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Passou o 25 de Abril, passou o 1º de Maio, passou o Dia da Mãe, temos o Papa à porta e o silencio no blog permaneceu. Devo uma explicação aos fiéis e desconhecidos leitores que perseverantemente voltaram ao blog de forma insistente neste longo período.

O que inicialmente foi uma brincadeira com constipação até à metafísica cresceu bem para lá de qualquer faculdade de julgar levando-me a febre ao delírio onde acabei por me perder em conjecturas e refutações, para afinal concluir que é à medida que a vida corre que percebemos como ela é uma busca inacabada.

Aqui chegados instala-se a dúvida, já nem metódica, mas sistemática, e acabamos por tomar decisões apenas com a certeza do incerto.

Como se compreende, com tamanha barafunda, a poesia, que é sobretudo matéria do sonho, ficou sem espaço enquanto circulei por este país da lógica, apesar de a certa altura um poeta ter anunciado, sem poesia, como resolver a crise. Tenho para mim que a crise não se vence com poetas nem sobretudo com poesia, porque a poesia não vence nada, a não ser o desanimo, devolvendo ás vezes o gosto de estar vivo.

Mas esta crise é uma grande crise, toda a gente o diz! Têm certamente razão. Muita gente a dizer a mesma coisa transforma qualquer fantasia em convicção profunda. Não fora assim e não haveria religiões. Mas a religião da crise é outra. É a do dinheirinho. Dinheirinho para cá, dinheirinho para lá, dinheirinho que não há. E afinal a poesia mete-se nela na forma de um poeta-candidato com a palavra certa no estrondo da voz.

PRESENÇAS

Eles estão por dentro. Nas

palavras

e nos actos.


Nas cadeiras

nas gavetas

nos cabides e nos fatos.


Quando menos se espera

fogem

dos retratos.


Tem cuidado quando te calças

eles podem esconder-se

nos sapatos.


Na sopa e na maçã

quem sabe se

no vinho.


Vê bem por onde vais

eles gostam das curvas

do caminho.


Na cama onde te deitas

nas camisas

e nas meias


no lençol com que te enxugas

no remédio que tomas para

desentupir as veias


no garfo sobre a mesa

nos copos

e nos pratos


eles estão por dentro e estão por fora.

Podes crer que nunca ficam

nos retratos.


O BURACO DA AGULHA

Vou de camelo pelo buraco de uma agulha

vou de camelo e não encontro o reino.


A porta é estreita mas os ricos

estão a comprar passagem e estão a entrar.


Vou de camelo pela oferta e a procura

e há quem pense que o céu também tem preço.


Tens de vir outra vez para dizer

que não pode servir-se a dois senhores.


Vou de camelo pela porta estreita

vou de camelo e não consigo entrar.


Tens de vir outra vez que os fariseus

não nos deixam passar não nos deixam passar.


UM PERFUME DE NARDO

Em verdade te digo: Não

espero a eternidade. E sei

que nenhum verso vence a morte.


Procuro apenas um sinal

um ritmo que me restitua

a imperceptivel respiração da terra.


Talvez os cabelos de Maria

irmã de Marta

a enxugar-me os pés.


Porque todos os poemas são mortais

e o que fica é talvez

um perfume de nardo. E nada mais.

Seguimos nesta escolha, primeiro, a visão poética da percepção do incompreensível na realidade, seguida de um apelo à justiça de Deus e terminando com a interrogação do poeta sobre o seu lugar no mundo.

Ficaria a selecção incompleta sem o tema central das escolhas deste blog – o amor e o corpo.

NÃO SEI DE AMOR SENÃO

Não sei de amor senão o amor perdido

o amor que só se tem de nunca o ter

procuro em cada corpo o nunca tido

e é esse que não pára de doer.

Não sei de amor senão o amor ferido

de tanto te encontrar e te perder.


Não sei de amor senão o não ter tido

teu corpo que não cesso de perder

nem de outro modo sei se tem sentido

este amor que só vive de não ter

o teu corpo que é meu porque perdido

não sei de amor senão esse doer.


Não sei de amor senão esse perder

teu corpo tão sem ti e nunca tido

para sempre só meu de nunca o ter

teu corpo que me doi no corpo ferido

onde não deixou nunca de doer

não sei de amor senão o amor perdido.


Não sei de amor senão o sem sentido

deste amor que não morre por morrer

o teu corpo tão nu nunca despido

o teu corpo tão vivo de o perder

neste amor que só é de não ter sido

não sei de amor senão esse não ter.


Não sei de amor senão o não haver

amor que dure mais que o nunca tido.

Há um corpo que não pára de doer

só esse é que não morre de tão perdido

só esse é sempre meu de nunca o ser

não sei de amor senão o amor ferido.


Não sei de amor senão o tempo ido

em que o amor era amor de puro arder

tudo passa mas não o não ter tido

o teu corpo de ser e de não ser

só esse é meu por nunca ter ardido

não sei de maor senão esse perder.


Cintilante na noite um corpo ferido

só nele de o não ter tido eu hei-de arder

não sei de amor senão amor perdido.

Noticia bibliográfica: Os poemas, de Manuel Alegre, poeta-candidato, pertencem à 1ªedição do LIVRO DO PORTUGUÊS ERRANTE publicado em Fevereiro de 2001 por Publicações Dom quixote, Lda.