfo sobre a mesa

nos copos

e nos pratos


eles estão por dentro e estão por fora.

Podes crer que nunca ficam

nos retratos.


O BURACO DA AGULHA

Vou de camelo pelo buraco de uma agulha

vou de camelo e não encontro o reino.


A porta é estreita mas os ricos

estão a comprar passagem e estão a entrar.


Vou de camelo pela oferta e a procura

e há quem pense que o céu também tem preço.


Tens de vir outra vez para dizer

que não pode servir-se a dois senhores.


Vou de camelo pela porta estreita

vou de camelo e não consigo entrar.


Tens de vir outra vez que os fariseus

não nos deixam passar não nos deixam passar.


UM PERFUME DE NARDO

Em verdade te digo: Não

espero a eternidade. E sei

que nenhum verso vence a morte.


Procuro apenas um sinal

um ritmo que me restitua

a imperceptivel respiração da terra.


Talvez os cabelos de Maria

irmã de Marta

a enxugar-me os pés.


Porque todos os poemas são mortais

e o que fica é talvez

um perfume de nardo. E nada mais.

Seguimos nesta escolha, primeiro, a visão poética da percepção do incompreensível na realidade, seguida de um apelo à justiça de Deus e terminando com a interrogação do poeta sobre o seu lugar no mundo.

Ficaria a selecção incompleta sem o tema central das escolhas deste blog – o amor e o corpo.

NÃO SEI DE AMOR SENÃO

Não sei de amor senão o amor perdido

o amor que só se tem de nunca o ter

procuro em cada corpo o nunca tido

e é esse que não pára de doer.

Não sei de amor senão o amor ferido

de tanto te encontrar e te perder.


Não sei de amor senão o não ter tido

teu corpo que não cesso de perder

nem de outro modo sei se tem sentido

este amor que só vive de não ter

o teu corpo que é meu porque perdido

não sei de amor senão esse doer.


Não sei de amor senão esse perder

teu corpo tão sem ti e nunca tido

para sempre só meu de nunca o ter

teu corpo que me doi no corpo ferido

onde não deixou nunca de doer

não sei de amor senão o amor perdido.


Não sei de amor senão o sem sentido

deste amor que não morre por morrer

o teu corpo tão nu nunca despido

o teu corpo tão vivo de o perder

neste amor que só é de não ter sido

não sei de amor senão esse não ter.


Não sei de amor senão o não haver

amor que dure mais que o nunca tido.

Há um corpo que não pára de doer

só esse é que não morre de tão perdido

só esse é sempre meu de nunca o ser

não sei de amor senão o amor ferido.


Não sei de amor senão o tempo ido

em que o amor era amor de puro arder

tudo passa mas não o não ter tido

o teu corpo de ser e de não ser

só esse é meu por nunca ter ardido

não sei de maor senão esse perder.


Cintilante na noite um corpo ferido

só nele de o não ter tido eu hei-de arder

não sei de amor senão amor perdido.

Noticia bibliográfica: Os poemas, de Manuel Alegre, poeta-candidato, pertencem à 1ªedição do LIVRO DO PORTUGUÊS ERRANTE publicado em Fevereiro de 2001 por Publicações Dom quixote, Lda.

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Canção do Nu de Afonso Duarte

15 Sexta-feira Jan 2010

Posted by viciodapoesia in Erótica

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Afonso Duarte, Carlos Oliveira, Manuel Alegre

Dificilmente ao nome de Afonso Duarte associaremos uma poesia erótica. Não conhecendo, ou conhecendo superficialmente a sua poesia, o erotismo será algo que não pensaremos lá encontrar.

Não será bem assim, ainda que poucos sejam os poemas em que as alegrias do corpo se manifestam.

É sobretudo nos poemas agrupados em Ritual do Amor que uma aproximação ao erotismo na sua poesia se poderá fazer. São poemas escritos por volta de 1912, quando o poeta tinha 28 anos, e da vida talvez já conhecesse os prazeres. No entanto, o gozo do corpo aparece nesta recolha consideravelmente matizado.

Canção do Nu, o poema que aqui trago, foi incluído nesta recolha na sua edição de 1929, quando o poeta reuniu em Os 7 Poemas Líricos o conjunto da sua poesia publicada em livro e a que entretanto tinha surgido em revistas ou se encontrava inédita. Este poema foi publicado no nº 9 da revista Contemporânea em 1923

O poeta esteve sem publicar poesia quase vinte anos, entre 1929 e 1947. Nesse ano publicou Ossadas. E com este livro inicia-se uma espécie de 2ªparte da sua produção poética. É sobre esta poesia que as apreciações críticas abundam, afinando todas pelo elogio justíssimo.

Deixo aqui, porque sintética e clara, uma apreciação de Manuel Alegre, retomando em grande parte o que escreveram Carlos de Oliveira e João José Cochofel na primeira edição da Obra Poética de Afonso Duarte em 1956.

Na primeira parte da obra poética de Afonso Duarte, reunida em Os 7 Poemas Líricos, é a natureza que se faz presente, e o canto das coisas simples, e de alguma maneira essenciais, na vida dos homens.

De Romanceiro das águas, recolha cheia de uma poesia cristalina regando a natureza e o viver, destaco Águas Passadas

“Interroguei as águas caudalosas / Sobre o que seja esta ânsia de viver;  – Viver? É a vida sempre em despedida”.

Ou então de O Cântaro de Barro de onde nos sai:

“ Da terra mãe fiz o vaso / que bastasse à minha sede … E como sabia amar, / A gosto de rapariga, … foi cheio do gosto dela / Que eu me dei a modelar”

e mais à frente temos o cântaro:

“ Ora vede/ … / Se não é o corpo dela / Da cintura para cima?/ E em ar de dança do Povo / Os braços ergue à cabeça;”

Continuava as citações pelo Rimance que se segue, todo ele a merecer destaque, mas o espaço do artigo e paciência do eventual leitor têm limites, por isso termino com este Vitral, soneto/imagem de adolescente desejada – Seu corpo esguio, uma anfora com fala:

 

Vitral

Franzina, é como um choupo à luz da Lua;

É a noite escura o seu olhar de mágoa.

Uma ogiva os seus braços quando amua,

Modelo foi dos cantarinhos de água.

 

Dizem os seios que a farão mãezinha;

Oh! Que linda menina casadoira!

São os seios da virgem donzelinha,

Dois novelos saltando à dobadoira.

 

Seus lábios, duas pétalas de rosa;

Abrem as rosas como a boca enlaça…

Em beijo a boca é uma flor ciosa.

 

Num lago a Lua: o seu andar embala;

São suas mãos às que eu imploro a graça,

Seu corpo esguio, uma ânfora com fala.


 

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