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No passado próximo deixei uma interrogação e convite à meditação do eu interior com uma Oração à Alma de Gregório de Naziano. Hoje venho com uma diferente interrogação por Manuel Alegre (1936): Que somos nós senão o que fazemos?
O soneto Que somos nós dá a resposta do poeta:
…
Que serei eu senão só o que faço
e é tão pouco no tempo em que não temos
para viver senão o tempo de
transformar neste tempo e neste espaço
a vida em que não somos mais do que
o sol do que fazemos. …
O soneto foi publicado em 1970. Não sei se hoje, passados quase cinquenta anos de vida a resposta do poeta continua a ser a dada no poema, de que o homem ou é acção, ou não é.
Entendo que somos mais que acção. Agir é tantas vezes errar. Agir sem a vigilância da reflexão sobre o que se faz e suas consequências pode ser historicamente marcante mas quantas vezes, se não tivesse acontecido, não seria melhor.
Vejamos o que nos diz o imperador Marco Aurélio (121-180) num dos seus Pensamentos:
Tudo o que sou não passa disto: um pouco de carne que respira e o norte da razão que nos dirige. …
Marco Aurélio, Pensamentos, Liv. II, 2.
Ser homem é pensar sempre e a cada momento as consequências da sua acção. Se como escrevi no artigo antes referido, mesmo quando não escolhemos estamos a decidir não escolher, agir ou não agir que seja sempre consequência de escolher, e não irreflectido impulso, para que o rasto que deixemos na terra tenha servido de alguma forma o bem.
Antes de o deixar, leitor, com o poema, regresso a um dos pensamentos de Marco Aurélio:
Experimenta como te prova por seu turno a vida do homem de bem que aceita com gosto a parte que lhe toca no conjunto e se contenta, pelo que lhe depende, com praticar a justiça e permanecer em disposição benevolente.
Liv. IV, 25.
Poema
Que somos nós
Que somos nós senão o que fazemos?
Que somos nós senão o breve traço
da vida que deixamos passo a passo
e é já sombra de sombra onde morremos?
Que somos nós se não permanecemos
no por nós transformado neste espaço?
Que serei eu senão só o que faço
e é tão pouco no tempo em que não temos
para viver senão o tempo de
transformar neste tempo e neste espaço
a vida em que não somos mais do que
o sol do que fazemos. Porque o mais
é sombra de sombra e o breve traço
de quem passamos para nunca mais.
in O Canto e as Armas, inédito na 2.ª edição, 1970
Transcrito de Obra Poética, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1999.
Traduções de Marco Aurélio por João Maia. Pensamentos, Relógio D’Água Editores, Lisboa, 1995.
Abre o artigo a imagem de uma pintura de Fernand Léger (1881-1955), Os Construtores da colecção do Museu Fernand Léger de França.